Nova Delhi, capital da Índia, vive uma semana de terror. Em quatro dias, mais de 30 cidadãos foram mortos durante protestos contra o governo do primeiro-ministro Narendra Modi. O principal ponto de questionamento são mudanças na lei que discriminam a população muçulmana.
A repressão que hoje se vê nas ruas é rotina há pelo menos quatro meses em espaços tradicionais de protesto e debate político, como as universidades públicas. A violência cometida pelas forças de segurança oficiais é amplificada pela ação do Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), maior organização paramilitar do mundo, com 6 milhões de adeptos.
O RSS foi fundado em 1925 e propaga a Hindutva, ideologia que busca redefinir a cultura indiana a partir dos valores do hinduísmo, oprimindo as demais religiões. Em sua página oficial, a organização diz que se dedica “ao ressurgimento da Índia e à promoção da paz global”.
A ala estudantil do RSS se chama Akhil Bharatiya Vidyarthi Parishad (ABVP) e atua sob a proteção das forças de segurança nacionais, segundo opositores. O Partido do Povo Indiano (BJP), ao qual pertence Modi, é um dos braços políticos dessa organização paramilitar.
Ativista e ex-dirigente da União de Estudantes da Universidade Jawaharlal Nehru (JNU), em Nova Delhi, Satarupa Chakraborty afirma que os ataques são sistemáticos contra alunos e professores críticos a Modi: “Onde quer que os estudantes estejam se organizando para contrapor e criticar as políticas do governo, eles estão sendo atacados”.
Em um dos episódios mais graves até o momento, integrantes do ABVP invadiram a JNU encapuzados e agrediram mais de 40 pessoas, entre professores, servidores e a atual presidenta da União de Estudantes, Aishe Ghosh.
Há duas semanas, Modi se reuniu com as forças de segurança do país e ordenou que policiais monitorem o que acontece dentro das universidades e se infiltrem em grupos de Whatsapp de estudantes opositores como medida preventiva.
Origens
A JNU é a maior universidade pública e um dos principais espaços de debate político da Índia. A atual onda de conflitos começou em outubro de 2019, quando estudantes se mobilizaram contra o aumento nas taxas de moradia.
Assim como no Brasil, o ensino é gratuito nas instituições públicas indianas. Porém, as universidades cobram uma série de taxas para matrícula, exames, seguro médico e moradia, por exemplo – além de um seguro-fiança, que é reembolsável. Somados, os custos se aproximam dos R$ 900 por semestre em algumas faculdades.
Subin Dennis, membro do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social em Nova Delhi, ressalta que 85% das famílias indianas têm renda inferior a 10 mil rúpias – o equivalente a R$ 625 por mês.
Há 70 anos, as universidades do país têm cotas para alunos pobres e dalits, população excluída pelo sistema de castas. “O aumento das taxas, que ocorre em todo o país, significa que a maioria desses alunos será forçada a abandonar os estudos. Por isso, os protestos começaram”, analisa Dennis.
Em uma das maiores manifestações contra o aumento das taxas, em novembro, centenas de estudantes universitários foram reprimidos ao tentar entrar no Parlamento Indiano. No dia seguinte, o campus da JNU amanheceu repleto de policiais.
De lá para cá, o cerco se fechou.
Discriminação
Dezembro de 2019 é considerado um momento de ruptura na história da Índia independente. Foi quando o primeiro-ministro Modi, aliado de Bolsonaro, assinou uma emenda à lei de cidadania do país (CAA, na sigla em inglês) discriminando a população islâmica.
Com essa mudança, muçulmanos que não conseguirem comprovar que moram no país há mais de 11 anos deixam de ser considerados cidadãos indianos. Ao mesmo tempo, as regras passam a ser mais brandas para pessoas de outras religiões.
Um dos pilares da Constituição de 1947 é o secularismo, ou seja, a liberdade de crença e a separação entre igreja e Estado. Modi foi o primeiro chefe do Executivo da Índia a assinar um texto que condiciona a cidadania à religião. Cerca de 14% dos indianos praticam o islamismo, enquanto 80% seguem o hinduísmo.
A ativista Satarupa Chakraborty enfatiza que o movimento estudantil também está na linha de frente dos protestos contra essa emenda. “Os estudantes que estão mobilizados entenderam que, se os princípios fundamentais da Constituição são violados, então não há mais diferença entre regimes ditatoriais e democráticos”, acrescenta.
