Antirracismo

Artigo | Palestina entre a rocha da ocupação e o martelo do coronavírus

Enquanto a faixa de Gaza é enforcada por um bloqueio, na Cisjordânia palestinos lutam contra uma ocupação brutal

Tradução: Ítalo Piva

The Socialist Project |
Palestinos esperam num posto de segurança militar em Belém - Anne Paq

Por G. N. Nithya*

No mês passado, soldados israelenses jogaram um trabalhador palestino no meio da rua perto de um posto militar na Cisjordânia. O homem estava tremendo de febre e quase sem poder respirar. De acordo com o Middle East Eye, ele “havia demonstrado sintomas do coronavírus ao longo dos últimos quatro dias e sido recentemente testado.

Porém, antes que o homem pudesse receber os resultados, seu empregador israelense supostamente ligou para as autoridades, que vieram buscá-lo, deixando-o depois do outro lado do posto de segurança de Beit Shira, que conecta a região central de Israel com a Cisjordânia.

 “É como se fossemos escravos para eles. Eles nos usam quando precisam e quando terminam, nos jogam fora como lixo", diz um palestino. Desde o início da crise, soldados israelenses vêm ativamente obstruindo medidas emergenciais palestinas, fechando diversas clínicas e continuando com a prática de demolição arbitrária de casas. 

Elogios para a resposta ao coronavírus de um país "pronto pra guerra"  ignoram a maneira como Israel está usando a situação de pandemônio como uma arma contra os palestinos.

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Enquanto a faixa de Gaza é enforcada por um bloqueio e repetidas incursões militares há 13 anos, deixando seus dois milhões de habitantes vulneráveis a pandemias, na Cisjordânia palestinos lutam contra uma ocupação brutal que os nega os meios mais básicos de sobrevivência e autocuidado.

No dia 9 de Abril de 2020, a Cisjordânia registrava 250 casos de coronavírus. Pouco mais de um mês depois, em 19 de maio, o número chegou a 338 casos confirmados da doença. Porém, esse número poderá aumentar significativamente com o retorno de trabalhadores Palestinos em Israel, após as celebrações da Páscoa Judaica e do feriado muçulmano de Ramadã.

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Enquanto as pessoas na Itália e no Reino Unido aplaudem seus trabalhadores essenciais de suas varandas, os Palestinos que trabalham nas “indústrias essenciais” israelenses se encontram esmagados entre a pedra da ocupação e o martelo do coronavírus.”

Organizações de direitos civis palestinas pedem por uma intervenção internacional imediata. Embora a crise da covid-19 seja um momento “excepcional” na história mundial recente, as condições pelas quais os palestinos estão sendo submetidos nos lembra que a Nakba (النكبة) – a expulsão, despossessão e desumanização do povo em 1948 – não é um fato do passado, mas sim algo que persiste.

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Trabalhadores palestinos sofrem o peso dessa violência. É imperativo que a esquerda internacional reconheça o cenário excepcional que confronta os palestinos durante a pandemia, e tome medidas políticas de apoio imediato à emergência médica, e para o fim da ocupação. 

A ocupação e a pandemia

Muitos palestinos tem negados serviços básicos de saúde por conta dos confiscos de terra e postos de segurança militar israelenses. Comunidades palestinas na Zona C, que engloba aproximadamente 60% da Cisjordânia, estão particularmente vulneráveis.

Na região de Naqab (Negev), por exemplo, mais de 80 mil palestinos não tem acesso a serviços emergenciais de saúde. Casos de coronavírus estão aumentando rapidamente em Jerusalém do leste, onde palestinos são sujeitos aos critérios discriminatórios de residência israelenses, além de uma falta de investimentos em serviços públicos.

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Hospitais palestinos na cidade possuem apenas 22 respiradores para aproximadamente 350 mil residentes. O acesso de muitas pessoas de baixa renda e da classe trabalhadora aos serviços de saúde pública vem diminuindo por conta de cortes em repasses monetários tanto por Israel quanto pelo governo Trump, além das medidas de austeridade impostas pelo FMI e o Banco Mundial à Autoridade Palestina.

Na Cisjordânia, apenas 256 respiradores adultos estão disponíveis para uma população de 3 milhões, dos quais 90% já estão em uso. A disseminação da doença trará consequências catastróficas para o povo palestino. 

Mesmo assim, esforços palestinos para construir sistemas de apoio comunitários estão sendo sistematicamente sabotados pela ocupação israelense. Em março, palestinos que estavam desinfetando espaços públicos e distribuindo pacotes médicos na Cidade Velha de Jerusalém foram detidos.

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No início de abril, o exército israelense prendeu o ministro de Comunicação Fadi Hidmi, enquanto ele tentava ajudar palestinos em Jerusalém afetados pela pandemia da covid-19. No dia 15 de abril, apesar de 40 casos confirmados no bairro árabe de Silwan, também em Jerusalém, o exército israelense invadiu a clínica de testes de coronavírus e prendeu os organizadores.

Residentes de Silwan são repetidamente alvo de expulsões e demolições, assim como os palestinos da Zona C. No vilarejo de Khirbet Ibziq, o exército israelense também está sabotando os esforços de combate do coronavírus, confiscando o equipamento para construção de um hospital temporário e moradia emergencial para moradores, alguns que tiveram suas casas demolidas pelas forças da ocupação.

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Mesmo com as Nações Unidas clamando por um cessar fogo em todas zonas de conflito globais, e fazendo um apelo para que as populações do mundo fiquem em isolamento, Israel expulsa palestinos de suas casas. 

Diariamente, palestinos sofrem da segregação institucionalizada através do controle exercido por Israel sobre fontes de água, uma necessidade básica durante essa pandemia. A apropriação e exploração das águas costais e montanheiras palestinas é uma das principais armas de guerra israelenses.

Após a ocupação da Cisjordânia, Gaza e Jerusalém oriental em 1967, autoridades israelenses usaram seu poderio militar para consolidar seu controle sobre fontes subterrâneas e a infraestrutura aquífera relacionada, um controle que eles reforçaram no acordo de Oslo em 1994.

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Dezenas de milhares de palestinos são forçados a comprar água (de caminhões privados ou da estatal israelense Mekorot) a preços exorbitantes. De acordo com órgão de Coordenação de Assuntos Humanitários das Nações Unidas, mais de 180 comunidades rurais na Cisjordânia não tem acesso à água.

Nos vilarejos “não reconhecidos” do território, mais de 56 mil pessoas se encontram na mesma situação. A Anistia Internacional afirma que os gastos com água podem chegar a 50% da renda mensal de algumas famílias nas comunidades mais pobres.

O resultado é uma discriminação racial manifesta: um assentador ilegal israelense na Cisjordânia usa em média oito vezes mais água que um palestino. Manter a higiene básica e ter as condições de sobreviver uma pandemia se tornam impossíveis com esse sistema de apartheid  para os palestinos, especialmente da classe trabalhadora e de baixa renda.

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Sob a quarta Convenção de Genebra, como a potência ocupadora, Israel é obrigado a garantir condições básicas de saúde e higiene, incluindo água e saneamento. 

Esse momento de pandemia está sendo explorado pelas autoridades israelenses para intensificar ações militares, mecanismos de vigilância, e para criar “novos fatos” na realidade do processo de anexação de territórios palestinos, que foi normalizada pela administração Trump, decisões recentes do Knesset (parlamento de Israel), e pelo “acordo de unificação” entre Benjamin Netanyahu e Benny Gantz.

No mês passado, grandes blocos de assentamentos israelenses como o de Gush Etzion, no sul de Jerusalém, foram expandidos, comprometendo ainda mais a integridade territorial da Cisjordânia. A infraestrutura de apartheid, que beneficia apenas os invasores também foi expandida em assentamentos como o de Ma’ale e Adumim.

Enquanto a Autoridade Palestina impôs um lockdown na Cisjordânia, o exército israelense intensificou detenções, demolições, expulsões e incursões militares no território e em Jerusalém. Em plena pandemia, num período de duas semanas em março, “forças israelenses feriram 200 palestinos, detiveram 100 e demoliram 16 domicílios,” segundo um levantamento da MondoWeiss.

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Enquanto isso, no mesmo período, agressões de cidadãos israelenses na Cisjordânia também aumentaram, com um crescimento de 78% em ataques violentos contra palestinos e suas propriedades por assentados, muitos deles por soldados ou pela juventude em quarentena. 

Palestinos cruzando a linha verde e o apartheid da contenção do vírus

Palestinos que trabalham em Israel ou nos assentamentos ilegais são especialmente vulneráveis durante a pandemia. Tendo se apropriado de suas terras, a colonização israelense visa tornar o povo palestino numa população dependente, subordinada e de mão de obra explorável, incorporada na economia de Israel pela força do militarismo.

Uma política sistemática de subdesenvolvimento reprimiu o avanço industrial palestino após 1967, que, em conjunto com a expropriação da terra cultivável e das fontes de água nos Territórios Ocupados, forçou muitos palestinos a trabalharem como intermitentes nos assentamentos construídos em seus próprios terrenos confiscados.

Essa política permanece em prática até hoje. Dado o alto nível de desemprego, resultante do estrangulamento econômico israelense, palestinos trabalhando em Israel agora somam mais de 133 mil, enquanto seus ganhos sustentam uma população de mais de meio milhão. 

Mesmo antes da pandemia, esses milhares de trabalhadores estavam sujeitos às ferramentas de discriminação das autoridades israelenses. Essas incluem o sistema de “permissão de movimento”, monitorado pelos postos de segurança militares – uma ferramenta de chantagem para disciplinar politicamente palestinos e forçar a colaboração.

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Além disso, palestinos são sujeitos a condições desumanas nesses pontos de entrada para o território israelense, onde milhares tentam cruzar diariamente, sendo humilhados e agredidos por soldados, para depois sofrerem discriminação sob a lei e de seus empregadores israelenses.

Trabalhadores palestinos não tem praticamente nenhuma proteção judicial, ganham bem menos que seus colegas de trabalho israelenses, sem o benefício de seguro de saúde, e mesmo assim sendo forçados a contribuir com impostos ao governo de Israel.

Essas pessoas são exploradas por intermediários israelenses e palestinos – máfias que os forçam a pagar taxas astronômicas (mais do que U$800 por mês), para conseguirem autorização no mercado negro para simplesmente atravessarem a Linha Verde, sem qualquer garantia de trabalho. 

Os israelenses foram aplaudidos pela eficácia da sua resposta “militar” à crise da covid. Porém, para manter setores da economia durante a pandemia, que corria o risco de perder $1.8 bilhões por mês apenas na área de construção, o governo israelense continuou permitindo a entrada de trabalhadores palestinos em seu território.

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Com isso, as autoridades israelenses vêm usando a pandemia para intensificar o monitoramento e a repressão desses trabalhadores. Palestinos que pedem “autorização” para permanecer em Israel são “aconselhados” a baixar o aplicativo “Al Munasiq” (“O Coordenador”), que dá ao exército acesso à localização, arquivos e à câmera dos usuários.

As fronteiras do apartheid não apenas segregam palestinos de israelenses judeus, mas também das próprias entidades governamentais palestinas. Israel privilegia palestinos jovens e capazes, excluindo os mais velhos. No dia 11 de março, autoridades israelenses decretaram novas regras barrando trabalhadores palestinos com mais de 50 anos de idade de cruzar a fronteira; no dia 17, foram além, anunciando que, se esses mesmos trabalhadores quisessem manter seus empregos em Israel, seriam obrigados a permanecer em quarentena no país por 1 a 2 meses.

