“A ideia de que o hinduísmo é uma religião pacífica não passa de um mito”. É sob essa premissa que a historiadora Charu Gupta, professora da Universidade de Delhi, analisa a violência de gênero na Índia. “A sociedade de castas é fundamentalmente patriarcal e deixa marcas nos corpos femininos há milhares de anos”, acrescenta. De 2007 a 2016, os crimes reportados contra mulheres cresceram 83% no país. A média de estupros é de um a cada 15 minutos.
Segundo a tradição do hinduísmo, religião praticada por oito a cada dez indianos, a sociedade é dividida em grupos hereditários, chamados de castas. Os hindus acreditam que cada indivíduo se origina de uma parte do corpo do deus Brahma, considerado o criador do Universo.
Os brâmanes teriam nascido da cabeça; os xátrias, dos braços; os vaixás, das pernas; os sudras, dos pés; e os dalits, “sem casta”, teriam se originado da poeira sob os pés do criador. Cada um estaria destinado a exercer uma função diferente na sociedade – os brâmanes seriam intelectuais, enquanto os dalits trabalhariam com lixo ou esgoto, por exemplo.
Ex-jogadora de voleibol da seleção indiana, Jagmati Sangwan mora desde que nasceu em Haryana, um dos estados com maior incidência de violência contra a mulher. Há quase 40 anos, ela se dedica a denunciar os chamados “crimes de honra”, cometidos contra homens e mulheres de castas diferentes que decidem se casar.
“Eles isolam o casal do vilarejo, pintam o rosto dos dois de preto e os exibem para a vizinhança, ou cortam o cabelo deles de um jeito específico para humilhá-los. E, na maioria das vezes, a mulher é executada”, conta.
A ativista lembra que a Constituição assegura o direito de escolha do casal, mas essa garantia não é respeitada em muitas comunidades, especialmente quando se trata de mulheres dalits. A cada ano, a Índia registra em média mil ocorrências dessa natureza.
Desproporção
Outra violência relacionada aos casamentos é o pagamento de dotes por parte da família da noiva. Essa prática foi proibida em 1961, mas não deixa de fazer vítimas, segundo Sangwan. Cerca de 7 milhões de fetos do sexo feminino são abortados todos os anos na Índia por pais que não se veem em condições de pagar pelo casamento das filhas ou que preferem um menino para dar sequência à linhagem da família.
O aborto seletivo faz com que a Índia tenha 63 milhões de mulheres a menos do que homens. O estado de Haryana, que tem a maior desproporção de gênero do país, está no topo do ranking de estupros coletivos.
Encerrar um casamento também custa caro. Todos os anos, cerca de 300 mulheres são atacadas com ácido pelos maridos após pedirem divórcio. As que sobrevivem ficam com o rosto desfigurado e passam a ser tratadas como impuras.
A quem interessa a violência
Sangwan é filha de camponeses e testemunha a violência de gênero desde os tempos de escola. Dirigente da Associação de Mulheres da Índia (Aidwa, na sigla em inglês), ela conta que a polícia e o poder político local costumam fazer vista grossa em relação a crimes de honra, estupros e feminicídios.
“Classe, casta e gênero devem ser analisadas em conjunto. Se as pessoas puderem se casar segundo suas escolhas, abre-se caminho para uma sociedade com mais mobilidade. A mulher que hoje casa com um homem de casta superior, amanhã poderá reivindicar direitos sobre as propriedades e as terras da família do marido. Isso afeta toda a lógica das relações de poder na Índia”, explica.
Para ela, “os setores econômicos mais poderosos do país estão de mãos dadas com o governo e veem qualquer mudança na ordem social como ameaça a sua hegemonia. Permitir esses níveis de violência é uma forma de desencorajar transformações na própria estrutura econômica da Índia”.
Os crimes de honra foram denunciados por Jagmati Sangwan às Nações Unidas. Ela ressalta ainda que o Parlamento e a Suprema Corte indiana conhecem a realidade do interior do país, no entanto, até hoje não há medidas efetivas, em âmbito nacional ou internacional, para enfrentar a exclusão social e econômica que atinge milhões de indianas.
Hoje, uma a cada cinco mulheres do país chega ao ensino médio. Entre as adultas, uma a cada três está no mercado de trabalho. Destas, 70% atuam na informalidade ou em ocupações de baixa remuneração.
Discriminação religiosa
“Não apenas os casamentos entre castas são punidos, mas também os inter-religiosos”, afirma a historiadora Charu Gupta. "Se uma mulher hindu se relaciona com um muçulmano, a sociedade trata como se ela tivesse sido forçada ou coagida. Desde a Índia colonial, os hindus usam o islamismo como parâmetro de perversidade para reafirmar sua suposta pureza".
Cerca de 14% dos indianos são muçulmanos. Há seis anos, o país vive sob um governo nacionalista hindu, liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, do Partido do Povo Indiano (BJP), aliado de Jair Bolsonaro (sem partido). O BJP é o braço político do grupo paramilitar Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), criado há 90 anos com o objetivo de refundar a Índia a partir das tradições do hinduísmo, segregando as demais religiões.
Em 2019, passaram a vigorar na Índia a Emenda à Lei de Cidadania (CAA, na sigla em inglês) e um novo Registro Nacional de Cidadãos. Com as novas regras, muçulmanos que não comprovarem que moram no país há mais de 11 anos deixam de ser considerados cidadãos indianos. Ao mesmo tempo, as normas passam a ser mais brandas para pessoas de outras religiões.
