guerras às drogas?

Plano militar entre Colômbia e EUA põe em risco paz regional, apontam analistas

"Colômbia Cresce" prevê investimento de US$ 5 bilhões e deslocamento de tropas na fronteira com a Venezuela

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |

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O plano Colombia Crece foi anunciado pelo presidente Duque junto a assessores militares, políticos e financeiros da Casa Branca - Reprodução

Os governos da Colômbia e dos Estados Unidos lançaram o Plano Colombia Crece, uma parceria militar para supostamente combater o narcotráfico e os grupos armados insurgentes no país.

O acordo, assinado no dia 17 de agosto pelo presidente Iván Duque, assessor de segurança nacional da Casa Branca, Robert O'Brien, o chefe do Comando Sul do Pentágono, Craig Faller, o diretor da Corporação Financeira de Desenvolvimento Internacional dos EUA, Adam Boehler, e o assessor para assuntos latino-americanos Mauricio Claver-Carone, prevê um investimento de US$5 bilhões nos próximos três anos.

No discurso de anúncio do novo projeto, não por acaso, Duque destacou que um dos objetivos da sua administração é "o fim da usurpação de poder na Venezuela". Para analistas, o novo plano é uma clara ameaça ao país vizinho. 

"Mais do que uma luta contra as drogas, essa é uma ingerência militar interna que busca gerar medo à Venezuela, afetando a paz regional. É preocupante a presença militar principalmente na zona do Catatumbo, Norte de Santander, parte da nossa extensa fronteira com a Venezuela e poderiam dar apoio a uma incursão armada terrestre contra território venezuelano", afirma o advogado e defensor de direitos humanos, David Flórez.

Justamente na cidade de Cúcuta, limítrofe com a Venezuela e capital do departamento Norte de Santander, cidadãos denunciaram a presença de militares estadunidenses vigiando a fronteira. 

Também foram vistos helicópteros com a bandeira estadunidense sobrevoando a região e desembarcando soldados. 

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Depois de anunciar o Colombia Crece, o chefe de Estado colombiano também autorizou a entrada de mais tropas militares estadunidenses, sem passar pelo aval do parlamento, como prevê a constituição do país. 

A brigada de Assistência de Força de Segurança (SFAB, pelas siglas em inglês), com 48 agentes de elite, regressou de operações do Meio Oriente para coordenar os trabalhos de inteligência militar com os colombianos. A expectativa é que até o final de 2020 sejam enviados 800 efetivos norte-americanos. 

"Fica claro que quando se trata de um desígnio do governo norte-americano, o governo colombiano sacrifica sua soberania, a opinião popular, os procedimentos previstos na nossa ordem jurídica, tudo para poder cumprir o mais rápido possível os desígnios dos EUA", declara o defensor de direitos humanos colombiano.

Venezuela seria o álibi perfeito na ideia do "inimigo externo", concentrando a opinião pública no combate a uma suposta ameaça regional.

"Esse é um truque muito útil a Trump, Bolsonaro, Duque e o uribismo [referente a Álvaro Uribe, presidente da Colômbia entre 2002 e 2010]. Os três ganharam suas eleições dessa forma. Na Colômbia foi o castro-chavismo, nos Estados Unidos falam do progressismo", denuncia David Flórez. 


Os representantes estadunidenses anunciaram que devem retornar à Bogotá em setembro para novos anúncios de cooperação militar. / Presidência Colômbia

Iván Duque chegou à metade do mandato, com recordes de desaprovação popular, enquanto Donald Trump está cerca de nove pontos atrás de Joe Biden em sua busca pela reeleição.

Atualmente o país é o sétimo no ranking mundial da covid-19, com 599 mil infectados e 19 mil falecidos. 

"Tanto Trump, como Duque têm muitas dificuldades, não apenas no contexto interno, mas também internacional. O Grupo de Lima se desinflou. Nas suas últimas reuniões, Duque ficou sozinho com um delegado norte-americano e o grupo quase se desfaz", indica o politólogo Álvaro Villaraga.

Violência Sistemática

O ano de 2020 é considerado um dos mais violentos da história recente do país. Segundo o Instituto de Desenvolvimento da Paz (Indepaz) foram registrados 46 massacres. Além disso, desde a assinatura dos Acordos de Paz de Havana, em 2016, mil líderes sociais e defensores de direitos humanos foram assassinados. Além de 349 ex-guerrilheiros, 52% mortos durante a administração de Duque. 

O partido Centro Democrático, criado por Álvaro Uribe Vélez, foi um dos principais agitadores da campanha pelo "não" no plebiscito que deveria referendar os Acordos entre o governo de Juan Manuel Santos e a ex-guerrilha Farc-EP. Durante cinco décadas de conflito armado, 83 mil pessoas desapareceram, de acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha

Agora no governo, Iván Duque, apadrinhado por Uribe, não cumpre com regras estabelecidas no documento. 


Durante 53 anos, o atual partido FARC atuou como uma guerrilha de orientação socialista, que dominava parte do território colombiano / El tiempo

"O Acordo de Paz significa acabar com a guerra, acabar com a militarização nos campos; significa recuperar as condições de garantias para a população civil, às organizações populares nos territórios", comenta Villarraga.

Duque assegura que em dois anos de gestão, 115 chefes de facções criminosas foram detidos. No entanto, nesse mesmo período 296 líderes sociais e defensores de direitos humanos foram mortos.

Em alguns casos, há evidências de ações coordenadas pelo próprio exército colombiano, em outros os fatos são atribuídos à grupos armados irregulares.

A ausência de instituições fortes do Estado e de políticas públicas no interior do país são os elementos que conformam um cenário de total abandono. 

"Esse governo vem na via contrária: militarizando os territórios, crescendo novamente o paramilitarismo. Não exerce controle do território que antes estava sob poder das FARC. Isso é o que deixa a população em uma situação vulnerável, vivendo guerras cruzadas", afirma Villarraga. 

Somente nos últimos dez dias, depois de decretada a prisão domiciliar contra o ex-presidente Álvaro Uribe Velez, foram registrados cinco matanças.

Uribe é investigado sob a acusação de ser autor intelectual de massacres nos anos 90, mas foi detido em outro processo, acusado de pagar subornos para fraudar testemunhas em um processo judicial contra o senador do Polo Democrático Alternativo, Iván Cepeda. 

"Está muito claro que existe uma coincidência e que há uma utilização política da violência na Colômbia. Fundamentalmente buscam amedrontar as comunidades rurais, garantir um modelo extrativista e busca enviar uma mensagem clara ao país: se prendem Uribe, um dos principais representantes dessa fusão do paramilitarismo, máfia, latifundiários, pois esses grupos vão operar e tentar intimidar o país. Evidentemente há uma conexão", aponta Flórez. 


O presidente colombiano, Andrés Pastrana assinou o Plano Colômbia em 1999 com Bill Clinton, chefe da Casa Branca. / APA

Cooperação ou ingerência?

A relação entre Colômbia e Estados Unidos, no âmbito militar, não é recente. Há 20 anos foi assinado o Plano Colômbia pelos presidentes Andrés Pastrana e Bill Clinton, que movimentou cerca de US$10 bilhões em 15 anos e foi renovado pelos sucessores. 

Em 2009, Barack Obama e Álvaro Uribe Vélez anunciaram novos acordos que deram aos EUA a permissão de instalar sete bases militares no território colombiano. 

 


A Colômbia é o país com mais bases militares dos Estados Unidos, que anualmente recebem novas tropas do Pentágono. / BdF

Já em 2019, a Casa Branca destinou US$ 418 milhões para o combate às drogas na Colômbia.

Para Villaraga existem quatro elementos que evidenciam as coincidências entre os dois planos: 1) que se trata de uma estratégia militar regional, sob coordenação dos EUA; 2) alusão direta à Venezuela; 3) a justificativa retórica de combate ao narcotráfico e grupos ilegais; 4) a intromissão direta de capitais norte-americanos. 

