Na última quinta-feira, o Brasil registrou 407 mortes pela covid-19, o maior número desde o início da pandemia. Nesta sexta-feira (24) foram registradas 357 novas mortes e o total de vítimas fatais da doença é de 3.670 pessoas, segundo dados do Ministério da Saúde. Isso significa que milhares de pessoas estão lidando com a dor da morte de um ente querido em um contexto nunca antes vivido.
Seguindo orientações de órgãos sanitários, o velório dos falecidos em decorrência da síndrome respiratória são limitados, com tempo curto de duração. O objetivo é evitar a contaminação e a aglomeração de pessoas em meio à alta demanda.
As cerimônias acontecem também de forma atípica, com os caixões fechados, já que o Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendam que o corpo seja enrolado em lençol e ensacado, sem contato com outras pessoas.
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Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, a psicanalista Maria Rita Khel comenta o processo de luto em meio à pandemia. "Não poder ver o corpo de alguém que perdeu, é uma tortura. Sobra um restinho de esperança. E se não era ele? E se enterraram outra pessoa? E se ele está doente e eu não consigo socorrer porque não sei onde ele está. É uma situação muito dolorosa", afirma.
Em algumas regiões como em Manaus, por exemplo, o cenário é ainda mais delicado. Com o crescimento de mortes causadas pela pandemia, as vítimas estão sendo enterradas em valas coletivas no Cemitério Tarumã, zona oeste da cidade. Para evitar aglomerações, a Prefeitura também determinou a restrição de acesso a cinco pessoas por família.
Em São Paulo, estado que concentra o maior número de óbitos do país com 1.345 mortes, a gestão do prefeito Bruno Covas anunciou que a partir deste sábado (25) está suspensa a realização de velório das vítimas na capital paulista e autorizados os enterros noturnos. As homenagens poderão ser feitas em estruturas instaladas nos cemitérios, próximas ao local das sepulturas.
Confira a entrevista completa com a psicanalista sobre a pandemia
Brasil de Fato - Em meio ao isolamento social, como lidar com a falta do contato humano? Sem os abraços, beijos e conversas...Muitas pessoas moram sozinhas e não têm essa troca.
Maria Rita Khel - Meu palpite de como fazer é um palpite da mesma forma que qualquer cidadão poderia dar o seu. Não é por ser psicanalista que eu sei mais, o como fazer não está na nossa alçada. O que eu posso te dizer é o seguinte: tem funcionado muito entre mim, familiares e meus amigos, as reuniões pelo Zoom [aplicativo de reuniões online], os encontros virtuais.
Vou dar um exemplo: Eu e meus irmãos, depois que morreu nossa mãe, começamos a almoçar juntos um dia por semana, todo mundo junto, para não perdermos o contato. Agora, que não podemos, cada um almoça na sua casa, entramos no Zoom e ficamos conversando. A mesma coisa com a aula de um grande amigo meu, que estava assistindo, de História do Brasil, do Luiz Felipe Alencastro, excelente historiador e uma aula muito boa.
Estava fazendo presencial e agora está acontecendo pelo Zoom. Com essa coisa de tudo ser virtual, podermos ligar e falar, se vamos na casa de alguém tem que saber se a pessoa pode, enfim. Agora, com tudo virtual, meu cotidiano está muito cheio. Isso que é engraçado. Você marca uma horinha e pronto na sua cama, na poltrona, onde você quiser. Não tem vazio por aí, se as pessoas quiserem continuar se encontrando.
Nas últimas semanas, tenho pensado muito no sentimento de luto, e de impotência, principalmente em relação aos familiares que não conseguem enterrar as vítimas do coronavírus. Imagino que essa não despedida tenha um peso muito grande. Como avalia essa questão?
Isso é terrível mesmo. A morte é tão incompreensível para nós, que precisamos fazer rituais. Dissemos que são de despedida, embora a pessoa que esteja no caixão não esteja mais lá. Em um enterro normal, estamos nos despedindo da ilusão que aquela pessoa vai continuar por aqui.
Vou comparar com as condições dos desaparecidos políticos. É um pouco diferente porque com os desaparecidos, não existe nem ao menos uma certidão declarando que estão mortos. Então os parentes dos desaparecidos, enquanto estiverem vivos, os estão procurando.
Encerrar uma busca de alguém que desapareceu há 40 anos atrás, na ditadura, como uma mãe procurar um filho, marido procurar esposa e vice-versa, um irmão procurar outro irmão, é como se você tivesse abandonando essa pessoa, desistido dela.
Vou dar um exemplo: A avó do presidente da OAB atualmente, o Fernando Santa Cruz, a dona Elzita Santa Cruz. O pai dele é um desaparecido político. Essa mulher procurou esse filho até quase 90 anos. Quando começou a Comissão da Verdade, ela morreu. Claro que não quer dizer que ela decidiu morrer, mas é como se ela tivesse relaxado. Se permitiu parar de lutar porque alguém ia continuar procurando o filho dela.
Estou falando sobre a ditadura mas para responder sua pergunta. Não poder ver o corpo de alguém que perdeu, é uma tortura. Sobra um restinho de esperança. E se não era ele? E se enterraram outra pessoa? E se ele está doente e eu não consigo socorrer porque não sei onde ele está. É uma situação muito dolorosa.
Como podemos durante esse período organizar ações de solidariedade?
O que eu queria de dizer é que, se algo que pode nos fazer sentir um pouquinho melhor nessa situação tão horrível, é não olhar só para nosso umbigo porque estamos entediados, porque não aguentamos ficar em casas de classe média com comida, com televisão, e tentar entrar em sites confiáveis de doação para pessoas que vão passar muita fome se não participarmos nessa hora.
Estamos em casa, pedimos comida para ser entregue, temos algum parente que pode pagar o aluguel se a gente não puder. Estamos em uma situação muito ruim, que deve dar depressão para uns, ansiedade para outros e etc. Mas temos como tocar nossa vida. E os moradores de rua? E os favelados fazendo bicos, porque não tem emprego, e trabalham entregando coisas, entregando botijão de gás, e agora não podem mais fazer nada.
Acho que pelo menos as pessoas que chamamos de pessoas de bem, que não olham só para seu umbigo, um dos motivos de tristeza, talvez nem nos demos conta e não estejamos pensando nisso, é a tristeza de saber que temos como nos proteger e continuar comendo enquanto tem gente que vai morrer de fome.
Se as pessoas puderem, eu sou uma pessoa de esquerda e pensamos muito mais em organizar a luta do que fazer caridade, mas nesse momento não podemos deixar as pessoas morrendo de fome.
Isso faz a gente se sentir um pouquinho melhor. Não podemos nada contra a pandemia, não podemos fazer nada contra o presidente, não podemos nem nos manifestar, mas podemos deixar menos pior a situação de quem tá passando fome.
Edição: Leandro Melito