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Entenda: o caso da Força Nacional contra o MST no sul da Bahia

Para MST, governo quer usar disputa interna para criminalizar o movimento

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
Moradoras do assentamento Jacy Rocha, no sul da Bahia - MST

Relacionado a uma disputa entre Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e governo Bolsonaro, o caso da Força Nacional em assentamentos da Bahia é a mais nova ocorrência de destaque no cenário do campo brasileiro. A questão veio à tona no noticiário após o envio das tropas por parte do Executivo federal, no ultimo dia 2, depois de um despacho do ministro da Justiça, André Mendonça.   

O mandatário havia publicado, na data anterior, a Portaria nº 493, autorizando a atuação dos agentes na região do extremo Sul baiano. O documento traz como discurso oficial a proposta de apoiar o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) em assentamentos ligados ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) nos municípios de Prado e Mucuri.  


Portaria do Ministério da Justiça inseriu Força Nacional no caso sob o argumento de auxiliar Incra “nas atividades e nos serviços imprescindíveis à preservação da ordem pública" / DOU/reprodução

Coordenada pela Polícia Federal, a operação foi autorizada inicialmente por 30 dias, de 3 de setembro até 2 de outubro, podendo ser posteriormente prorrogada. Desde a chegada dos agentes até esta sexta-feira (11), a tropa segue concentrada no município do Prado, zona de forte atuação do MST.   

A localidade sedia, por exemplo, o assentamento Rosa do Prado, que reúne 265 famílias. A suspeita da organização é de que a atuação dos agentes na área seria voltada a um ataque político a outro assentamento, Jacy Rocha, a cerca de 50 km dali, que concentra outras 223 famílias do MST. Para serem destinadas a esses equipamentos, as áreas foram desapropriadas por interesse social e resultam de uma batalha travada entre agricultores familiares e agronegócio, especialmente latifúndios de eucalipto.

Enredo

O enredo político que resultou na ida da Força Nacional ao local tem início em fatos anteriores. O movimento diz ter sido surpreendido quando, no ultimo dia 26, um casal que havia sido expulso do assentamento em 31 de julho do ano passado retornou à área acompanhado da Polícia Militar (PM). Os agentes disseram estar na companhia também de um representante do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para o qual estaria sendo feita uma escolta. Os militantes do MST afirmam que o interlocutor do órgão não se identificou na ocasião. 

No dia seguinte, 27 de agosto, o casal retornou ao local com mais 13 pessoas, segundo a organização, numa tentativa de retomar a área. A expulsão dos dois havia se dado após eles terem sido acusados de envolvimento com tráfico de drogas e roubo de gado.

A retirada do casal do assentamento foi discutida em uma assembleia popular cuja ata menciona que eles não estariam residindo com a família no local depois que as casas foram finalizadas, teriam se ausentado por mais de 30 dias sem motivo justificado e teriam ainda faltado ao trabalho coletivo por três dias consecutivos e seis dias alternados. Além disso, os dois teriam portado arma de fogo dentro do assentamento, o que não é permitido pelas regras internas da comunidade.        

O despacho dado pelo Ministério da Justiça para o envio da Força Nacional à região liga, de forma indireta, o conflito interno do assentamento e a intervenção do governo federal na história. No texto, André Mendonça afirma que as tropas iriam auxiliar o Incra  “nas atividades e nos serviços imprescindíveis à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.  

Governo da Bahia

A decisão recebeu duros protestos e contou com reação do governador da Bahia, Rui Costa (PT), que se disse surpreso com a iniciativa. “A legislação é muito clara ao dizer que a Força Nacional não é uma força federal . É uma força de cooperação dos entes federados, e a lei estabelece que ela só pode ser usada por chamamento, concordância e anuência do estado. Sequer o estado foi informado”, criticou o mandatário na última quarta (9), afirmando que a medida teria ocorrido “completamente à margem da lei”.

O governo estadual prepara atualmente uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) para levar ao Supremo Tribunal Federal (STF).   

MST

Para o MST, a iniciativa do governo federal teria o interesse de “aproveitar” a dissidência interna anteriormente ocorrida no assentamento para criar uma narrativa que possa criminalizar o movimento à luz do discurso bolsonarista, que tem o agronegócio como um de seus principais braços políticos.  

