Um projeto que pretende aplicar um imposto único às grandes riquezas na Argentina deverá ser apresentado no Congresso Nacional ainda este mês. O imposto se aplicaria a cerca de 15 mil pessoas físicas e jurídicas no país, que pagariam o equivalente a cerca de 1 a 2% do seu patrimônio. Dessa forma, o Estado argentino arrecadaria aproximadamente US$ 3 bilhões, que serviriam para atender as regiões mais afetadas pela pobreza e pela crise agravada pela pandemia do coronavírus.
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O assunto surgiu em abril, a poucos dias do anúncio do isolamento social, preventivo e obrigatório no país. Impulsionado pelo partido governista, Frente de Todos, o projeto foi encabeçado pelo deputado nacional Máximo Kirchner, filho da ex-presidenta Cristina Kirchner. Há uma expectativa no setor progressista de que o projeto avance devido à urgência dada a crise econômica, mas, assim como a pretensão de expropriar a cerealífera Vicentin, o projeto ainda está em discussão.
Entre o atual índice de pobreza que alcança 16 milhões de pessoas e os altos indicadores de fuga de capitais que o país tem atualmente, um imposto sobre as grandes fortunas é tão necessário quanto um desafio aos interesses dos mais ricos, que têm lançado uma forte campanha contra o projeto.
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Há enormes oportunidades de negócio para quem tem capital para investir, e vai haver muita concentração econômica.
“É impossível sustentar a quarentena e encarar a recuperação sem uma contribuição dos que podem fazê-lo", afirma a economista Eva Sacco, do Centro de Economia Política Argentina (CEPA).
“Os únicos que estão em condições de fazê-lo são as grandes fortunas que, em muitos casos, não só não perderam como se viram favorecidas com a quarentena. O Mercado Livre, uma das maiores empresas do país, multiplicou seu valor em poucos dias. Há enormes oportunidades de negócio para quem tem capital para investir, e vai haver muita concentração econômica. É mais que justo pedir uma contribuição a esses setores; mas não só por justiça, senão porque é a única alternativa possível para sustentar o isolamento e não ter uma situação como a que vive o Brasil, por exemplo", reforça a economista.
Evasão fiscal
A Argentina já possui um imposto sobre bens pessoais, de maneira regular – e que, em linhas gerais, têm pouco impacto em termos de arrecadação –, o que não estaria relacionado ao imposto sobre as grandes fortunas.
A diferença foi definida em uma conferência sobre o assunto pela deputada e coautora do projeto Fernanda Vallejos (Frente de Todos): “O imposto sobre as grandes fortunas é de caráter extraordinário e seria pago uma única vez, e estaria diretamente relacionado à crise do coronavírus e às fortunas dos residentes que declaram sua riqueza no país”, disse.
Da totalidade de ativos exteriorizados dos argentinos, 70% ou mais não estão declarados à fiscalização nacional.
Uma porcentagem muito elevada das riquezas se mantêm fora do país e/ou não estão declaradas, o que marca a problemática da fuga de capitais na Argentina. Estima-se que cerca de US$ 235 bilhões não estão declarados, segundo o relatório da equipe de Vallejos. Com isso, o Estado estaria deixando de arrecadar cerca de U$S 1,2 bilhão em impostos sobre bens pessoais.
“Entre as pessoas que compõem as parcelas superiores na escala de ingressos, 80% da riqueza declarada está fora da Argentina", afirma Vallejos. “Ao mesmo tempo, fizemos um balanço entre os dados da contabilidade nacional e os registros fiscais e, da totalidade de ativos exteriorizados dos argentinos, 70% ou mais não estão declarados à fiscalização nacional.”
O economista Claudio Katz, integrante do coletivo Economistas de Esquerda, pontua que um dos argumentos da campanha da direita contra o projeto é, justamente, a pressão tributária já existente. “Dizem que a carga tributária já é elevada, o que é falso, porque a média da Argentina é menor que a média latino-americana e muito menor que qualquer país desenvolvido", afirma. “Inclusive a Angela Merkel, em uma visita que fez ao presidente Fernández, disse, surpreendida, que pelos dados, os impostos sobre os patrimônios na Argentina são baixíssimos comparados aos da Alemanha.”
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Repensar a distribuição de riquezas
Projetos similares são discutidos em outros países da América Latina, como Equador, Chile, Peru, e inclusive no Brasil, marcados pelo contexto do coronavírus. Essas propostas levantam debates sobre a desigualdade social da região, e deixam à mostra como operam essas estruturas, em grande evidência pela pandemia.
O trabalhador paga diretamente 38% de impostos sobre seu salário. E os senhores das grandes fortunas não querem pagar 1% em função dessa situação de emergência.
O médico sanitarista e militante peronista Jorge Rachid enfatiza: a dicotomia entre saúde e economia é falsa. “Nunca houve contradição entre saúde e economia. Os países que adotaram outras formas de combate à pandemia viram quedas no PIB similares ou maiores que as da Argentina."
Para Rachid, o individualismo meritocrático do neoliberalismo se ampliou com a crise sanitária. “O trabalhador, que não pode evadir, paga 11% de aposentadoria, 3% de plano de saúde e 3% de PAMI [Programa de Assistência Médica Integral]; vai ao mercado e paga 21% de IVA [Imposto ao Valor Agregado]. Ou seja, o trabalhador paga diretamente 38% de impostos sobre seu salário. E os senhores das grandes fortunas não querem pagar 1% em função dessa situação de emergência”, aponta.
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Nesse sentido, abre-se também o debate sobre uma reforma tributária mais ampla, para além do projeto de imposto sobre as grandes fortunas. “Os trabalhadores, os pequenos empresários, as mulheres, já fizeram todo o possível resignando ingressos, ficando em casa – em muitos casos, fechando as empresas e perdendo seus trabalhos.", diz Sacco.
“Temos que reformar nosso sistema tributário, gerar maior arrecadação na ponta da pirâmide, tirar pressão do meio e incrementar as transferências à base. Essa será uma das ferramentas fundamentais para crescer ao fim da crise. Não é a única, e ela não é suficiente. Mas é, sim, fundamental.”
Enquanto aspectos técnicos e práticos do projeto do imposto sobre as grandes fortunas ainda estão em discussão e negociação, debates como a distribuição de riquezas surgem como um novo cenário, segundo Rachid. “A pandemia provocou a recuperação do Estado como ordenador social e deslocou o mercado. É um conceito muito forte”, reflete, acrescentando o aspecto da solidariedade como outro importante resgate que marcaria a derrota do capitalismo. “Vamos confrontar uma Argentina colonial, oligárquica, trapaceira, contrabandista, ‘fugadora’ de capitais, com um povo argentino que quer recuperar o marco solidário social, conforme votou em outubro de 2019.”
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Edição: Rodrigo Chagas