Poucas horas após Maria Van Kerkhov, chefe da unidade de doenças emergentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), afirmar nesta segunda (8) que a transmissão do novo coronavírus por pacientes sem sintomas “parecer ser rara”, Jair Bolsonaro usou as redes sociais para defender novamente a flexibilização da quarentena no Brasil.
“Após pedirem desculpas pela hidroxicloroquina, agora a OMS conclui que pacientes assintomáticos (a grande maioria) não têm potencial de infectar outras pessoas. Milhões ficaram trancados em casa, perderam seus empregos e afetaram negativamente a Economia”, escreveu o presidente em seu Twitter.
No entanto, Bolsonaro ignorou ponderações feitas pela própria especialista durante a entrevista na sede da Organização das Nações Unidas (ONU).
“A partir dos dados que temos, ainda parece ser raro que uma pessoa assintomática realmente transmita adiante para um indivíduo secundário", disse Van Kerkhove, citando estudos de pequenos portes realizados em países que estão rastreando os contatos estabelecidos pelas pessoas infectadas.
Considerada por Bolsonaro como uma verdade absoluta e com repercussão internacional negativa, o órgão veio à público nesta terça-feira (9) para esclarecer seu posicionamento.
"Estamos absolutamente convencidos de que a transmissão por casos assintomáticos está ocorrendo, a questão é saber quanto", disse o diretor de emergências Michael Ryan.
Para evitar maus entendidos, Van Kerkhove também voltou a se pronunciar em menos de 24h e reiterou que citava pesquisas em andamento.
"A maioria das transmissões que conhecemos ocorre por pessoas com sintomas que transmitem o vírus por meio de gotículas infectadas. Mas há um subconjunto de pessoas que não desenvolvem sintomas", explicou.
"Acho que é um mal-entendido afirmar que uma transmissão assintomática globalmente é muito rara, sendo que eu estava me referindo a um subconjunto de estudos. Também me referi a alguns dados que ainda não foram publicados, e essas são as informações que recebemos de nossos Estados-membros", acrescentou.
Em nenhum momento a OMS, constantemente criticada pelo presidente brasileiro, alterou a recomendação de manter o isolamento social.
A defesa pela flexibilização por parte do mandatário continua acontecendo em meio a um cenário preocupante: segundo informações compiladas pelas Secretarias de Saúde dos estados brasileiros, o número de infectados pela covid-19 nesta segunda-feira (8), ultrapassava os 707 mil casos. No total, mais de 37 mil vidas foram interrompidas pela pandemia no país.
Motivação política
Na avaliação de Ceuci Nunes, médica infectologista e diretora do Instituto Couto Maia, unidade dedicada ao covid-19 na Bahia, o fato de Bolsonaro usar a declaração da representante da OMS fora de contexto para defender o fim do isolamento social explicita um nível preocupante de politização da pandemia.
"As pessoas pegam das entrevistas e dos dados, principalmente da OMS, o que interessa para seu posicionamento”, critica Nunes.
“Na verdade o que o órgão disse ontem era sobre a necessidade de acompanhar e testar as pessoas contactantes dos pacientes doentes. Isso é super importante. Porque é possível diagnosticar, avaliar e separar essas pessoas, e com isso diminuir a transmissão. Mas poucos países estão fazendo, o Brasil está muito longe disso”, esclarece.
Segundo a especialista, é de conhecimento científico que as pessoas sintomáticas transmitem 5 vezes mais do que as que não apresentam sintomas, o que não significa que estas não estão ativas na cadeia de transmissão.
Para Francisco Ivanildo, infectologista do Hospital Emílio Ribas, há poucas evidencias sobre a não transmissão a partir de pacientes sem sintomas, e exatamente por isso não é possível abrir mão do distanciamento social nesse momento.
“Uma coisa é alguém que não tem sintoma nunca. Outra é alguém que está sem sintoma hoje e depois de dois ou três dias da coleta do exame, começou a apresentar sintomas. Essa é a evolução natural da doença”, explica Ivanildo.
“Tenho que tomar cuidado com todo mundo e fazer o afastamento pra todo mundo. Não consigo saber com antecipação quem vai continuar assintomático ou quem vai começar a ter sintoma depois de dois ou três dias. O paciente assintomático hoje pode ficar sintomático amanhã e hoje ele já está transmitindo. Isso tem importância epidemiológica, tem impacto na cadeia de transmissão”, ressalta.
Única saída
Ambos especialistas consultados pelo Brasil de Fato detalham que os sintomas do novo coronavírus podem ser muito leves ou muito parecidos com outras doenças, o que faz com que grande parte da população só considere a possibilidade de contaminação a partir de sintomas mais fortes, como febre e tosse.
Ou seja, com o fim da quarentena, os casos poderiam explodir ainda mais no país a partir da contaminação de pacientes com sintomas leves.
“Infelizmente, o presidente tem distorcido não só essa, como outras coisas, e utilizado sempre a favor da narrativa, da versão que interessa a ele. Que não considera de maneira nenhuma o cuidado com a saúde da população. Está interessado apenas na questão econômica, que é importante mas não pode ser analisada isoladamente”, comenta Ivanildo.
Ele reforça que, neste contexto, sem perspectivas a curto e médio prazo para a cura da doença, o distanciamento social é a única saída para combater o coronavírus.
Nunes defende a necessidade de testagem em massa para a população brasileira, incluindo sintomáticos e os chamados contactantes, o que não está sendo feito. “Estamos cegos sobre o que está acontecendo. Quantas pessoas tem o diagnóstico e não sabe onde pegaram?”, questiona.
A diretora do Instituto Couto Maia endossa que os cuidados tomados desde o início da pandemia devem ser mantidos a qualquer custo.
“Precisa usar máscara e é importantíssimo o isolamento social, até mesmo nas atividades essenciais, como ir na farmácia ou no mercado. O isolamento social tem que existir. Não existe outro caminho pra essa pandemia até agora. Isso ninguém tem dúvida”, finaliza a infectologista.
Edição: Leandro Melito