Estima-se que entre 40 e 50 mil palestinos cruzaram a linha de controle durante essa correria. Porém, no dia 25 de março, o Primeiro Ministro Palestino pediu para que esses cidadãos voltassem para a Cisjordânia, após denúncias de racismo e tratamento desumano.

Trabalhadores eram forçados a viver em condições esquálidas nos seus locais de trabalho em Israel, supostamente indignas para seres humanos. Enquanto isso, Israel não conduzia testes de covid-19 nesses empregados. Invés de receberem tratamento, trabalhadores que apresentam sintomas da doença são jogados de volta no território palestino pelos postos de segurança ao longo da Linha Verde, “como lixo”, sem qualquer coordenação com autoridades palestinas. 

Teme-se um surto incontrolável do coronavírus na Cisjordânia, com a volta de mais de 40 mil pessoas depois da Páscoa e do Ramadã. Além disso, o governo israelense anunciou que aqueles que voltarem ao território palestino não poderão retornar à Israel para trabalhar.

Esses trabalhadores são totalmente dependentes de seus salários, enquanto muitos ainda devem por terem comprado suas “autorizações” para transitar entre os postos de segurança. Ao mesmo tempo, eles correm risco de infecção em Israel sem ter acesso à saúde pública.

Ao retornar para Cisjordânia, essas pessoas continuam não tendo acesso a testes e sofrendo preconceito devido ao aumento de casos de coronavírus vindos de Israel. 

Solidariedade internacional com os palestinos

Esse momento de crise cria uma oportunidade histórica para mobilizar movimentos de solidariedade com os palestinos, outras populações indígenas e trabalhadores de todo mundo. No dia 7 de abril, uma coalizão de grupos de direitos humanos e da sociedade civil palestina novamente fizeram um pedido de solidariedade internacional, revindicando que Israel dê acesso à infraestrutura de saúde pública e solte presos detidos ilegalmente que correm o risco de contraírem o vírus nas prisões israelenses.

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Eles também pedem que o bloqueio de Gaza seja rompido com uma nova Flotilha da Liberdade e a intensificação da campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções. No dia 14 de Abril, essa mesma coalizão fez um apelo emergencial às Nações Unidas, pedindo para que a organização repudie as práticas sistemáticas de discriminação racial e exploração de trabalhadores palestinos, forçados a arriscar suas vidas durante essa crise.

Além da covid, tentativas de indiciar Israel por crimes de guerra na Corte Penal Internacional têm consequências diretas na realidade atual. 

Uma das questões para a esquerda internacional é como mobilizar com urgência as campanhas de apoio dentro e fora da Palestina. O dia de Nakba, celebrado em 15 de maio, marcou o septuagésimo segundo ano de injustiças inconcebíveis contra o povo palestino.

É necessário que as forças de esquerda demonstrem a correlação entre as condições específicas de colonialismo e apartheid sofridas pelos palestinos, com os ataques neoliberais contra a classe trabalhadora em todo o mundo. A luta dos trabalhadores palestinos não pode ser interpretada apenas como uma batalha nacionalista por autodeterminação.

A covid-19 chega num momento de intensa crise no sistema capitalista, onde a classe trabalhadora vem sofrendo ataques sistemáticos sob décadas de neoliberalismo, a comercialização da maioria dos aspectos da vida social e o endividamento perpétuo. Trabalhadores palestinos estão totalmente incorporados nesse processo financeiro global, no contexto específico da governança colonial israelense.

Logo, a luta dos trabalhadores palestinos contra a covid-19 deve também ser entendida como uma luta contra o capitalismo. Um chamado global por solidariedade com os palestinos e todos os povos colonizados do mundo durante a pandemia, foi feito pela Rede Internacional Trabalhista de Luta e Solidariedade.

Precisamos agir urgentemente com solidariedade, que nas palavras do revolucionário moçambicano Samora Machel, não deve ser vista como “um ato de caridade, mas sim uma união entre aliados lutando em diferentes frentes pelo mesmo ideal.”

Edição: Leandro Melito