Além da JNU, houve protestos massivos na universidade Jamia Milia Islamia, localizada em um bairro de maioria muçulmana na capital. Na ocasião, a polícia invadiu a biblioteca, quebrou celulares de estudantes e agrediu quem estava no local. Mulheres que estudam na universidade afirmam que foram golpeadas nas partes íntimas. Desde então, estudantes ocupam a rua em frente ao campus, em protesto contra a ação policial.
Uma das imagens mais comuns na ocupação é o rosto de Mahatma Gandhi, líder da independência indiana. Gandhi foi assassinado em 1950, por um membro do RSS, por defender a convivência pacífica entre hindus e muçulmanos.
As manifestações contrárias ao governo continuam em pelo menos dez universidades do país, incluindo regiões da Índia onde o movimento estudantil não está organizado formalmente. “Os protestos mais conhecidos contra a emenda à lei de cidadania aconteceram na [universidade] Jamia, na capital do país. mas também houve protestos em Assam, Kerala e vários outros estados”, observa Dennis, pesquisador do Instituto Tricontinental.
Mais de 20 indianos foram assassinados em dezembro durante manifestações contra o texto que discrimina a população muçulmana.
Mudança de foco
Na noite de 5 de janeiro, ocorreu o ataque dos encapuzados à JNU. Mais de 50 membros do ABVP invadiram o campus com paus, varas e ácido. Aishe Ghosh, presidenta da União de Estudantes, foi espancada e precisou fazer pontos na cabeça e no braço. Ao todo, 39 professores e servidores da instituição deram entrada no Instituto de Ciências Médicas com ferimentos.
Os agressores foram identificados dias depois por câmeras de segurança, mas não foram responsabilizados. A polícia diz que ainda investiga o caso.
“Na JNU, a direita nunca conseguiu ganhar os debates, nunca conseguiu conquistar o coração dos estudantes”, lembra Dennis. “Por isso, eles trazem gangsters de fora da universidade para realizar esses ataques”.
Opositores do governo afirmam que policiais a serviço de Modi são cúmplices da violência promovida pelo RSS e pelo ABVP. Os membros dessas organizações, por outro lado, alegam que a União de Estudantes da JNU está cooptada por partidos de esquerda e que o “suposto ataque” não passa de uma fraude para desestabilizar o governo.
Se o episódio de 5 de janeiro entrou para a história da maior universidade do país, em outras instituições a violência pode ser ainda mais frequente, com meios mais sutis. Nesse caso, a violência física é substituída por discursos em assembleias estudantis e assédio a opositores. “Nos lugares onde a esquerda ou o movimento estudantil democrático não são tão fortes, o ABVP consegue se fazer presente nas disputas do dia a dia”, completa o pesquisador do Tricontinental.
Para a ativista Satarupa Chakraborty, o primeiro-ministro insiste em discriminar a população muçulmana não apenas porque defende a Hindutva. Em segundo plano, essa postura seria uma tentativa de mudar o foco dos problemas reais do país.
“O governo foi eleito com a agenda das melhorias que precisam ser feitas, do emprego, da saúde pública, que é muito frágil na Índia. Não foi eleito para promover a violência”, reforça. “Como não consegue resolver esses problemas, ele promove essa polarização para tentar desviar o debate público”.
A Índia foi a sétima maior economia do mundo em 2018. No terceiro trimestre do ano passado, porém, o país registrou a taxa de crescimento mais baixa em seis anos. Em dezembro de 2019, o preço médio dos alimentos subiu 14% em relação ao mês anterior. A exemplo de Bolsonaro, o ultranacionalista Modi vem reduzindo ano a ano os investimentos na educação pública e em programas sociais, sob o pretexto de aliviar as contas públicas.
Chakraborty aponta que os esforços do governo para deslocar a atenção para a pauta religiosa não tiveram êxito até o momento. A derrota do BJP nas eleições locais em Nova Delhi e a vigília de mulheres muçulmanas do bairro Shaheen Bagh, que já dura dois meses, sinalizam o fracasso dessa estratégia.
Enquanto vários setores do país se levantam contra a CAA, estudantes se mantêm mobilizados contra o aumento de taxas nas universidades públicas. Um grupo de alunos do Instituto Indiano de Comunicação de Massa (IIMC), na capital, iniciou uma greve de fome em 17 de fevereiro, e o Conselho de Estudantes de Pondicherry, a 1,9 mil km da capital, lançou uma campanha de boicote às aulas até que o reajuste das taxas seja anulado.
Edição: Rodrigo Chagas