A gravação da reunião ministerial realizada em 22 de abril, em que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seus ministros expõem com toda franqueza seus objetivos autoritários e antidemocráticos, rapidamente se tornou a pauta principal na grande mídia. Já há algum tempo, veículos de imprensa de grande renome no Brasil, como O Globo e Folha de São Paulo, romperam com a (superficial) imparcialidade, e passaram a uma linha política de oposição ao governo Bolsonaro.
A origem desse rompimento se encontra nas disputas intraburguesas no país. Ou seja, qual o bloco de forças da classe dominante que dirigirá o capitalismo brasileiro, sua relação subordinada com o imperialismo norte-americano e sob qual sistema político. Tal realidade é apimentada por questões factuais, como os ataques verbais e físicos que jornalistas desses veículos vêm sofrendo por seguidores do presidente – atos que devem ser fortemente repudiados. No entanto, os adversários se unem em alguns momentos, principalmente para defender seus interesses de classe contra as maiorias do povo brasileiro, vide o apoio incondicional da grande mídia à política econômica da fome conduzida por Paulo Guedes.
Um dos aspectos mais criticados pela imprensa empresarial foi o desejo externalizado por Bolsonaro de armar a população para que esta se rebele contra as “medidas autoritárias” adotadas por governadores e prefeitos no combate ao coronavírus, principalmente, o isolamento social. Os grandes veículos de comunicação parecem ter descoberto, muito tardiamente, que Bolsonaro deseja construir um exército próprio para fechar o regime e implementar uma ditadura comandada por sua família, com apoio de militares, crime organizado e milícias de seguidores armados.
Se este “atraso” de percepção da realidade não fosse o bastante, diversos comentaristas da grande imprensa passaram a identificar esse plano de Bolsonaro com políticas implementadas pelo falecido ex-presidente venezuelano Hugo Chávez e mantidas pelo seu sucessor, Nicolás Maduro.
Não é novidade a participação dos grandes veículos de comunicação brasileiros na demonização de experiências socialistas. Sendo, ao mesmo tempo, espaço de produção de senso comum e investimento do grande capital, a grande imprensa, aqui e no mundo, será sempre hostil à esquerda revolucionária, pois se encontra em lado oposto a esta nas lutas sociais.
-> parei aqui [Geisa]
O problema é quando essa “posição” deixa de ser apenas uma divergência política e passa para o campo da total deturpação dos fatos. Nesse ponto, a grande imprensa não é melhor, nem tão diferente de Bolsonaro, apenas adota uma postura mais “elegante”, fabricando por vezes a “fake news oficial”. Ao comparar Bolsonaro a Chávez a grande imprensa age de maneira tão cretina quanto o presidente brasileiro.
O objeto de comparação da imprensa são as “milícias bolivarianas” criadas em 2008 na Venezuela, por Hugo Chávez e incorporadas ao Exército venezuelano por Maduro em 2014. Vamos à explicação. A Venezuela, como é de conhecimento público, é permanentemente atacada pelos Estados Unidos que financia a oposição ao governo e patrocina ações que, em lugar nenhum do mundo, poderiam ser classificadas como democráticas.
O histórico de atentados terroristas, assassinatos de militantes de esquerda, formação de grupos de choque para enfrentamento com as forças de segurança, entre outras atividades, ganhou seu mais recente capítulo no início de maio, na Operação Gedeón quando dezenas de mercenários fortemente armados invadiram o território venezuelano com o intuito de assassinar o presidente Nicolás Maduro. Este ato de guerra, claramente apoiado pelos Estados Unidos, foi desbaratado pelas forças de segurança venezuelanas, com importante participação das tais “milícias bolivarianas”.
"Milícias bolivarianas"
As “milícias bolivarianas” são grupos de cidadãos comuns, que se alistam por vontade própria e são organizados pelo Exército da Venezuela, como força reserva em caso de invasão do país. Estas pessoas recebem treinamentos militares, não só de combate, mas, principalmente, de organização militar em caso de agressão ao território nacional e também de inteligência, para detectar movimentações que coloquem a segurança do país em risco. A frustrada invasão mercenária realizada no início de maio foi desbaratada justamente por membros das milícias bolivarianas: um grupo de pescadores que havia sido treinado para essa função identificou e prendeu os mercenários, prontamente comunicando as autoridades.
A palavra “milícia” na Venezuela não possui a conotação criminal que tem no Brasil.
Trata-se de uma proposta de segurança de corte socialista, que responde a dois objetivos dessa visão política: a socialização do poder, com ampla participação da população nos espaços públicos – no caso específico, na segurança; e, ao mesmo tempo, garante o engajamento de toda o povo, e não só das forças armadas regulares, na defesa do país, já que as experiências socialistas estão sob constante ameaça de invasão e ataques norte-americanos. Não é apenas um “slogan”, mas sim, uma estratégia militar inaugurada no Vietnã, com o objetivo de transformar “cada cidadão em um combatente”, naquele caso específico para derrotar a invasão dos Estados Unidos e em tempos de paz, para garantir a defesa nacional. Cuba possui aparato semelhante.
Proteger o país de uma invasão estrangeira e socializar a segurança pública com o povo obviamente não são os objetivos de Bolsonaro. O que quer Bolsonaro e seu ministério é armar os seus seguidores para que possam, junto com as polícias altamente ideologizadas pelo bolsonarismo e com fortes ligações com o crime organizado, se insurgir contra as autoridades e instituições, prendendo políticos, juízes, jornalistas e todo aquele que se colocar como oposição a seus desígnios.
Isto não é uma possibilidade. Isto já está acontecendo, ainda que sem angariar, até o momento, a musculatura necessária para o golpe. Acreditar em idealismos de que “as instituições e a democracia vão conter Bolsonaro” é tão inútil quanto mentir depuradamente à população ao comparar a escalada autoritária promovida pelo presidente com uma realidade política, a venezuelana, totalmente diferente da brasileira. A imprensa empresarial que se presta a esses ilusionismos retóricos deveria estar chamando Bolsonaro pelo o que é: fascista; de extrema-direita, algo que toda a imprensa internacional o faz, menos a brasileira.
De frente para o abismo, a mídia corporativa no país acha que vai combater o autoritarismo de Bolsonaro dividindo com o próprio a construção do “espantalho venezuelano”. Enquanto uma nova ditadura bate as portas, o cenário mais provável tende a ser o que, sarcasticamente, o youtuber Felipe Neto publicou em sua conta no Twitter em 15 de maio: “na próxima eleição na Venezuela vão dizer 'não votem nesse, ele vai transformar a Venezuela num Brasil'”.
*Roberto Santana Santos é doutor em Políticas Públicas e Mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é professor da Faculdade de Educação da UERJ e Secretário-executivo da REGGEN-UNESCO.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Mariana Pitasse e Geisa Marques