O movimento aponta o Jacy Rocha, suposto objetivo final da ida da Força Nacional à região, como um dos pontos fortes da luta agrária popular no estado.  Exclusivamente voltada à agroecologia, técnica que não utiliza venenos no processo produtivo, a unidade é tida como “assentamento-modelo” do MST e serve de referência a outras ações da entidade na região, onde o movimento tem consolidado uma atuação política que rendeu frutos em diferentes frentes. Uma delas é a criação da Escola Popular de Agroecologia e Agrofloresta Egídio Brunetto, localizada no Jacy Rocha.    


Entre outras coisas, região do extremo Sul da Bahia tem produção de arroz orgânico do MST / Jonas Santos

A leitura do movimento é de que os resultados da atuação popular pela reforma agrária no extremo Sul baiano teriam inflamado os ânimos de opositores ideológicos. “Para a gente, isso nada mais é do que uma disputa no sentido de tentar acabar com o MST onde ele é mais forte. E o movimento aqui da Bahia também ajuda muito a balizar a luta num nível federal, portanto, estamos numa região onde temos força, e a direita está com raiva da nossa atuação”, atribui Vitor Passos, da direção do MST no estado.

Em nota pública divulgada no último dia 2, a organização afirma que o governo Bolsonaro estaria, entre outras coisas, tentando “fragmentar o território”. Procurado pelo Brasil de Fato para tratar dessa questão, o Ministério da Agricultura não deu retorno até o fechamento desta matéria.  

A pasta também não respondeu a outros questionamentos feitos pela reportagem, como, por exemplo, a motivação detalhada do pedido de envio da Força Nacional feito ao MJ. O veículo solicitou ainda acesso ao processo administrativo que gerou o pedido, mas não teve esse retorno.  

Incra

O Incra afirmou, no último dia 2, que estava realizando uma “força-tarefa” na região para “acelerar processos de titulação” em assentamentos nos municípios de Prado e Mucuri, os mesmos citados no despacho do MJ sobre a Força Nacional.

A autarquia disse que a operação surgiu após um suposto ataque ocorrido no assentamento Jacy Rocha na madrugada do último dia 28, que teria terminado em “oito feridos, casas destruídas e mais dois lotes, um trator e uma moto incendiados”. “O caso está sob investigação da Polícia Federal”, disse o órgão, sem apontar detalhes.    

O MST estadual nega a narrativa e alega que o conflito existente diz respeito à família expulsa do local em 2019. Vitor Passos sublinha que a iniciativa veio após um processo de sete anos de descumprimento dos acordos coletivos e regras de convivência da comunidade. “Eles historicamente criaram problema pro assentamento, e qualquer assentamento tem regimento. Isso é normal, até condomínio tem. A família quebrou todos os protocolos, e aí as famílias locais da área decidiram que eles precisavam ir embora daqui”, argumenta o dirigente. 

A organização diz suspeitar que o discurso do Incra tenha partido do capítulo em que o suposto agente da autarquia esteve no comboio que levou a família e a PM ao assentamento, em 26 de setembro, para tentar devolver o lote ao casal. “Não houve qualquer agressão da parte de ninguém. Quando nós da direção estadual fomos acionados, as famílias do assentamento tinham feito a exclusão da família novamente, já que ela tinha sido expulsa por não respeitar as regras”, ressalta Passos.   

No dia 9, o Incra divulgou que o processo de titulação no Sul da Bahia teria alcançado mais de 1,5 mil famílias em 15 assentamentos de cinco cidades da região, incluindo Mucuri e Prado. A movimentação contou com a presença do secretário especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Luís Antônio Nabhan Garcia, que esteve no local no dia anterior com autoridades do instituto para “acompanhar pessoalmente a ação no Prado”.


Homem forte no jogo político do agronegócio, Nabhan Garcia é secretário especial de Assuntos Fundiários do Mapa / Isac Nobrega/PR

Uma apuração do site “De Olho nos Ruralistas” aponta que Nabhan teria sido o mentor do envio da Força Nacional à região. Homem forte no jogo político do agronegócio, o secretário tem o Incra como um de seus órgãos de influência, dentro do guarda-chuva administrativo do Ministério da Agricultura.

Judiciário

O caso foi parar na Justiça e tem um de seus principais capítulos ancorado em janeiro deste ano, quando o Incra ingressou com um pedido de reintegração de posse na Justiça Federal relacionado ao assentamento Rosa do Prado. A argumentação é de que cerca de 150 pessoas alheias ao equipamento estariam vivendo lá.

O pedido foi inicialmente acatado pela Justiça, mas chegou a ser revogado logo em seguida pelo desembargador João Batista Moreira, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). A decisão se deu após provocação do Ministério Público Federal (MPF), que alegou problemas formais no processo pelo fato de a instituição não ter sido ouvida.  O Código de Processo Civil prevê a participação do MP em conflitos coletivos relacionados à posse de terras.

