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Coluna

Argentina: democracia e dificuldades energéticas

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O governo de Alberto Fernandez tenta restabelecer o barril criollo, com preços fixados administrativamente, para proteger os produtores nacionais. - Télam
Estado e mercado se alternaram como principal protagonista do setor energético do país

Na última década do século passado, várias crises se sucederam e os latino americanos passaram a denominá-las como “efeito Tequila”, referente à crise originada no México, “efeito Orloff”, da crise do rublo e “efeito tango e samba”, das crises argentinas e brasileiras. O “efeito tango” antecedia o “efeito samba”. Será que isto ocorre também nesta segunda década do novo século?
A economia argentina viveu 2019 com a queda de seu PIB, aumento da informalidade no mercado de trabalho e alto desemprego. A inflação é alta e a taxa de cambio vinha se depreciando, mesmo antes da crise de covid-19. A política econômica do novo governo implementou novas políticas para aumentar as receitas fiscais e a redistribuição a favor dos mais pobres, que foram ainda maiores agora com a pandemia.
Para o futuro as previsões são sombrias, com o aumento da queda do PIB, aceleração da inflação e deterioração das contas fiscais, acompanhados de elevação do desemprego, da informalidade e da pobreza.


Principais indicadores macroeconômicos selecionados.

A Argentina vive um processo político de consolidação de sua democracia, com o retorno ao governo de forças progressistas, derrotando o governo anterior, que adotava políticas ultraliberais e que foram responsáveis pelas dificuldades econômicas do governo atual.
Um dos elementos chaves para a análise da situação econômica da Argentina é a avaliação do papel do Estado no setor de hidrocarbonetos, tanto o petróleo como, principalmente, o gás natural. Em 2011, a matriz energética da Argentina tinha 50,3% de suas fontes primárias provenientes do gás natural, 36,4% do petróleo, 5,1% de hidroelétricas, com os renováveis, nuclear e carvão correspondendo ao restante. A descoberta do principal campo de gás natural - Loma la Lata, na Bacia de Neuquén – foi a responsável pelo grande crescimento do gás natural como maior fonte primária de energia do país.
A produção e as exportações de Combustibles y Energía cresceram, saindo de 3,6% do total de exportações do país em 1989, para 18% em 2005, transformando a Argentina em um país fortemente exportador de petróleo e gás natural. Vários conflitos territoriais ocorreram na expansão da infraestrutura para garantir este crescimento extrativista, sendo um dos mais importantes o da província de Neuquén, referente ao projeto Mega, de separação do gás natural e gasodutos no polo petroquímico de Bahia Blanca.
A produção de petróleo, bem como suas reservas, está representada na figura abaixo onde se verifica a trajetória de declínio nas últimas décadas. Os reservatórios de Vaca Muerta, com alto potencial para shale gas reacenderam as esperanças do crescimento da produção de hidrocarbonetos no país.
A produção argentina de petróleo vem declinando, acompanhada de queda das reservas desde o início do século XXI, com o gás natural com a mesma tendência, ainda que mais suavemente.
Há autores que chamam a atenção para a continuidade de elementos estruturantes, tanto no período de predominância de políticas neoliberais, como naqueles anos em que o estado aumentou seu protagonismo, em função de características setoriais.


Produção e reservas de petróleo Argentina 1980-2018. Mil barris dia de produção e bilhões de barris de reservas. / Fonte: BP Statistical Review 2019.