Protestos contra a CAA deixaram 49 mortos na última semana na capital Nova Delhi. Em todo o país, desde dezembro de 2019, foram mais de 80 assassinatos em meio a conflitos entre manifestantes, polícia e grupos armados de extrema direita. A maioria das vítimas é de muçulmanos. “Por isso, a principal bandeira deste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, se tornou a defesa da Constituição, a preservação da democracia e o enfrentamento à violência de gênero”, afirma a ativista Jagmati Sangwan.
As mulheres são as mais afetadas pelas mudanças nas regras de cidadania. Como a maioria trabalha na informalidade e as propriedades costumam ser registradas em nome dos maridos, são poucas as que conseguem comprovar residência no país. Os protestos alertam para o risco de uma deportação em massa e para a construção de campos de detenção, como já ocorre no estado de Assam, leste da Índia.
Caxemira: um capítulo à parte
O conflito entre hindus e muçulmanos teve seu ápice no processo chamado Partilha, que dividiu Índia e Paquistão em 1947 e vitimou ao menos um milhão de pessoas. Nenhum território expressa melhor a brutalidade daquele processo do que a Caxemira, região de maioria muçulmana. O vale ao sul da parte ocidental do Himalaia, disputado pelos dois países, tornou-se a zona mais militarizada do planeta.
Autora do livro Between democracy and nation: gender and militarization in Kashmir (em tradução livre, "Entre democracia e nação: gênero e militarização na Caxemira", de 2009), Seema Kazi conta que os caxemiris sempre buscaram independência em relação à Índia e ao Paquistão. Por isso, nunca concordaram com a fronteira – ou “linha de controle” – que divide o vale em duas partes.
“Do lado indiano, há um soldado para cada seis caxemiris. São mais de 100 mil soldados. É muito superior à presença do Exército do Paquistão, que nunca ocupou áreas civis nessas proporções”, compara.
Uma rebelião separatista ocorrida em 1989 é considerada o ponto de virada, porque fez o Estado indiano aumentar seu efetivo, com medo de perder o controle político da região.
“A sociedade caxemiri é, em sua maioria, conservadora, patriarcal, e sempre houve opressão de gênero. Porém, a presença massiva do Exército da Índia depois de 1989 mudou completamente o cenário”, completa Seema Kazi. Desde então, o território é palco de conflitos sangrentos, com mais de 40 mil assassinatos.
Nos últimos seis meses, a repressão se intensificou. O governo indiano revogou a autonomia da Caxemira e cortou até o acesso à internet na região.
A violência, segundo ela, se capilariza na sociedade civil. “Não me refiro apenas a mulheres estupradas por soldados, ou que tiveram seus filhos assassinados, desaparecidos. Falo da presença militar, em si, que ‘desmasculiniza’ os homens caxemiris, os mantêm sob seu domínio, tira toda sua dignidade, seu sentido de cultura e sociedade”, explica. “Então, essa masculinidade reprimida passa a se expressar das maneiras mais terríveis. Os índices de violência doméstica dispararam. Hoje, temos até casos de estupros entre caxemiris, o que seria impensável anos atrás”.
Os dados de escolaridade e acesso ao mercado de trabalho por mulheres na Caxemira são superiores à média indiana, mas os números da violência sexual na região se tornaram os maiores do mundo, à frente de áreas como Chechênia e Sri Lanka, que tradicionalmente lideram esse ranking.
Esperança
As mulheres estão na linha de frente das lutas por direitos na Índia desde o movimento pela independência, em 1947. “As indianas conquistaram o direito ao voto, por exemplo, mais facilmente que em outros países. Na época, elas diziam que só seriam livres quando a Índia se libertasse do domínio britânico. Porém, algumas estruturas patriarcais não foram desafiadas”, pondera a historiadora Charu Gupta.
A Constituição de 1950, produto daquele movimento, proibiu que os dalits fossem considerados impuros ou “intocáveis” pelos integrantes das demais castas, rompendo com uma tradição milenar de segregação. Ainda assim, a Índia registra diariamente 90 crimes cometidos contra dalits por membros de castas superiores.
Gupta afirma que a violência não ocorre apenas entre castas diferentes. “Muitos homens dalits agridem suas esposas, e as poucas que têm renda própria são proibidas pelo marido de usarem seu dinheiro. Então, para mulheres dalits, é uma dupla batalha”, ressalta a historiadora, que analisou a construção da masculinidade dalit no livro The Gender of Caste [em tradução livre, "O gênero da casta", 2015].
Entre 2008 e 2015, as ocorrências de violência doméstica saltaram de 81,3 mil para 113,4 mil por ano, embora a historiadora alerte para a subnotificação da maioria dos casos.
Em meio ao horror, há sinais de resistência. Um ano atrás, 5 milhões de mulheres deram as mãos e formaram um cordão humano de 620 km no estado de Kerala, sul da Índia, unidas pela bandeira da igualdade de gênero. No bairro Shaheen Bagh, em Nova Delhi, idosas muçulmanas lideram uma ocupação contra as mudanças nas regras de cidadania.
“De alguma forma, é uma revolução ver mulheres idosas, donas de casas, que nunca saíam às ruas, se levantando, desenvolvendo uma nova linguagem de irmandade, construindo solidariedade”, enaltece Charu Gupta.
A ativista Jagmati Sangwan diz que o próximo objetivo é reduzir a desproporção nos cargos políticos mais importantes do país. No levantamento mais recente da União Interparlamentar sobre diversidade de gênero entre deputados ao redor do mundo, a Índia ficou em 149º lugar entre 193 nações analisadas.
Edição: Vivian Fernandes