O hábito de leitura no país, apesar de ter avançado, ainda está aquém do ideal. Segundo a quarta edição do estudo Retratos da Leitura no Brasil, publicada pelo Instituto Pró-Livro em 2016, desenvolvida a cada quatro anos, o número de pessoas consideradas leitoras saltou de 88,2 milhões em 2011 para 104,7 milhões em 2015. Contudo 44% da população brasileira está enquadrada como “não leitores”. As mulheres continuam lendo mais do que os homens: 59% são leitoras, enquanto 52% são leitores.
“Livro é um bem caro, infelizmente, e o controle de acesso ao conhecimento é uma ferramenta de manutenção de poder. Não é, sem razão que querem taxar os livros ainda mais”, afirma a doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande Do Sul (UFRGS), Winnie Bueno.
Os livros, no país, estão livres de isenção desde 1946, quando o escritor Jorge Amado, então deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), conseguiu que fosse incluída na Constituição daquele ano a isenção de impostos para o papel utilizado na impressão de livros, jornais e revistas. A proposta tinha como objetivo permitir que o livro e a imprensa pudessem chegar às camadas mais amplas da população, em um país marcado intensamente pelo analfabetismo. O legado de Jorge Amado sobreviveu à época da ditadura, sendo consolidado na Constituição de 1988, em seu artigo 150, que determina que é vedada à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios criarem impostos de qualquer natureza sobre o livro e a imprensa escrita.
Agora, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), impulsionado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, que chegou a afirmar que livro é coisa da elite, pretende, através de uma reforma tributária, taxar os livros em 12%. Diversas associações do setor como a Associação Brasileira de Difusão do Livro (ABDL), a Associação Nacional das Livrarias (ANL) e a Câmara Brasileira do Livro (CBL), lançaram o Manifesto em Defesa do Livro.
Com objetivo de reverter essa lógica e de democratizar o acesso de pessoas negras à literatura, Winnie criou o Tinder dos livros, em 2019, transformando-se no Winnieteca. Recentemente, a iyalorixá e mestra em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, com pesquisa dedicada ao pensamento de Patricia Hill Collins, lançou o projeto Lendo Mulheres Negras nas Comunidades. Esse visa equipar cinco bibliotecas comunitárias com 40 obras sobre mulheres negras. O financiamento coletivo pode ser acessado aqui.
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, Winnie fala dos seus projetos, da importância da escrita feita por mulheres negras e da proposta de se taxar livros em 12%. “Numa sociedade estruturalmente racista, onde ferramentas ideológicas são articuladas para cercear a subjetividade dessas mulheres, a escrita é um importante instrumento de autodefinição”, afirma. Para ela, a proposta de taxação é um ataque à educação, extremamente elitista e representa um projeto de manutenção do poder. “Como eles não podem mais queimar os livros, visam tornar os mesmos inacessíveis. É um retrocesso".
Veja abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS - Poderia começar nos contando um pouco da tua trajetória e teu encontro com a literatura?
Winnie Bueno - Eu sempre li. Desde muito pequena sempre tive os livros como meus amigos e como espaço de refúgio. Os livros me davam a oportunidade de acolhimentos que eu não encontrava na escola, por exemplo. Fui uma adolescente rata de biblioteca e minha mãe e minha vó me davam livros de presente sempre. Minha vó lê muito, e eu sempre vi minha vó lendo, é um hábito construído pelo afeto entre as mulheres da minha família. Minha vó, minha mãe, minhas primas.
BdFRS - Ao falarmos de literatura, como tu avalias a literatura feita por mulheres, em especial, mulheres negras no país? A importância dessa literatura? E o que ainda precisamos evoluir?
Winnie - A escrita para mulheres, sobretudo para mulheres negras, é uma ferramenta importante de autodefinição. A escrita de mulheres negras fez possível que essas mulheres escrevessem em voz própria suas narrativas e trajetórias. Numa sociedade estruturalmente racista, onde ferramentas ideológicas são articuladas pra cercear a subjetividade dessas mulheres, a escrita é um importante instrumento de autodefinição. Isso está mobilizado na escrita de Carolina de Jesus, de Conceição Evaristo, de Jarid Arraes, todas elas encontraram na escrita formas de falar sobre mulheres de maneira complexa, viva, sincera e não estereotipada.
O que precisa evoluir é o incentivo para a publicação de obras de mulheres negras e a circulação dessas obras. Os livros de mulheres negras precisam ocupar as prateleiras de destaque nas livrarias, precisam estar acessível a outras mulheres negras, precisam circular mais e com mais destaque.
BdFRS - Pensando em formas de democratização da leitura de mulheres negras, gostaria que tu nos contasse sobre o projeto Winnieteca, lançado ano passado. Qual a trajetória e história dele até o momento?
Winnie - A Winnieteca é uma forma de possibilitar acesso aos livros para quem não tem como acessar. Livro é um bem caro, infelizmente, e o controle de acesso ao conhecimento é uma ferramenta de manutenção de poder. Não é sem razão que querem taxar os livros ainda mais. A Winnieteca é uma possibilidade de reverter essa lógica, é pra isso que ela foi criada, para que as pessoas negras possam acessar os livros que elas precisam e contornar as barreiras do racismo nesse acesso. A gente tem conseguido acessar muitas pessoas, mas ainda falta. Falta gente que entenda a importância de dar um livro que uma pessoa precisa, para quem precisa.
BdFRS - E também gostaria que falasse sobre o novo projeto Lendo Mulheres Negras Nas Comunidades.
Winnie - O Lendo Mulheres Negras nas Comunidades é um financiamento coletivo que visa equipar cinco bibliotecas comunitárias nas cinco regiões do país com uma seleção de livros sobre mulheres negras. Eu fiz a curadoria desses livros, mobilizando tanto autoras da literatura, quanto livros de teoria feminista e compreendidos importantes sobre mulheres negras. Serve para colocar esses livros nas periferias, acessíveis à comunidade negra. Do que vale traduzir a Patricia Hill Collins se as pessoas para quem ela escreveu os livros não puderem acessar esses livros?
BdFRS - Qual o papel da leitura no combate ao racismo e às demais formas de manifestação de ódio e preconceito?
Winnie - Conhecimento é uma das poucas coisas que ninguém pode te tirar. Ler livros de mulheres negras é uma forma de compreender a sociedade a partir do olhar dessas mulheres. O olhar de mulheres negras sobre a sociedade brasileira é totalmente desvalorizado nesse país, a leitura pode reverter esse cenário.
BdFRS - Paira agora uma nova ameaça quando falamos de leitura, a taxação de livros. Como tu vê essa proposta e impactos que ela pode trazer?
Winnie - Essa proposta é um ataque à educação, é extremamente elitista e representa um projeto de manutenção do poder. Como eles não podem mais queimar os livros, visam tornar os mesmos inacessíveis. É um retrocesso.
BdFRS - Tu és uma grande estudiosa das obras da socióloga Patricia Hill Collins. Gostaria que nos falasse da sua importância para o ativismo e para o pensamento feminista negro. E que avaliação tu fazes do movimento feminista negro no país?
Winnie - Foi o ativismo político e intelectual de mulheres negras que desmantelou o mito da democracia racial. Foram ativistas como Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Maria Conceição Fontoura, Nilma Bentes, Nilma Lino Gomes que construíram e tocaram as principais lutas por justiça social nesse país. O movimento de mulheres negras brasileiro é um dos mais potentes projetos de justiça social da história. E continua sendo.
São mulheres que pensam outro pressuposto civilizatório a partir da pluralidade, da heterogeneidade, isso é profundamente democrático e transformador.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira