VENEZUELA - 4F

Relembre a história do primeiro levante militar comandado por Hugo Chávez

Há 28 anos do episódio conhecido como 4F, um dos militares que acompanhou Chávez conta detalhes da operação

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
O general Euclides Campos Aponte é atualmente representante das Forças Armadas na Assembleia Constituinte - Ministério do Poder Popular para a Defesa

Fevereiro é considerado um mês de lutas e batalhas na Venezuela.

Começando pelo dia 2, que marca a data de posse do ex-presidente Hugo Chávez, em 1999, e o aniversário da Revolução Bolivariana. No entanto, a data que para os venezuelanos realmente marca o início do processo político que desencadeou a revolução foi o levantamento militar de 4 de fevereiro de 1992.

Comandados por Chávez, um grupo de 2.056 militares, a maioria soldados, rebelou-se em armas para derrotar o governo de Carlos Andrés Pérez, que administrou o país até 1993.

De acordo com o plano, enquanto o presidente voltava da reunião do Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, três frentes atuariam: uma tomaria a residência oficial, chamada La Casona, chefiadas por Miguel Rodríguez Torres, enquanto outro grupo, comandado por Chávez, tomaria o Museu Histórico Militar, na favela 23 de janeiro, atualmente conhecido como Quartel da Montanha, base militar no coração de Caracas. O último grupo assaltaria o Palácio Presidencial de Miraflores.

Nos estados de Miranda, Carabobo, Aragua, Zulia também foram tomados quarteis militares. No entanto, o serviço de inteligência soube do movimento e a capital nunca pôde ser tomada pelas forças insurrecionas, o que levou à derrota do Movimento Bolivariano Revolucionário-200 (MBR-200).

Nesse momento, o comandante Chávez, antes de ser preso, pôde dar declarações à imprensa, que a história consagrou como seu primeiro discurso: “Por agora os objetivos a que nós nos propusemos não puderam ser alcançados na capital (...) Virão novas situações e o país deve tomar definitivamente um rumo melhor (...) Assumo a responsabilidade desse movimento militar bolivariano”.

O General Euclides Campos Aponte foi um dos militares que acompanhou Chávez até o assalto da base militar no bairro 23 de janeiro e se entregou junto com o comandante.

Amigos desde a década de 1980, quando fizeram parte da mesma banda da Academia Militar do Exército e tocavam juntos música llanera – similar ao sertanejo brasileiro, tradicional da região do planalto venezuelano –, ao mesmo tempo em que conversavam sobre os problemas sociais e econômicos do país.

Mais tarde Aponte decidiu entrar para o MBR-200 e ser o responsável pelo serviço de inteligência e comunicação interna do grupo insurgente de 1992.

Solto, depois de três meses detido no quartel San Carlos, centro de Caracas, Aponte se somou à campanha nacional de liberação de todos os seus companheiros, incluindo Chávez, que finalmente foi liberado em 1993, quando o novo presidente, Rafael Caldera, concedeu anistia aos mais de dois mil militares envolvidos na intentona.

Aponte seguiu os passos do líder chavista e afirma que nunca se arrependeu de ter participado da tentativa de golpe. Hoje é deputado na Assembleia Nacional Constituinte, presidente da comissão que representa a Força Armada Nacional Bolivariana.

Nesse 4 de fevereiro de 2020, Euclides Aponte conversou com o Brasil de Fato e relembrou a história de 28 anos atrás.

 

Hugo Chávez junto a outros militares rebeldes do MBR-200, em 1992 (Foto: Divulgação)

Brasil de Fato: Como você conheceu Chávez e por que você decidiu participar do levante militar do 4F?

Euclides Campos Aponte: Num fim de semana no ano 1983, eu estava na escola militar com meus filhos e minha esposa e o Chávez me cumprimentou, começamos a conversar sobre o país, pediu minha opinião da situação, e em seguida fez uma análise, não só da conjuntura nacional, mas também internacional, da política intervencionista que havia mantido os Estados Unidos na América do Sul, falou sobre o Plano Condor, tudo o que aconteceu na Bolívia, Paraguai, Argentina, Brasil e Uruguai, com questões que, mais tarde, permitiram ver para onde queríamos impulsar o nosso movimento. Então me disse: Campos, esteja atento, vou te localizar para futuras reuniões.

Localizar-nos no campo militar não era uma tarefa fácil, porque eu cumpria um papel, ele outro e em diferentes unidades. Uma das formas de manter vivo o movimento era ser muito precavido.  Na verdade, eu nem conhecia meus outros companheiros.

Era um regime autoritário ditatorial, vestido de democracia, aqueles que nos dirigiam eram tutelados pelos Estados Unidos.

Depois de 1983 eu escutava o Chávez, mas nunca voltamos a nos reunir. Voltamos a nos encontrar pessoalmente em 1991. Eu era comandante da companhia 4203 de comunicações da Brigada de Paraquedistas e o comandante Chávez chegou para receber o controle do batalhão Briceño, a partir daí é que desponta o movimento, com Chávez organizando tropas.

Ele deixou atividades administrativas que estava exercendo dentro do Exército e passou a retomar os contatos que havia feito antes. Particularmente, eu o acompanhei em reuniões com oficiais da cidade de Maracay.

Por que essa data? 4 de fevereiro de 1992?

Por que, entre outras coisas, tivemos informação de que houve delações das reuniões do MBR-200, também nesse momento já haviam muitas pessoas envolvidas. No entanto, em 1991 já havíamos que a ação seria em 1992. Entre janeiro e fevereiro sentíamos que há havia mais coordenação.

Então, num dia como ontem, 3 de fevereiro, mas há 28 anos, meu comandante Chávez me encontrou no quartel Páez, em Maracay, e me disse: Campos hoje é o dia.

Qual foi seu papel no levante?

Eu fiquei de encarregado de coordenador o Jeep com outro oficial de comunicação e montar uma equipe de rádio. O oficial de comunicação da operação é o responsável de planejar a comunicação e distribuir os equipamentos disponíveis, recordemos que não existiam celulares. Nesse dia 3 cada um assumiu sua tarefa e cuidou dos detalhes.

Quais foram os detalhes da operação?

Às 3h da madrugada enviamos um veículo a Caracas que deveria ir até o posto de comando [quartel 4F]. De tarde, Chávez formou todo o batalhão nos deu as últimas orientações e como às 9h da manhã partimos rumo à capital em ônibus e outros veículos militares. No meu carro, íamos eu, o motorista e o comandante Chávez.

Quando chegamos ao Forte Tiuna [sede da Academia das Forças Armadas] nos demos conta de que não estavam as tropas aliadas.  Então fomos direto para o centro, onde estava a sede da Rádio e Televisão Caracas, aí nos demos conta de que era uma estação administrativa e não daria para fazer a retransmissão de vídeos. Então fomos para o posto de comando, que era o Museu Militar [atual quartel 4F]. Outros militares estavam tentando tomar a base área de La Carlota, no leste de Caracas, e um terceiro grupo tentava tomar o Palácio de Miraflores e a Guarda Presidencial.  

Quando chegamos no posto de comando, os guardas nos detiveram. Chávez então os informa que chegamos para custodiar a base e aí nos deixaram passar.

Depois que entramos convocamos os oficiais encarregados, explicamos a situação e lhes ordenamos que nos abrissem o parque de armas.

Cerca do meio dia, ainda tínhamos problemas de comunicação, não sabíamos exatamente o que estava acontecendo nos estados Zulia ou Carabobo. Muito menos na base aérea de La Carlota, no leste da Grande Caracas.

Esse foi um dos grandes elementos que desarmou a operação.  Ainda assim, com tantas deficiências, o grupo que se manteve nos estados Aragua, Carabobo e Zulia puderam tomar as principais bases militares. No entanto, em Caracas, no posto de comando, tínhamos um bom grupo de profissionais, armamento, vestimentas, mas não pudemos tomar o Miraflores. Já a base aérea foi tomada parcialmente.

Inclusive quando o presidente Carlos Andrés Pérez se mobilizou não pudemos prendê-lo e isso gerou novos cenários.

Como às 5h da manhã, o ministro de Defesa Fernando Ochoa Antich nos telefonou, eu atendi e disse que o comandante Chávez estava em uma reunião. Ele disse que Chávez deveria telefoná-lo urgentemente e desligou.

Repartimos as armas entre os militares que se encontravam no posto de comando, como forma de precaução a uma invasão das tropas do governo, mas também sempre com cuidado necessário para não ter que recorrer às armas.

Em seguida, vemos que aviões F-16 nos estão sobrevoando. Acredito que não dispararam, porque o posto de comando está em uma zona residencial, o que poderia gerar muitas vítimas civis.

 Às 8h Chávez nos reúne e nos conta informações que recebeu do general Santeliz que estava nas ruas. Disse que o presidente não havia sido capturado e que havia recebido apoio internacional de alguns países.

Afirmou que resistíamos nos outros estados, mas que em Caracas os planos não tinham saído como queríamos. E então perguntou nossa opinião, se continuávamos ou nos entregávamos.

Foi um ato bem importante, porque a decisão de entregar as armas não foi somente dele, foi de todos.

Chávez nos agradeceu e disse que assumiria a responsabilidade de tudo.

Esperamos no quartel até que chegaram os organismos de segurança, entregamos as armas, mas parte da negociação da rendição era de que ninguém fosse ferido.

 


Carlos Andrés Pérez, ex-presidente da Venezuela, durante discurso sobre a tentativa de golpe militar - 4 de fevereiro de 1992 (Foto: Divulgação)

E por que o movimento foi derrotado?

Acreditamos que houve delatores, mas nunca tivemos provas, por isso não apontamos nenhum nome. Também houve vários fatores para que militarmente não pudéssemos triunfar.

Perdemos militarmente, mas politicamente houve um impacto na população.

Ainda que houve apoio popular, as pessoas estavam temerosas pelo episódio do Caracazo, em 1989 e não saíram às ruas para nos defender, porque também não sabiam os objetivos do nosso movimento bolivariano.

A história nos deu a razão, não era o momento. Mas o movimento incidiu politicamente, porque esse povo jamais havia escutado alguém assumir a responsabilidade. Esse foi o elemento que o impulsionou para as suas atividades políticas depois que foi liberado em 1994.

Como vocês foram liberados?

Éramos cerca de 1200 detidos, então houve muita pressão popular pela nossa libertação. Eu fui a juízo e declarei o que o comandante Chávez nos tinha orientado, de que na verdade, estávamos apenas cumprindo suas ordens.

Quando ainda estávamos presos, eu consegui falar duas vezes com ele, durante um banho de sol.

Houve um grupo que saiu da prisão no quartel San Carlos depois de dois meses de detenção. Eu sai aos três meses.


O quartel da Montanha ou quartel 4F foi o posto de comando de Chávez no levantamento de 1992 e hoje é onde repousam seus restos mortais / Michele de Mello

Depois da prisão você se arrependeu por ter participado do movimento?

Minha maior preocupação era se isso poderia afetar minha família. Com exceção da minha esposa, que já sabia do movimento, outros familiares só souberam depois e acabaram apoiando o MBR-200.

Depois que saí da prisão, [os oficiais] sempre nos mantiveram sob vigilância, rotando de uma base para outra para que não pudéssemos conversar com ninguém e muito menos nos reunirmos novamente.

No entanto, meu comandante é liberado em 1994, eu consegui me reunir com um grupo de companheiros e fomos recebê-lo em Maracay, de forma clandestina.

Chávez disse que deveríamos estar atentos, mas não nos deu ordem de tomar fuzis ou unidades, que o mais importante era que transmitíssemos a outros companheiros que deveríamos pensar em outros rumos para que chegar ao poder e nos prepararmos para atividades futuras.

Passaram quatro anos e em 1998 Chávez foi candidato à presidência e conseguiu ser eleito. Você participou da campanha?

Todos que éramos como militares ativos não podíamos fazer proselitismo político, mas sim o apoiávamos e estávamos atentos ante uma possível tentativa de fraude frente a uma vitória de Chávez. O fato de que muitos militares acompanharam essas eleições foi fundamental para que as eleições fossem realizadas de maneira transparente e que os resultados fossem respeitados de acordo com a decisão que tomou o povo.

Nesse momento eu estava trabalhando em Puerto Ayacucho, no estado Amazonas, e os chefes dessa base não eram apoiadores do comandante Chávez, mas não trabalharam para alterar o resultado do processo.

O que você sentiu quando Chávez foi eleito presidente?

Emoção porque um homem coerente chegou ao poder. Alguém que exerceu liderança sem oferecer-nos dinheiro, cargos, e foi fiel aos seus valores.

Hoje em dia você é deputado constituinte, representante da FANB na Assembleia Nacional Constituinte. Mas qual foi seu papel nesses 20 anos de Revolução?

Em 1999 eu assumi o setor de comunicação da guarda presidencial, estive dois ou três anos, depois fui chefe do exército, então ascendi a general e comandei a 34ª Brigada de Comunicações e cheguei a ser comandante geral do exército entre 2010 e 2012.

Agora meu papel tem sido de dialogar com o povo e com vários componentes das Forças Armadas para buscar criar uma FANB cada vez mais próxima ao povo, que tenha os mecanismos para exercer a defesa do país frente qualquer ingerência.

A partir disso tiramos uma série de propostas que foram entregues à comissão constitucional para a redação da próxima Constituição.

Também fomos responsáveis por impulsionar a reforma da atual lei orgânica da Força Armada Nacional Bolivariana (FANB) que incluiu a Milícia Bolivariana como um componente especial.

Edição: Rodrigo Chagas