Estado e mercado se alternaram como principal protagonista do setor energético do país, com o final dos anos noventa se constituindo no ápice da privatização e encolhimento do Estado, seguido, no início dos anos 2000, de uma retomada progressiva do seu papel na estrutura produtiva e regulatória do setor.
A política neoliberal avançou muito nos governos de Carlos Menen (1989-1995 e 1995- 1999). Sob o governo Menen, a privatização de empresas estatais e desregulamentação dos mercados, além da suspensão dos subsídios e desonerações caracterizaram a política econômica. O marco regulatório para os hidrocarbonetos passou a ter como objetivo “fixar regras que privilegiam os mecanismos de mercado para a fixação dos preços, determinação de quantidades, valores de transferências e bonificações nas  distintas etapas da atividade, [...] com a finalidade de que esta regulação conduza à efetiva e livre competição em todos os segmentos, no menor tempo possível, refletindo os valores internacionais” (Decretos 1221/1989 e 1105/1989). Néstor Kirchner, de inspiração peronista, governou de 2003-2007, sendo sucedido por sua viúva Cristina Kirchner, em dois mandatos de 2007 a 2015. O ultraliberal Mauricio Macri (2015-2019) tentou desmontar a construção dos governos kirchneristas, mas foi derrotado por Alberto Fernandez (2019- presente), com Cristina Kirchner como sua vice-presidente.
A Argentina entrou no século XXI com um governo progressista, que pretendia reverter os efeitos das políticas neoliberais implementadas pelos governos anteriores, que tinham levado a um grande caos econômico e social no país. Em dezembro de 2003, Néstor Kirchner foi eleito presidente em uma plataforma progressista, ainda que não de esquerda, mesmo que tenha reestatizado várias empresas anteriormente privatizadas, tenha implementado uma política de desenvolvimento nacional com inclusão social, fortemente lastreada na utilização do estado, para redistribuir os ganhos das exportações crescentes da época. Cristina Kirchner sucede a Nestor Kirchner, assume em 2007 e lança dois programas: o Petróleo Plus e o Refino Plus. Estes programas emitiam certificados transferíveis, que poderiam ressarcir o pagamento de impostos das empresas que conseguissem ampliar as reservas, a refinação e a produção de petróleo, com a descoberta de novos reservatórios. O governo pretendia desacoplar os preços domésticos dos preços internacionais e utilizar a recém-criada estatal ENARSA (2004) para desenvolver atividades exploratórias. Não deu certo.
No final do governo de Cristina Kirchner, algumas empresas internacionais entraram no setor. A Argentina atraiu alguns investimentos nos seus reservatórios de petróleo não convencional (shale gas e tight oil). A Chevron entrou em 2013, nos campos de Loma La Lata-Sierra Barrosa e Loma Campana, em associação com a YPF, com um programa de investimentos que pretendia aumentar, até 2017, a produção de 50 mil barris dia de petróleo e três milhões de metros cúbicos de gás. Conflitos societários se seguiram entre as duas empresas, dificultando a implementação do plano exploratório.
Há autores que consideram que este foco no ataque ao neoliberalismo ofuscou o enfrentamento dos graves problemas que têm origem na natureza capitalista destas economias, sob a dominação do grande capital, inibindo reformas mais estruturais de mudanças destas sociedades. Crescer com distribuição de renda era o objetivo máximo dos governos dos Kirchner, assim como de vários outros da chamada “Onda Rosa” dos países latino americanos (Brasil, Bolívia, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela). Como diz Aráoz, em artigo de 2014: "No hemos asistido en algún sentido a un repliegue o cierto desmontaje del capitalismo, sino a una fase, primero, de estabilización, y luego, de profundización. Con lo cual, todos sus problemas y efectos intrínsecos, es decir, sus impactos en términos de explotación estructural de “la riqueza social en sus fuentes”, la Tierra y el Trabajo (Marx, 1867), y más aún, de depredación de la Vida en todas sus formas, lejos de haberse atenuado, se han agravado e intensificado".
A crise econômica argentina do início dos anos dois mil provocou uma grande depreciação da moeda nacional. Um dos elementos econômicos que possibilitou esta aceleração do crescimento foi o ciclo altista dos preços de vários produtos primários, produzidos pelos países latino americanos que formularam uma versão progressista do extrativismo clássico, tanto criticado pelos autores desenvolvimentistas de décadas passadas.
Em relação a Argentina, no período kirchnerista avançou a “sojicização” do país, com o crescimento de 13 para 20 milhões de hectares de área plantada com soja transgênica de 2003 a 2012, aumento do desmatamento, precário manejo dos mananciais de água, expansão dos desiertos verdes com florestas mono produtoras para a indústria papeleira, fortalecimento da mineração predatória de grande escala e manutenção da ação dilapidadora da privatização da YPF até 2013, quando então foi reestatizada a empresa petrolífera.
