Manobra

Artigo | Por que Nestlé quer vender marcas de água engarrafada nos EUA e Canadá?

A partir da "venda", quaisquer problemas seriam de responsabilidade do novo proprietário, não mais da Nestlé

Brasil de Fato | São Paulo (SP)* |
Mais do que uma decisão empresarial, esta parece ser uma manobra para proteger a estreita relação entre a Nestlé e o governo suíço da atenção pública - Robin Marchant / Getty Images / AFP

Foram publicados recentemente vários artigos na imprensa da Suíça, do Canadá e dos EUA informando que a Nestlé considera vender todas as suas marcas de água engarrafada nos Estados Unidos e no Canadá.

"O Conselho de Administração da Nestlé S.A. aprovou uma nova direção estratégica para o seu negócio da água. A empresa irá concentrar-se nas suas marcas icônicas internacionais, as suas marcas líderes de água mineral premium, e investir na hidratação saudável e diferenciada, tais como produtos de água funcional. (...) Simultaneamente, o Conselho de Administração concluiu que as suas marcas regionais de água de nascente, o negócio da água purificada e o serviço de entrega de bebidas na sua unidade Nestlé Waters North America estão fora deste foco. Consequentemente, a empresa decidiu explorar opções estratégicas, incluindo uma possível venda, para a maioria das atividades da Nestlé Waters na América do Norte (Estados Unidos e Canadá), excluindo as suas marcas internacionais. Prevê-se que esta revisão esteja concluída no início de 2021", diz o trecho de uma das matérias.

No entanto, mais do que uma decisão empresarial, esta parece ser uma manobra para proteger a estreita relação entre a Nestlé e o governo suíço da atenção pública.

Esta estratégia foi anteriormente utilizada pela Nestlé no Brasil em 2018, quando a Nestlé anunciou a venda de todas as suas marcas de água engarrafada no Brasil

Há mais de 15 anos, diversos movimentos sociais na região do Circuito das Águas em Minas Gerais lutam contra as instalações de captação e engarrafamento de água da Nestlé na cidade de São Lourenço. Em 2006, estes movimentos conseguiram uma primeira vitória significativa: a Nestlé teve de parar a produção de água engarrafada “Pure Life” em São Lourenço.

Esta vitória só foi possível porque o movimento de cidadãos levou a sua luta para a Suíça, onde várias ONG apoiaram a campanha. Artigos sobre a Nestlé em São Lourenço apareceram na imprensa suíça em francês, italiano e alemão – todas línguas faladas na Suíça - e a televisão suíça italiana fez um pequeno documentário sobre a situação em São Lourenço.

Este provou ser um fator decisivo na luta dos cidadãos contra a gigantesca empresa: a campanha na Suíça foi demasiado prejudicial para a imagem da Nestlé em seu país de origem.

Em 2018 realizou-se em Brasília o Fórum Mundial da Água. O WWF – da sigla em inglês World Water Forum - é o evento internacional mais importante das empresas privadas dedicadas à privatização da água. Em 2018, pela primeira vez, o Fórum teve o patrocínio maciço do setor das águas engarrafadas: Coca-Cola, Nestlé e AB InBEV.

A "mensagem" do evento em 2018 para o Brasil foi: queremos a sua água. Alguns meses após este evento, a Nestlé anunciou que venderia suas marcas brasileiras de água engarrafada. Naquele contexto, com o mercado de água engarrafada em expansão, esta decisão da Nestlé de vender suas marcas brasileiras não fazia sentido, a não ser que esta venda fosse uma manobra com outros objetivos.

A Nestlé esteve presente no Fórum Mundial da Água no Brasil no Pavilhão Oficial da Suíça, juntamente com as ONG suíças Helvetas e Caritas - Suíça. A Agência Suíça para o Desenvolvimento e Cooperação (SDC na sigla em inglês) também estava presente.

Embora a Suíça tenha um dos melhores serviços públicos de saneamento e abastecimento de água, o governo da Suíça apóia firmemente a privatização da água em outros países, principalmente através do SDC e da "cooperação para o desenvolvimento".

A Nestlé é um parceiro do SDC em vários projetos e o Water Resources Group (WRG), uma iniciativa lançada pela Nestlé, Coca-Cola e Pepsi para apoiar a privatização da água em todo o mundo, foi financiado pelo SDC e o próprio diretor do SDC tem assento no "Conselho Diretor" do WRG.

Logo em seguida ao Fórum Mundial da Água, diversas ONGs, sindicatos e movimentos sociais do Brasil, conscientes desta estreita relação entre o SDC e a Nestlé, enviaram uma carta pública ao Embaixador Manuel Sager, então Diretor-Geral da SDC, solicitando que a entidade deixasse de apoiar as políticas de privatização da Nestlé e, em vez disso, passasse a apoiar parcerias público-públicas, ajudando assim países mais pobres a desenvolverem as suas próprias empresas públicas de água, de acordo com o modelo vigente na Suíça.

A ONG da Suíça Multiwatch traduziu esta carta para o alemão e tornou-a pública na Suíça. Além disso, o Multiwatch lançou uma outra carta de apoio à solicitação dos brasileiros com a assinatura de várias organizações suíças, incluindo partidos políticos.

A publicidade dada à carta dos movimentos e organizações do Brasil, junto com o apoio de diversas instituições da Suíça, ajudou a expôr para a opinião pública da Suíça a estreita relação entre o SDC e a Nestlé.

E foi nesse contexto que a Nestlé anunciou subitamente a sua decisão de vender todas as suas marcas brasileiras de água engarrafada. Foi uma decisão tomada a fim de proteger a imagem do SDC e evitar outra campanha internacional contra a Nestlé no Brasil.

Ao "vender" as marcas de água engarrafada a uma empresa brasileira, a Nestlé se distanciou dos diversos problemas causados pelas captações de água e seu engarrafamento, protegendo assim a sua imagem e a do SDC de uma campanha internacional vitoriosa como a que atingiu duramente a água engarrafada "Pure Life" no Brasil. A partir da "venda", quaisquer problemas seriam de responsabilidade do novo proprietário, não mais da Nestlé.

A "venda" das marcas da Nestlé não mudou nada no Brasil em relação aos problemas ambientais e sociais. As operações de engarrafamento e os danos causados pelas instalações de água engarrafada continuaram após a transferência da propriedade das marcas da Nestlé para a empresa brasileira.

A única mudança visível foi a atenção dos meios de comunicação e da imprensa em geral dada aos movimentos de cidadãos: estes passaram a receber menos atenção da imprensa porque a luta contra uma empresa transnacional gigante como a Nestlé tem muito mais apelo do que a luta contra uma empresa de engarrafamento brasileira.

Sobre a venda em si, não é possível confirmar se ocorreu ou não, uma vez que tais transacções são mantidas em segredo e, além do mais, existem várias possibilidades para a Nestlé de manter, através de terceiros, a propriedade das marcas.

E cabe lembrar que na imprensa sempre se anunciou a venda das marcas de água engarrafada, nunca se informou nada sobre a propriedade das fontes de água que abastecem estas marcas que, ao que tudo indica, permaneceram propriedade da Nestlé, com ou sem venda das marcas de água.

Esta situação é muito semelhante ao que ocorre hoje nos EUA e no Canadá em relação à Nestlé. Uma breve cronologia ajuda a compreender esta história.

Em fevereiro de 2019, teve lugar na cidade de Vittel, na França, um primeiro encontro internacional entre movimentos que lutam contra o acaparamento de água da Nestlé - forma ilícita de acumulo de mercadoria e especulação com lucros extorsivos para garantir monopólio do produto - , do qual participei junto de grupos do Canadá e da França.

Em novembro de 2019 a organização Wellington Water Watchers, sediada no Canadá, organizou o evento "All Eyes on Nestlé", que reuniu movimentos de cidadãos dos Estados Unidos, Canadá, França, Brasil e Suíça, todos empenhados na luta contra a Nestlé. Outra reunião internacional, marcada para Março de 2020 na Suíça, foi cancelada devido à pandemia da covid-19.

Neste meio tempo, o Ministro das Relações Exteriores da Suíça, Ignazio Cassis, promovia uma nova estratégia para a SDC: parcerias ainda mais estreitas com o setor privado - incluindo a Nestlé - na cooperação para o desenvolvimento da Suíça.

Um passo importante nesta direcção já foi dado pela SDC em outubro de 2019, quando Christian Frutiger – ex-Diretor Global de Assuntos Públicos da Nestlé (Head of Public Affairs) - foi nomeado Vice-Diretor do SDC!

Esta nomeação teria passado despercebida do público suíço se não fosse uma petição internacional lançada nos Estados Unidos pela Story of Stuff e dirigida a Ignazio Cassis exigindo a revogação da nomeação de Christian Frutiger. Esta petição chamou a atenção da imprensa suíça que passou a publicar artigos sobre a questão.

A organização da Suíça Public Eye publicou em maio deste ano um relatório em francês sobre a relação entre o setor privado e o SDC. A Public Eye teve acesso a alguns documentos oficiais do SDC e os divulgou neste relatório, incluindo um "Memorandum of Understanding" - MOU (Memorando de Entendimento em português) assinado em 2017 entre a Nestlé e o SDC.

Os nomes daqueles que assinaram este documento em nome da Nestlé e do SDC do documento original obtido pela Public Eye foram censurados, mas um jornalista do jornal suíço BLICK publicou um artigo no domingo, 7 de Junho, confirmando que Christian Frutiger assinou o documento em nome da Nestlé.

Para que fique claro: o SDC e a Nestlé assinaram um documento comum onde, entre outras coisas, está escrito o seguinte na página 3:

"Por conseguinte, a Nestlé está disposta a investir recursos e conhecimentos nas comunidades e no meio ambiente através de parcerias público-privadas, desde que os investimentos também criem valores empresariais a longo prazo".

Menos de dois anos depois, Christian Frutiger, que assinou este documento em nome da Nestlé, foi nomeado Vice-Diretor do SDC. Sob o seu controle direto no SDC estão o Programa de Mudança Climática e o Programa... Água!!! A relação incestuosa entre a Nestlé e o SDC, bem como o ministro Ignazio Cassis, começaram a ser muito criticados pela imprensa e pela opinião pública na Suíça.

Algumas organizações do Canadá enviaram neste mês de maio cartas à Alliance Sud - uma coligação de ONG suíças - manifestando a sua preocupação com a nomeação de Christian Frutiger para o SDC e informando a Alliance Sud sobre alguns dos problemas com a Nestlé no Canadá.

E foi dentro deste contexto que a Nestlé anunciou que está considerando vender as suas marcas de água engarrafada nos Estados Unidos e no Canadá.

É muito difícil não ver, neste anúncio, uma estratégia semelhante à utilizada no Brasil para proteger a Nestlé e o SDC na Suíça. Por que é que a Nestlé estaria avalaindo vender as suas marcas de água engarrafada nos EUA e Canadá justamente agora?

Se as marcas de água engarrafada dos EUA e do Canadá forem vendidas, a Nestlé deixa imediatamente de ser o alvo das ações dos diversos grupos comunitários e movimentos que lutam para manter as suas águas ou proteger o seu ambiente - este problema é transferido para os novos proprietários.

E ainda mais: uma campanha internacional dirigida à Nestlé na Suíça devido às suas atividades nos EUA e no Canadá é evitada, exatamente como aconteceu no caso do Brasil. A Nestlé Suíça pode afirmar que já não tem nada a ver com estes problemas, mesmo que a "venda" seja apenas um estratagema, uma ficção construída exatamente para evitar uma campanha internacional centrada na Suíça.

Uma campanha deste tipo mostraria também que existem padrões que se repetem onde quer que a Nestlé esteja a retirar água para as suas instalações de engarrafamento - os problemas nas comunidades nos EUA, no Canadá, na França ou no Brasil são sempre os mesmos e, portanto consequências de uma política internacional decidida nos mais altos escalões da empresa na Suíça.

O SDC, o Governo da Suíça, partidos políticos suíços - da direita à esquerda – e muitas ONGs que trabalham para proteger a imagem da Nestlé na Suíça são salvos de uma situação muito embaraçosa caso as organizações de cidadãos do Canadá e dos EUA e americanos não venham mais à Suíça denunciar as ações da Nestlé nas comunidades destes países.

A Nestlé está bem ciente de que os movimentos sociais que a combatem no Canadá e nos Estados Unidos têm os meios e o poder para desafia-la em seu país de origem, a Suíça. E embora o SDC não tenha nenhum projeto de "cooperação para o desenvolvimento" em países do Norte e que portanto, nada tenha a ver com países como a França, o Canadá ou os EUA, o fato de que nestas ricas democracias ocidentais diversas comunidades tenham que lutar contra a Nestlé para preservar o seu ambiente e sua água, é um sinal claro do que pode acontecer quando esta mesma corporação - com o apoio do SDC - atua em países muito mais pobres, com instituições democráticas muito mais frágeis.

Serão tomadas todas as medidas necessárias e possíveis para proteger a estreita relação da Nestlé com o governo da Suíça e o SDC de críticas dentro da própria Suíça. A imagem da Nestlé na Suíça é demasiado valiosa e a parceria com o governo suíço demasiado importante. Esta é a principal razão pela qual a Nestlé considera "vender" suas marcas de água engarrafada nos EUA e no Canadá: para que tudo continue igual.

* Franklin Frederick é ativista ambiental

Edição: Leandro Melito