O maior acervo de imagens em movimento da América do Sul, localizado em São Paulo, pode desaparecer a qualquer momento. Com 250 mil rolos de filmes, alguns compostos por nitrato de celulose, que podem entrar em autocombustão caso não sejam mantidas as condições de refrigeração, a Cinemateca pode repetir o que ocorreu com o Museu Nacional, que pegou fogo em 2018.
Criada na década de 1940 com o título de quinta maior cinemateca em restauro do mundo, hoje a instituição vive a decadência por conta do abandono do governo federal: 150 funcionários em greve por tempo indeterminado, suspensão de recursos há sete meses, falta de salário, sem brigada de incêndio e, a partir desta quarta-feira (15), sem equipe de segurança.
Para quem trabalha há anos na Cinemateca, presenciar essa situação é “desesperador”. Essa é a palavra usada por Eloá Chouzal, pesquisadora do audiovisual, integrante da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual e que atua com estudos dentro da Cinemateca há pelos menos três décadas. “É um absurdo, é desesperador. Eu conheço esse acervo, trabalho lá há mais de 30 anos como pesquisadora e pensar em um desastre em um acervo desse tipo é desesperador mesmo”, lamenta Chouzal.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora falou sobre a importância que alcança níveis internacionais da Cinemateca o que o prédio que já foi o Antigo Matadouro Municipal de São Paulo guarda de tesouros do cinema nacional.
Brasil de Fato: Eloá, qual é a importância da Cinemateca para o Brasil?
Eloá Chouzal: Ela guarda o maior acervo de imagens da América do Sul e tem que guarda a história do Brasil em imagens, desde que o filme foi inventado, no final do século 19. Há filmes de desde 1897 com imagens do Brasil em movimento.
A Cinemateca que eu falo não é um museu só, porque muita gente acha que é um museu de imagem. Não, a Cinemateca tem três pilares como missão: O primeiro é preservar, que é a guarda desse acervo. Também tem a missão de difundir, então lá tem sala de cinema, workshop, mostra, crianças de escolas da comunidade que vão pela primeira vez assistir um filme numa tela grande. E o terceiro pilar é o restauro.
Então você tem preservar, difundir e restaurar, que aí no caso são os técnicos que vão pegar filmes degradados, que às vezes são doados ou encontrados em arquivos de outros lugares, e que vão passar por um processo para poderem ser vistos novamente. Um hospital do filme praticamente.
A Cinemateca brasileira já foi, para você ter uma ideia, a quinta Cinemateca do mundo em restauro, o que é muita coisa. Para ter esse título, é necessário ter equipamentos de ponta e pessoas especializadas. Hoje a situação que nós temos é de uma cinemateca cujos funcionários estão fazendo vaquinha para sobreviver, porque estão sem receber seus salários. Estamos no fundo de poço. Não é uma metáfora, estamos mesmo. É dramática a situação da Cinemateca brasileira neste momento.
Agora, você comentou que a Cinemateca chegou a ser a quinta em restauro no mundo. Como se dá esse reconhecimento internacional?
Ela é o maior acervo de imagens da América do Sul, tem 250 mil rolos de filmes, 40 mil títulos, entre Super 8, curtas, longa metragens. Partes grandes da história do cinema brasileiro estão ali dentro, a Vera Cruz, que foi uma produtora na Companhia Vera Cruz, a Atlântida, outra grande produtora das chanchadas brasileiras, Grande Otelo, Canal 100.
Tem acervos muito importantes ali. Fora filmes, tem documentos do cinema brasileiro, como o acervo de Glauber Rocha, Jean-Claude Bernardet, o próprio Paulo Emílio, que são roteiros, cartas entre esses cineastas, fotos dos filmes, cartazes.
É um acervo grandioso. É importante falar para as pessoas que um acervo como o da Cinemateca não é "morto", porque, por exemplo, o meu trabalho como pesquisadora é exatamente entrar num acervo desse para fazer um novo filme a partir desse material antigo de jornalismo, longa metragens, filmes de família.
Quando você vai fazer um filme sobre a Tropicália, a Maria Martins, filmes que têm um histórico para trás, tem que se aproveitar desse material que foi feito ao longo desses anos todos sobre pessoas, temas, para poder recontar essas histórias.
O filme vira filme, é ressignificado em outras produções. Então, por isso que eu acho que a Cinemateca não tem caráter de museu, é um acervo muito vivo, porque novas gerações estão assistindo a filmes antigos, filmes novos, esses filmes estão virando outros filmes, viram museu. Eu trabalhei no Museu da Língua Portuguesa, no Museu Cais do Sertão, lá de Recife, que é sobre Luiz Gonzaga.
