No dia 15 de março de 1950, o Conselho Mundial da Paz lançou o Apelo de Estocolmo, um texto breve revindicando o banimento de armas nucleares que foi assinado por quase 2 milhões de pessoas. O apelo era composto por três frases elegantes:
Nós exigimos a criminalização do uso de armas atômicas, instrumentos de intimidação e assassinato em massa de populações. Exigimos um controle internacional rígido dessa medida.
Consideramos que um governo que atacar primeiro qualquer outro com armas atômicas estará cometendo crimes contra a humanidade e deve ser tratado como criminoso de guerra.
Pedimos a todos de boa vontade no mundo inteiro que assinem esse apelo.
Agora, 70 anos depois, o arsenal nuclear é ainda mais letal, e as próprias armas convencionais são muito mais potentes do que a bomba atômica utilizada pelos estadunidenses em Hiroshima e Nagasaki, em 1945.
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Em 1950, existiam 304 ogivas nucleares no mundo (299 nos EUA). Atualmente, esse número é de 13.355, sendo que cada uma das ogivas de 2020 é mais destrutiva do que as dos anos 50. Algo como o Apelo de Estocolmo é imperativo para os dias de hoje.
O apelo para o banimento de armas de destruição em massa não é um tema abstrato, e, sim, um que aponta para um bloco de países liderados pelos Estados Unidos da América, que teimosamente insiste em usar a força para manter e ampliar seu domínio global.
No meio dessa pandemia global, Washington ameaça aprofundar seu conflito com a China, o Irã e a Venezuela, inclusive posicionando um grupo naval para efetivamente embargar portos venezuelanos, outro no Golfo Persa para contestar o direito de embarcações iranianas às águas internacionais, e, ao mesmo tempo, dizendo que vai instalar mísseis agressivos e sistemas de radar antiaéreos em volta da China.
Nenhum desses países (China, Irã ou Venezuela) tomou algum tipo de medida agressiva contra os Estados Unidos. São os Estados Unidos que estão impondo o conflito a eles.
Se um apelo é para ser elaborado agora, ele não poderá ser feito de uma maneira anêmica e universalista. Qualquer pedido de paz em nossa época deve especificamente ser um chamado contra o belicismo imperialista que emana de – mas não é praticado apenas por – Washington.
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Nossa análise da imposição de um estado de guerra pelos Estados Unidos é baseada em quatro pontos:
1. Os Estados Unidos já possuem o maior arsenal e a maior presença militar do mundo. Segundo os dados mais recentes, o governo estadunidense gastou no mínimo US$ 732 bilhões em 2019 no seu exército; dizemos “no mínimo”, porque existem financiamentos secretos das gigantescas operações de inteligência que não estão disponíveis publicamente. Entre 2018 e 2019, os EUA aumentaram seu orçamento militar em 5,3%, um valor equivalente ao orçamento militar anual da Alemanha. Quase 40% de todo o gasto militar no mundo é feito pelos estadunidenses. Os Estados Unidos têm mais de 500 bases militares pelo planeta, em quase todos os países. A Marinha do país possui 20 dos 44 porta-aviões operacionais no mundo, enquanto aliados de Washington possuem 21 deles; isso significa que os EUA e seus aliados são donos de 41 dos 44 navios desse tipo (a China tem dois e a Rússia um). Não existe dúvida sobre a esmagadora superioridade da força militar estadunidense.
2. Mesmo assim, os Estados Unidos estão usando toda a sua capacidade para expandir seu arsenal nuclear e convencional para o âmbito espacial e cibernético através do Comando Espacial (reestabelecido em 2019) e o Comando Cibernético (criado em 2009). O Exército estadunidense desenvolveu um míssil balístico interceptador (SM-3), que foi testado no espaço, e, atualmente, está testando armamentos futurísticos como armas que emitem jatos de partículas, armas a base de plasma e sistemas de bombardeio cinéticos. Em 2017, o governo Trump anunciou seu compromisso com esse tipo novo de armamento. Os Estados Unidos pretendem gastar US$ 481 bilhões entre 2018 e 2024 para desenvolver novas tecnologias militares, incluindo veículos autônomos, antidrones, armas cibernéticas e robóticas. O exército estadunidense já testou um míssil hipersônico avançado que consegue atingir Mach 5 (cinco vezes a velocidade do som), assim podendo alcançar qualquer ponto na Terra em apenas uma hora; essa arma faz parte do Programa Convencional de Ataque Global Rápido.
3. O exército dos EUA avançou seu programa de guerra híbrida, que inclui um leque de táticas para subverter governos e projetos políticos. Essas técnicas incluem a mobilização do poder que os EUA exercem sobre organizações internacionais (como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o serviço SWIFT de transferências bancárias) para impedir que governos sejam capazes de administrar as atividades econômicas mais básicas, o uso da influência diplomática estadunidense para isolar governos, o uso de sanções para bloquear empresas privadas de conduzirem negócios com certas nações e o uso da guerra de informação para transformar governos ou forças políticas em criminosos, terroristas e assim por diante. Esse complexo de instrumentos é capaz de – em plena luz do dia – destabilizar países e justificar mudanças de regime.
4. Finalmente, o governo dos EUA junto com seus parceiros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e fabricantes de armas europeus continuam a inundar o mercado global com armas letais. Os cinco maiores exportadores de armamentos (Lockheed Martin, Boeing, Northrop Grumman, Raytheon e General Dynamics) são todos sedeados nos Estados Unidos. Essas cinco empresas sozinhas representam 35% das vendas dos 100 maiores contratos armamentísticos de 2018 (dados mais recentes); sendo que 59% de todas as vendas de armas naquele ano vieram de empresas estadunidenses. Isso foi um aumento de 7,2% sobre o ano de 2017. Essas ferramentas de guerra são vendidas para países que deveriam estar investindo o pouco que lhes resta em educação, saúde e alimentação. Por exemplo, no Oeste Asiático e no Norte da África, a maior ameaça às populações não é apenas um terrorista numa Toyota Hilux, mas também o traficante de armas que fica no ar-condicionado de seu hotel.
O Apelo de Estocolmo agora está obsoleto. Um novo apelo é necessário. Nós o elaboramos enquanto discutíamos o assunto em Bouficha, na Tunísia, o chamaremos de Apelo de Bouficha.
Nós, os povos do mundo:
Nos posicionamos contra a política belicosa do imperialismo estadunidense, que visa impor guerras perigosas num planeta já fragilizado.
Nos posicionamos contra a saturação do mundo com armas de todos os tipos, que inflamam conflitos e, muitas vezes, tornam processos políticos em guerras sem fim.
Nos posicionamos contra o uso da força militar para prevenir o desenvolvimento social das populações mundiais, impedindo países de construírem sua dignidade e soberania.
*Abdalla El Harif é fundador da Democratic Way (partido de esquerda Marroquino); ele foi seu primeiro secretário-nacional e agora é diretor encarregado das relações internacionais. El Harif é um engenheiro que se formou na Mines Paris Tech, foi membro de uma organização clandestina no Marrocos que lutou contra a ditadura do Rei Hassan II. Por seu papel na luta pela democracia e o socialismo, El Harif ficou preso durante dezessete anos.
**Vijay Prashad é um historiador, jornalista e editor indiano. Ele escreve e é o editor-chefe da Globetrotter, um projeto do Instituto Independente de Mídia. Ele é editor-chefe da LeftWord Books e diretor do Tricontinental: Instituto de Pesquisa Social.
***Esse artigo foi produzido por Globetrotter, um projeto do Instituto Independente de Mídia.
Edição: Vivian Fernandes