Sucateamento

Após calote federal, Cinemateca vive abandono e corre até risco de incêndio

Maior acervo de imagens em movimento da América do Sul, pode virar fumaça a qualquer momento, alertam cineastas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Funcionários abraçam edifício sede da Cinemateca Brasileira em São Paulo em defesa da instituição federal de cinema e acervo - Trabalhadores da cinemateca/Projeções por @fluxus_

Os 73 anos de existência da Cinemateca brasileira, o maior acervo de imagens em movimento da América do Sul, podem virar fumaça a qualquer momento. Esse é o alerta de cineastas, roteiristas, outros artistas e pesquisadores diante da situação da instituição federal, que já soma, até o momento, sete meses sem recursos financeiros, 150 funcionários sem salário, sem equipe de prevenção e combate de incêndio e, a partir do dia 15 de junho, sem equipe de segurança. 

É nesse contexto, que os movimentos SOS Cinemateca, criado pela Associação Paulista de Cineastas (APACI), a Cinemateca Acesa: Frente Ampla Cinemateca Viva e Mariana em Movimento realizaram uma manifestação na capital paulista com um abraço simbólico no edifício-sede da instituição federal na zona sul da capital paulista.

A situação da Cinemateca é de abandono. Falta até mesmo recurso para quitar as contas de luz, o que compromete a segurança de 250 mil rolos de filmes e cerca de um milhão de documentos sobre o cinema nacional que estão no acervo da instituição.

Sem luz, “esses filmes podem rapidamente sofrer um processo de umidificação violenta, o que é terrível, porque tem o desenvolvimento de fungos, e fungo é uma das coisas mais difíceis de tirar de filmes”, afirma Roberto Gervitz, cineasta e um dos organizadores do protesto. 

E, sem a refrigeração das câmaras que contém os filmes feitos com nitrato de celulose, altamente inflamáveis, facilmente pode ocorrer um incêndio, como o que ocorreu no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2018. “Isso é um descalabro. A gente está tratando de uma tragédia anunciada.”

Do auge à decadência

Para o cineasta, a Cinemateca teve o auge nos anos 2000, durante os governos Lula e até metade parte da gestão Rousseff, ambos petistas: chegou a ganhar prêmios e foi reconhecida internacionalmente como um dos cinco centros mais importantes de restauro do mundo. “Funcionava a pleno vapor, participava de festivais, tinha projeções culturais periódicas para o público, ciclos dos mais variados temas”, afirma Gervitz. 

A situação começou a mudar em 2013, quando após uma denúncia de um esquema de corrupção na Cinemateca, a então ministra de Cultura, Marta Suplicy exonerou o então presidente Fábio Magalhães. A medida, considerada arbitrária e extrema por ex-funcionários da Cinemateca, causou “um terrível impacto na Cinemateca inteira, porque foi desligado seu representante pleno, a pessoa que dava o caráter para a coisa”, afirma Ugo Giorgetti, cineasta e ex-conselheiro da Cinemateca.

“De 2013 a 2018 ficou agonizando, ninguém conseguiu desligar o problema. Passou um ano e viu-se que não havia nenhum problema, nenhuma corrupção. Nada disso adiantou”, explica Giorgetti, que resume: “a Cinemateca está quebrada.”

Até um incêndio chegou a acontecer no prédio, em fevereiro de 2016, que resultou na perda de 1.003 rolos de filmes, referentes a 731 títulos.

Em 2018, o ex-presidente Michel Temer (MDB), concedeu a gestão da TV Escola para a organização social Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto. E, em um aditivo do contrato, esta também passou a ser responsável pela gestão da Cinemateca, administrando o orçamento vindo do governo federal. O vínculo iria até 2021, mas o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub encerrou o contrato com a Roquette Pinto para gerenciar a TV Escola, em dezembro do ano passado. Sem contrato, a gestão da Cinemateca também foi invalidada

De janeiro para cá, o cineasta Roberto Gervitz afirma que nem “um tostão” foi repassado para a Cinemateca, o que fez com que esta sobrevivesse apenas com os próprios recursos da Roquette Pinto. Em junho, a presidência da organização enviou uma carta para o Ministério da Educação com a cobrança de uma dívida de R$ 13 milhões.

No dia 23 de junho, o atual secretário de Cultura, Mario Frias, e o ministro de Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, visitaram a Cinemateca e prometeram uma solução para “resolver o impasse”. Até o momento, no entanto, nada foi feito. 

No governo federal, diante da situação, o presidente Jair Bolsonaro chegou a prometer um cargo inexistente para a ex-secretária de Cultura, Regina Duarte. Com a sua saída, também foi exonerado Heber Trigueiro do cargo de secretário de audiovisual, que vinha atuando na defesa da Cinemateca e foi contra a proposta do governo federal de reassumir a gestão da instituição.

Vaquinha de emendas parlamentares

Como a Cinemateca fica em São Paulo, o prefeito Bruno Covas (PSDB) ventilou a ideia de municipalizá-la. Mas nenhum projeto de lei foi apresentado até o momento. Por outro lado, na Câmara dos Vereadores do Município, o parlamentar Gilberto Natalini (PV) organizou uma “vaquinha” com outros 11 parlamentares para angariar pelo menos R$ 600 mil em emendas parlamentares destinadas à Secretaria de Cultura de São Paulo e, posteriormente, à Associação Amigos da Cinemateca.

“A vaquinha foi um ato de desespero da minha parte, porque eu via a Cinemateca sem dinheiro para contas de luz, sem dinheiro para pagar o conserto do gerador. Eu falei ‘pelo amor de deus, vai pegar fogo no acervo’”, afirma Natalini. 

O vereador observa a situação “com muita tristeza, porque o governo federal há 20 dias esteve aí com o ministro, se comprometeu com a direção da Cinemateca, falou que ia resolver, virou as costas, foi embora e até hoje não deu resposta”.

O ex-conselheiro Ugo Giorgetti ressalta a “preciosidade” da Cinemateca ao dizer que a instituição guarda a história do Brasil. “É um depositário da civilização, do nosso comportamento, da nossa identidade, do nosso modo de ser”, conclui ele.

Edição: Rodrigo Durão Coelho