Alguns meses depois, em maio, o caso ganhou um novo desdobramento: o Incra reforçou o pedido de reintegração de posse, acrescentando que haveria “fatos novos” relacionados a supostos  conflitos que envolveriam “violência e ameaça”. A manifestação gerou outra reação do TRF-1: o mesmo desembargador que havia revogado a liminar inicial, João Batista Moreira, atendeu ao pedido da autarquia, acabando com o efeito suspensivo anterior. Na prática, a liminar inicial, de janeiro, que autorizava a reintegração de posse na área, voltou a valer.

O Incra alegou, no entanto, que a ordem judicial “não foi efetivada”, o que motivou um novo pedido de reintegração, apresentado pela autarquia em 30 de agosto. O Brasil de Fato teve acesso à peça principal deste último pedido, que não acusa nomes específicos ligados ao assentamento.


Pedido de reintegração de posse apresentado pelo Incra em 30 de agosto é assinado por procuradores federais da Advocacia-Geral da União (AGU) / Incra/divulgação

No dia seguinte, o juiz federal Felipo Lívio Lemos Luz, da Vara Federal Cível e Criminal de Teixeira de Freitas (BA), atendeu ao pleito e expediu um novo mandado de reintegração de posse destinado a Rosa do Prado.   

O magistrado concedeu prazo de 24 horas para que o grupo acusado pelo Incra se retirasse do local e autorizou o uso de força policial após esse prazo. A decisão não menciona a mobilização de tropas da Força Nacional. No mesmo dia 31, um processo interno já tramitava no Ministério da Justiça para tratar do pedido feito pelo Mapa. No dia 2, o despacho final levou ao envio dos agentes à Bahia. O Brasil de Fato conseguiu acesso ao documento e constatou o rápido trâmite do processo, evidenciado pela imagem abaixo.   


Movimentação interna de processo do Mapa que pediu uso da Força Nacional ao MJ durou de 31 de agosto a 2 de setembro, segundo documento obtido pelo Brasil de Fato / Ministério da Justiça/reprodução

Sobre a acusação de que mais de 150 pessoas alheias ao assentamento estariam vivendo no local, o MST afirma que o Incra teria “deturpado” a história de um curso pontual realizado pela organização em janeiro deste ano, quando surgiu o primeiro questionamento judicial da autarquia.  

“O que aconteceu foi apenas uma formação política. A escola do assentamento recebeu cerca de 150 a 180 militantes pra essas atividades e essas pessoas dormiram lá por alguns dias, mas apenas para o curso. Depois, elas foram embora, voltaram pros seus municípios. O Incra usou isso pra trazer essa acusação”, acredita Vitor Passos.    

No dia 4 de setembro, surgiu um novo mandado de reintegração de posse, desta vez referente à unidade de Jacy Rocha. O juiz federal Felipo Lívio Lemos Luz atendeu a outro pedido do Incra, que dois dias antes pediu o despejo de seis lideranças do MST “e demais integrantes do grupo de pessoas” da organização alegando irregularidades no local. Mais uma vez, o despacho não faz referência à Força Nacional.  

MPF

O MPF novamente interveio no caso, pedindo suspensão das “ações destinadas à reintegração de posse nos municípios de Prado e Mucuri”. O procurador da República Luiz Paulo Paciornik Schulman sublinhou que “as circunstâncias fáticas narradas pelo Incra estão incompletas” e que a análise sobre uma eventual desapropriação “merece maior cautela e contextualização, sob pena de se provocar uma ação abrupta e desproporcional por parte do Estado”.  


Agravo de instrumento apresentado pelo MPF aponta que "circunstâncias fáticas narradas pelo Incra estão incompletas" e que "caso merece merece maior cautela e contextualização" / MPF/reprodução

O MPF também argumentou que o cumprimento desse tipo de medida judicial durante a pandemia contribui para a exposição de mais pessoas à covid-19, trazendo vulnerabilidade às famílias. A Justiça acabou negando a solicitação do procurador, por meio de uma decisão do desembargador João Batista Moreira, publicada na última terça (8). O magistrado argumentou, entre outras coisas, que não dispunha de elementos que justificassem a suspensão da decisão por conta do risco de contágio da covid-19. Diante desse último capítulo, a região segue em clima de tensão por conta da presença da Força Nacional. 

 

 

 

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho