Nova Delhi, 25 de fevereiro de 2020. Melania Trump, esposa do presidente dos EUA, assiste a uma exibição de yoga em uma escola pública da Índia. Em seguida, junta-se aos estudantes em um exercício de meditação, como parte da disciplina “Aula da Felicidade”. A 20 km dali, grupos de extrema direita aliados do primeiro-ministro, Narendra Modi, atacam opositores com pedras e vandalizam comunidades muçulmanas, queimando carros, casas e mesquitas.
A discrepância entre as duas cenas é um emblema das contradições do atual governo indiano. Entre dezembro de 2019 e o início da pandemia, 78 pessoas foram mortas no país durante protestos contra mudanças nas regras de cidadania que ameaçam colocar milhões de muçulmanos na ilegalidade por falta de documentos.
O yoga é o símbolo máximo do soft power (“poder brando”) da Índia, ou a face benévola do hinduísmo por meio da qual o governo consolida sua atuação no terreno das relações exteriores.
O Dia Internacional do Yoga, comemorado neste domingo (21), foi criado por iniciativa de Modi e costuma reunir multidões nos cinco continentes. Este ano, pela primeira vez, o governo indiano não organizou sessões coletivas ao ar livre. Por conta da pandemia, o tema da edição 2020 é “Yoga em casa e com a família”.
O primeiro-ministro fez um pronunciamento à nação às 6h30, seguido do ministro do Yoga, Shripad Naik, que afirmou em cadeia nacional: "Quem pratica yoga tem menos chance de ser infectado com o coronavírus".
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Estereótipo
Yoga é um conceito reivindicado por religiões como hinduísmo, jainismo e budismo, e contempla um conjunto de disciplinas físicas tradicionais originárias da Índia. A face mais conhecida no Ocidente são os exercícios de alongamento, respiração e flexibilidade associados a práticas meditativas.
Segundo a Federação Internacional do Yoga, os Estados Unidos têm 30 milhões de praticantes, o que equivale a 9% da população do país. Na Índia, a proporção é de 7,5%, contrariando um estereótipo difundido ao redor do mundo.
“A popularização do yoga no Ocidente começou em meados do século 19, então não é resultado de um projeto do BJP [partido de Modi]. O que ele faz é exportar um olhar enviesado sobre o yoga e uma identidade muito específica da Índia para os praticantes”, afirma Patricia Sauthoff, doutora pela Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, no Reino Unido, e mestre em história com foco em religiões no sul da Ásia.
Uma aula de yoga em um bairro de classe média da capital Nova Delhi custa entre R$ 150 e R$ 450 por mês. Oito a cada dez indianos têm renda mensal inferior a 10 mil rúpias, o equivalente a R$ 675,00. O setor movimenta cerca de R$ 150 bilhões por ano em todo o planeta.
“Hoje, no Brasil ou na Europa, você encontra mais [estúdios de] yoga do que na Índia”, observa a antropóloga Mariana Faiad Batista Alves, que estudou o sistema de castas e suas implicações na Índia em suas pesquisas de mestrado e doutorado. “Quem vai à Índia percebe de cara que é uma prática da classe média, muitas vezes sexista e elitista, de classe e de casta”, acrescenta, lembrando as frequentes acusações de assédio sexual contra gurus e instrutores de yoga.
Nacionalismo hindu
Vegetariano e praticante de yoga, Modi filiou-se há 50 anos ao Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), organização com 6 milhões de membros que opera como um grupo paramilitar.
O RSS se opôs à independência da Índia, em 1947, e propõe a “refundação” do país com base nos valores do hinduísmo. A organização defende a perpetuação do sistema de castas, que divide a sociedade em grupos hereditários.
Os hindus acreditam que cada grupo se origina de uma parte do corpo do deus Brahma, considerado o criador do Universo. Os brâmanes, por exemplo, teriam nascido da cabeça, e os dalits, “intocáveis”, teriam se originado da poeira sob os pés do criador. Cada grupo, ou casta, estaria destinado a exercer uma função diferente na sociedade – os brâmanes seriam intelectuais, enquanto dalits trabalhariam com lixo ou esgoto.
A Constituição de 1950 proibiu a discriminação de castas, mas não erradicou a violência nem o domínio exercido pelos brâmanes. O RSS, que representa o nacionalismo hindu, nunca concordou com essa parte do texto e questiona o secularismo – liberdade de crença e separação entre instituições governamentais e religiosas – como princípio fundamental.
Modi é conhecido nacionalmente desde 2001, quando se tornou ministro-chefe do estado de Gujarat pelo Partido do Povo Indiano (BJP), braço político do RSS. O período foi marcado por episódios de violência contra minorias religiosas. No final de fevereiro de 2002, 790 muçulmanos foram mortos em três dias no estado. Acusado de ser cúmplice dos crimes, Modi passou a ser idolatrado por fundamentalistas hindus dentro e fora de Gujarat.
Eleito primeiro-ministro em 2014, o político do BJP precisou acalmar os ânimos fora do país e esclarecer que não pretendia romper com seis décadas de democracia na Índia. Só no primeiro ano de governo, ele visitou 25 países – o brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido), por exemplo, visitou dez.
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Em sua primeira participação na Assembleia Geral das Nações Unidas, enquanto a mídia internacional se preparava para possíveis ataques a opositores e minorias, Modi falou sobre os benefícios do yoga.
“Yoga não é apenas um exercício, mas um meio de se conectar com o mundo e a natureza”, disse o primeiro-ministro. “Ela deve provocar mudança em nosso estilo de vida e criar consciência, além de ajudar a combater as mudanças climáticas. Vamos construir juntos um Dia Internacional do Yoga”, propôs.
O discurso inusitado foi bem recebido, e 175 países abraçaram a ideia. Desde então, o Dia Internacional serve de palanque para o primeiro-ministro. Em 2015, ele reuniu 30 mil pessoas para praticar yoga na avenida Rajpath, diante do palácio presidencial, em Delhi. Na ocasião, após 35 minutos de exercícios, Modi afirmou que a data inaugurava “uma nova era de paz”.
O evento foi transmitido em 100 telões espalhados pelo mundo – um deles na Times Square, em Nova Iorque, nos EUA. O governo indiano estima que 177 países tenham realizado alguma atividade comemorativa naquele dia.
“Os estúdios de yoga têm uma grande responsabilidade: não difundir a ideia de que a cultura indiana é apenas a cultura do hinduísmo [religião predominante no país] ou das castas superiores”, observa a indiana Aadita Chaudhury, doutoranda em Estudos de Ciência e Tecnologia na Universidade de York, no Canadá, que escreveu um artigo para a rede Al Jazeera sobre as semelhanças entre os supremacistas brancos e os nacionalistas hindus. “Essa é uma imagem equivocada, que só interessa ao RSS. Quem caminha pela Índia percebe um sincretismo muito grande”.
Fantasia orientalista
A cada 21 de junho, mais pessoas se reúnem para celebrar o yoga. Só na Alemanha, em 2019, foram 4 milhões. Walter Lindner, embaixador alemão na Índia, enalteceu a “jogada de mestre” de Modi: “Yoga é um produto que se pode vender em qualquer lugar do mundo”.
No mesmo dia, o primeiro-ministro expôs o desejo de democratizar a prática: “Precisamos levar o movimento do yoga às vilas, às florestas, tornando-a parte integral da vida dos pobres, dos adivasis [comunidades tribais]”.
Embora o casal Trump tenha entrado no jogo, em fevereiro deste ano, o poder brando da Índia está cada vez mais “manjado” por líderes internacionais. Em 2018, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, cancelou em cima da hora uma sessão de yoga com Modi em Nova Delhi ao ser informado de que a atividade tinha “fins diplomáticos” e de propaganda do governo indiano.
“Quando foi criado o Dia Internacional, muita gente fora da Índia ficou entusiasmada com o Modi. Sempre achei chocante essa falta de senso crítico. Porque, em 2015, todos nós já deveríamos saber quem ele era, por conta de tudo que aconteceu em Gujarat”, afirma a antropóloga Mariana Faiad Batista Alves.
“Yoga, em termos abstratos, é uma prática corporal super bacana, que faz bem à saúde. A ideia de soft power também é interessante e pode gerar frutos para a Índia. A questão é que Modi manipula as fantasias orientalistas do Ocidente a favor dele e legitima suas ações por meio dessa narrativa”, completa a pesquisadora.
No primeiro ano de mandato, Modi inaugurou o Ministério do Ayurveda, Yoga, Naturopatia, Unani, Siddha e Homeopatia, sob pretexto de “promover a rica e centenária herança indiana no campo das ciências da saúde”. Opositores acusaram o BJP de instrumentalizar o Estado para difundir valores religiosos e das castas superiores, conforme a cartilha do RSS.
Desde então, centenas de escolas na Índia incluíram sessões de yoga no currículo da educação primária e secundária. Alguns exercícios, como o Surya Namaskar, exigem que o praticante se curve ao Deus do Sol, o que provocou a ira de organizações muçulmanas – o Islã só permite que os seguidores se curvem diante de Alá.
Quando esses embates vêm à tona, o governo indiano costuma dizer que “tudo deve ser analisado caso a caso”, ressaltando que 47 nações de maioria muçulmana apoiam a resolução das Nações Unidas de incentivar a prática do yoga.
Acirramento
A conjuntura da Índia vem se acirrando desde 2019, quando entraram em vigor uma emenda à lei de cidadania (CAA, na sigla em inglês) e um novo registro nacional de cidadãos, ameaçando colocar 3,9 milhões de pessoas na ilegalidade por falta de documentos.
Modi foi o primeiro político indiano a assinar um texto que condiciona à religião o acesso a direitos, rompendo com o secularismo previsto na Constituição – as regras para obtenção de refúgio e cidadania no país se tornaram mais brandas para não-muçulmanos. Também no ano passado, o governo revogou a autonomia da Caxemira, território de maioria islâmica disputado por Índia e Paquistão, e cortou por meses o acesso à internet na região.
Outra decisão emblemática de 2019 foi a autorização da Suprema Corte para construção de um templo hindu em Ayodhya, norte do país, no mesmo terreno em que hinduístas destruíram em 1992 uma mesquita, local de oração de muçulmanos, erguida no século 16.
Em momentos de maior conflito, o primeiro-ministro insere com ainda mais frequência as tradições milenares em seus discursos. Além de postar vídeos em que ele próprio aparece praticando yoga, Modi compartilhou em sua conta oficial no Twitter um depoimento do yogi Sadhguru em defesa da CAA, em dezembro de 2019.
Outro aliado de Modi é o empresário bilionário Baba Ramdev. Um dos gurus de yoga mais populares do país, ele já defendeu a prática milenar como caminho para “curar a homossexualidade” e se posicionou diversas vezes em favor da CAA.
Em janeiro, a revista britânica The Economist estampou na capa a manchete “Índia intolerante”. Também por conta das repercussões da CAA, o jornal estadunidense The New York Times publicou artigos de opinião contrários a “repressão seletiva” das forças de segurança de Modi, afirmando que elas miram opositores e muçulmanos e protegem grupos aliados.
Até hoje, o único membro do governo a responder questionamentos sobre o uso político do yoga e sua relação com os objetivos da nova lei de cidadania foi o vice-presidente Venkaiah Naidu, em fevereiro.
“Yoga não é atividade política. Não é por causa de Modi. É pelo seu corpo”, declarou na abertura do festival Mahashivarathi, evento promovido por um centro de yoga em Delhi. “A atmosfera que está sendo criada contra a CAA é lamentável. Os partidos da oposição precisam entender isso. Quem cria esse conflito está insultando a nação”, completou.
Ame-a ou deixe-a?
“Só porque eu não quero fazer yoga não significa que eu não seja patriota”, disse o parlamentar indiano muçulmano Asaduddin Owaisi em 2015, no contexto da celebração do primeiro Dia Internacional. De lá para cá, as tensões só aumentaram.
Em 2017, os relatórios do Departamento de Registro de Crimes da Índia incluíram pela primeira vez a categoria “crime cometido por elementos antinacionais”. A tipificação inclui ações de “extremistas de esquerda” e “terroristas jihadistas”.
A pesquisadora Patricia Sauthoff, citada no início desta reportagem, ministrou o curso “História e Política do Yoga”, inaugurado em 2016 na Universidade Nalanda, leste da Índia, durante a gestão do reitor Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia.
“A ideia era falar sobre o papel do yoga no país. Porque as pessoas chegam na Índia com uma expectativa, aí veem o conceito sendo apropriado por um governo de direita, e isso produz um choque”, explica.
“Debatíamos as diferenças entre a longa tradição do yoga e a maneira como isso vem à tona na atualidade, com essa perspectiva do RSS e o nacionalismo hindu”, completa Sauthoff. “A origem do yoga remete a certa hibridez entre as tradições do budismo e do hinduísmo. Resumi-lo a uma prática hindu é ignorar parte significativa da história da Índia e suas complexidades”.
Depois de um semestre, as aulas tornaram-se alvo do BJP. Em meados de 2017, o secretário nacional do partido, Ram Madhav, exigiu a abolição do curso e criticou o fato de a professora ser estrangeira.
A Universidade de Nalanda enviou um e-mail a Sauthoff ameaçando tomar “medidas cabíveis” caso ela não se desculpasse à nação. Meses antes, a gestão Amartya Sen havia sido substituída por um grupo alinhado a Modi.
A pesquisadora não se desculpou, e logo foi taxada como “antinacional” por apoiadores do BJP nas redes sociais. O curso foi abolido pela reitoria e ela nunca mais voltou à Índia. “Foi assustador e muito revelador sobre a maneira como eles operam”, resume.
“A criação da categoria ‘antinacional’ cumpre papel fundamental no projeto nacionalista hindu”, lembra a antropóloga Mariana Faiad Batista Alves. “Todo crítico do BJP é visto como antinacional, e quem não é hindu é visto como não-indiano. Todo muçulmano passa a ser visto como um paquistanês em potencial, e as mudanças na lei de cidadania, no final de 2019, são a radicalização disso”.
Yogi Adityanath (BJP), ministro-chefe de Uttar Pradesh, estado mais populoso do mundo, chegou a sugerir que aqueles que se posicionam “contra o yoga” deveriam deixar o país.
Integrantes de partidos e movimentos de esquerda indianos relataram em off que se encontram em uma sinuca de bico: embora seja urgente denunciar o projeto do BJP, ninguém quer ser taxado como “anti hindu” em um país em que 80% da população segue o hinduísmo.
Em vez de criticar o yoga em si, opositores questionam Modi por tentar se apropriar das tradições milenares para desviar o foco dos problemas reais da Índia. Em fevereiro deste ano, por exemplo, o líder do partido Samajwadi, Akhilesh Yadav, disse ironicamente que o primeiro-ministro deveria sugerir um asana postura de yoga) para os jovens desempregados do país.
Apesar das críticas esboçadas por parte da imprensa ocidental, Mariana Faiad Batista Alves diz que o governo indiano continua blindado, em certa medida, o que demonstra a eficácia desse poder brando. “Mesmo quem critica o Modi no Ocidente não o coloca no mesmo nível do Bolsonaro, por exemplo, embora ele seja até pior, por toda a violência institucionalizada e pelo projeto por trás do nacionalismo hindu”, analisa.
Reeleito em maio de 2019, Narendra Modi cumpre o segundo mandato à frente da Índia. O BJP tem 303 das 543 cadeiras do Legislativo e governa 12 dos 29 estados do país.
Edição: Douglas Matos