"Não através de uma cooperação técnica ou dirigido a alguma ação social, de desenvolvimento, senão desde o ponto de vista de um controle financeiro de Washington e de investimentos de capital em zonas de conflito na Colômbia. Algo que significa uma inter-relação da intervenção militar, política e econômica. Deixam abertas as portas para multinacionais, capital norte-americano, estimulados por investidores colombianos. Um assunto de grupos poderosos que vai na contra-mão dos Acordos de Paz", pontua. 

Os agentes do capital financeiro estadunidense estavam representados na comissão que visitou Bogotá, com Adam Boehler, membro de um organismo dependente do Banco Mundial e Mauricio Claver-Carone, quem busca assumir a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). 

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Para ambos analistas, a presença de tropas estrangeiras ataca a soberania nacional. Organizações estimam que até 22 territórios colombianos poderiam estar sob domínio das tropas estadunidenses.

Apesar da determinação da justiça colombiana de que os agentes estadunidenses não podem atuar em atividades de inteligência e que sua presença deve ser fiscalizada pelo Poder Legislativo, atualmente é difícil estabelecer com precisão quantos efetivos norte-americanos se encontram no território colombiano. 

Isso porque além das tropas oficiais, contratistas estadunidenses que oferecem segurança privada também já se instalaram no país. 

Como é o caso da Silvercorp, do veterano da guerra do Iraque, Jordan Goudreau, que treinou paramilitares venezuelanos em território colombiano para tentar invadir a Venezuela - a chamada Operação Gedeon.


Dois dias depois do fracasso da Operação Gedeon, lanchas da marinha colombiana foram encontradas sem tripulação nas costas da Venezuela. / Reprodução

Coronelismo no poder

A Colômbia é o maior produtor de cocaína do mundo, com cerca  de 171 mil hectares de cultivo, que abastecem aproximadamente 70% do mercado, de acordo com relatórios das Nações Unidas. O ponto 4 dos Acordos de Paz previa uma série de políticas públicas para erradicar essas práticas ilegais.

Entre elas a realização de uma Conferência Internacional de Combate às Drogas e a substituição de cultivos ilícitos. Cerca de 100 mil famílias camponesas se comprometeram a deixar de plantar coca para semear alimentos. 

:: Especial: Colômbia Profunda ::

Para isso, o Estado deveria ajudar com a matéria-prima, conhecimento técnico e infra-estrutura como a construção de vias e o transporte da produção, atualmente garantidos pelo narcotráfico . 

No entanto, o presidente Duque tenta aplicar a erradicação forçada de ilícitos, aplicando glifosfato nas plantações - um agrotóxico proibido na União Europeia pelos riscos cancerígenos. 

"No caso colombiano, o projeto político do uribismo se ancora em uma base que é o latifúndio improdutivo, considerando que Colômbia é o país com maior desigualdade de propriedade de terra, isso se deu em um processo secular de uma desapropriação das melhores terras do país e uma classe muito atrasada, que nunca permitiu uma reforma agrária no país e o que fez para ampliar sua margem de lucro desde os anos 60 foi se vincular com o narcotráfico", assegura Flórez. 


Juan Guaidó, Iván Duque, presidente da Colômbia e Mike Pence, vice-presidente dos EUA, em encontro na Casa Branca / Twitter de Mike Pence/Reprodução

Segundo a Unidade de Planificação Rural Agropecuária da Colômbia, organismo vinculado à ONU, 82% das terras produtivas do país estão nas mãos de 10% da população. Já 68% dos colombianos possui menos de cinco hectares para viver e produzir. 

"Os aliados e pessoas próximas a Alvaro Uribe são os latinfúndiários, que tiraram 6 milhões de camponeses dos territórios e se apoderaram de mais de 8 milhões de hectares de terra. Então lhes convêm que se prolongue o conflito e a violência para não devolver as terras", denuncia Villarraga. 

Edição: Leandro Melito