Esses museus foram feitos a partir de filmes da Cinemateca. Hoje crianças assistem coisas sobre Luiz Gonzaga lá em Recife, o Museu da Gente Sergipana, porque esses museus interativos usam muitas imagens, e essas imagens vêm de acervos como a Cinemateca, que é o coração do cinema brasileiro e da América do Sul, em termos de acervos, .
Esse reconhecimento internacional também se reflete na comoção causada ao redor do mundo diante da situação da Cinemateca?
Houve mesmo uma comoção em relação à situação da Cinemateca atual, porque a gente fez um manifesto que foi encabeçado pela Associação Paulista de Cineastas, lido dia 4 de junho em um ato em frente à Cinemateca, e 70 instituições ao redor do mundo assinaram esse manifesto.
Essas instituições representam outras instituições muito importantes do mundo inteiro. A FIAF, que é a Federação Internacional de arquivos de Filmes, que representa 200 cinematecas do mundo, assinou. Então a FIAF assinar um documento desse está representando 200 outras entidades.
Existe realmente uma preocupação, porque isso não pode desaparecer. A memória de um país desaparecer, é uma grande tragédia, e a gente não pode deixar acontecer.
Além dos que comentou, quais outros títulos importantes da cinematografia brasileira estão na Cinemateca?
Puxa, tem uma infinidade de títulos. O Cangaceiro, por exemplo está lá, toda a produção da chanchada brasileira está lá, Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, títulos ícones no cinema brasileiro que estão lá dentro. Fora isso, toda a produção do telejornalismo da televisão Tupi, Atlântida.
Tesouros do cinema brasileiro que você não pode deixar queimar, porque, por exemplo, se não pagarem a conta, não ter uma brigada de incêndio, tem filmes de nitrato que podem entrar em autocombustão se não estiverem em condições adequadas de climatização e umidade.
O risco que a gente está correndo é seríssimo e muito próximo de acontecer, porque a Cinemateca está na UTI. Os trabalhadores estão em greve agora por tempo indeterminado. Já é a terceira greve que eles fazem, e agora é por tempo indeterminado.
As empresas que faziam a manutenção desses depósitos climatizados, o pessoal de eletricidade, a manutenção da parte elétrica, os brigadistas, bombeiros, foram embora por falta de pagamento. Então a chance de ocorrer alguma coisa lá dentro é grande, mesmo assim não tem um bombeiro para atuar ali na hora.
Agora dia 15 vai embora a empresa de segurança. Então você tem um parque tecnológico e um acervo que não pode ser avaliado em termos de custo de valor, porque é um valor imaterial e vai ficar lá 24 mil metros quadrados sem nenhuma segurança.
É um absurdo, é desesperador. Eu conheço esse acervo, trabalho lá há mais de 30 anos como pesquisadora e pensar em um desastre em um acervo desse tipo é desesperador mesmo.
Por último, Eloá, a produção audiovisual é extremamente importante na construção de uma memória e de uma formação de identidades brasileiras. Onde se encontram a Cinemateca e o cinema brasileiro?
A arte é um instrumento de reflexão. Tem gente que acha que arte é curtição, lazer. Mas a arte e cultura são instrumentos de reflexão histórica, sobre o passado. E não é à toa que esse governo não gosta de cultura e faz o possível para acabar com tudo que se refere à cultura, história e memória. Não é à toa que esse governo quer que tudo isso acabe, porque é muito útil que um povo não tenha educação, que não saiba a sua história, porque pode ser manipulado a pensar que a terra é plana, não é mesmo? E outros absurdos do gênero.
Esse descaso do governo federal em relação à Cinemateca é mais um entre muitos, entre um projeto de governo que tem a cultura como sua inimiga. E a partir daí ele trabalha nesse sentido, não de que a cultura seja valorizada, ou algo parecido. Muito pelo contrário, trabalha no sentido de acabar com isso.
Agora, o nosso papel como cidadão brasileiro e como pessoa que faz cinema também é se contrapor a esse projeto, é resistir e chamar a sociedade porque esse é um bem público, e um bem público de todos os tempos, da nossa geração, das gerações passadas e futuras. E a gente tem o dever de cuidar disso.
Ali dentro não tem só esse patrimônio dos filmes, tem um parque tecnológico. Tem muita coisa comprada com o dinheiro do nosso trabalho. Então é dinheiro público que está ali dentro. Tem telecine, uma sala de cinema espetacular, é um lugar maravilhoso.
É nosso, e a gente tem que defender isso. O governo cuida, tem o dever de cuidar, porque é um patrimônio público. Mas quando não tem o governo que faça o papel dele, a gente tem que chamar esse governo para as suas responsabilidades, porque é dever dele e é dever da gente cobrar.
Edição: Rodrigo Durão Coelho