Não há dúvidas que, neste período, a economia argentina cresceu bastante. O PIB aumentou de 7,4% ao ano na média de 2003-2010, criando mais de cinco milhões de empregos formais, reduzindo as taxas históricas de desemprego. As exportações explodiram, melhorando substancialmente as condições de acesso às reservas internacionais.
No plano das políticas sociais, a recuperação das receitas fiscais permitiu a adoção de políticas de estímulos ao consumo e a produção interna, com redistribuição de renda aos mais pobres. Muitos programas de transferência direta de renda aos desempregados e mais pobres foram implementados, além da ampliação da cobertura dos sistemas de previdência. Os salários cresceram e a desigualdade diminuiu.
Do ponto de vista industrial, comenta o mesmo artigo de Aráoz:  "[...] lo que se expandió es una industria demasiado volcada al procesamiento básico de materias primas y a los sectores de armaduría (automotriz, electrodomésticos y electrónica), todos sectores fuertemente dominados por grandes corporaciones transnacionales".
A história da Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF) é um exemplo das mudanças da Argentina na transição entre os séculos XX e XXI. A empresa foi totalmente privatizada e vendida para a espanhola Repsol, nos anos noventa do século passado, e a regulação do setor de petróleo e gás saiu do governo central para as províncias argentinas.
No período de privatização acelerada, em poucos anos foram vendidas quase todas as empresas estatais da área de energia e foram outorgadas concessões para muitas empresas privadas, nacionais e internacionais. A arquitetura institucional do mercado de petróleo na Argentina estava baseada em uma mesa de crudos, gerida pela YPF, que extraia diretamente 65% do petróleo local, com o restante provindo de contratos de serviços, refinava 70% da carga doméstica e controlava 63% da comercialização nacional.
A liberalização dos preços foi tentada, mas com muitas dificuldades. Durante os governos Kirchner, mesmo antes da reestatização da YPF, o governo tentou manter mecanismos que permitissem separar os preços internacionais dos domésticos, para em alguns momentos de alta do petróleo cru, desestimular as exportações e proteger o refino nacional.
Agora ocorre o inverso, com os preços baixos. O governo de Alberto Fernandez tenta restabelecer o barril criollo, com preços fixados administrativamente, para proteger os produtores nacionais, inclusive do petróleo não convencional de Vaca Muerta, por exemplo, contra os baixos preços internacionais. As refinarias são obrigadas a pagar aos produtores nacionais esse preço, na aquisição de suas cargas a processar, que também têm cotas de petróleo doméstico, para impedir as importações. O governo tenta também influenciar nos preços dos derivados no varejo.
A YPF e a Shell são integradas, o que faz com operem tanto no downstream (refino) como no upstream, se beneficiando no primeiro caso e perdendo margens no segundo. Várias empresas menores na Argentina como, entre outras a Pan American Energy (PAE), Vista Oil, Pluspetrol, Tecpetrol e Exxon, que só atuam no upstream, serão apenas beneficiadas.
O governo de Buenos Aires está tentando adotar mecanismos tributários para evitar os impactos sobre o preço dos combustíveis nas bombas, mesmo que às custas de uma certa contração das margens de refino.
A posição do governo central argentino foi resultado da pressão dos governos provinciais, que recebem os royalties da produção e que estavam com graves crises fiscais, por causa dos preços internacionais.
Se no tempo kirchnerista a soja cresceu muito na Argentina, os grandes cultivadores apoiaram fortemente ao Mauricio Macri na última eleição. A quarta maior sojicultora do país – a Vicentin – que foi grande apoiadora financeira da continuidade do governo ultraliberal entrou em falência e, agora, o governo Fernandez está estatizando a empresa por sua importância na produção de alimentos e exportações. Quem vai gerir a empresa será a petrolífera, depois de estatizada, YPF.
Diferente do que propunham os que defendia a privatização acelerada, o mercado de combustíveis na Argentina manteve um alto grau de concentração, com oligopólios privados substituindo os públicos. Mesmo privatizada, a YPF continuou proprietária de grande parte do refino e responsável pela maior parte da adição de capacidade de destilação no país, com as outras empresas preferindo exportar o petróleo cru a aumentar a capacidade de refino nacional. Os investimentos em refino se concentraram em melhorar a qualidade do produto, em termos de redução das partes de enxofre e aumentar a eficiência operacional das refinarias, mais do que aumentar sua capacidade de produção.
A pergunta que se faz para o Brasil é se poderemos, no Brasil do futuro, da forma que a Argentina fez, rever as mudanças ultraliberais do setor de petróleo e gás, resgatando o papel chave do estado neste setor. Mesmo com dificuldades, a experiência argentina mostra a importância de manter instrumentos de intervenção do governo no setor, para intervir na distribuição da renda petroleira. Deixada ao livre sabor do mercado, ela vai para os maiores e mais fortes.

Edição: Elen Carvalho