O maior crime industrial da história ocorreu há quase 36 anos em Bhopal, região central da Índia, e não para de fazer vítimas. Cerca de 27 toneladas do gás isocianato de metila vazaram de uma fábrica de agrotóxicos desativada da companhia estadunidense Union Carbide na madrugada de 3 de dezembro de 1984. Ao menos 2,2 mil pessoas morreram imediatamente após inspirarem a substância tóxica, e não há perspectivas de evitar a contaminação das próximas gerações.
A Campanha Internacional por Justiça em Bhopal estima que o total de mortes em decorrência do vazamento seja superior a 25 mil e alerta que o número de atingidos aumenta dia após dia, se aproximando da casa dos 600 mil. A última estatística oficial do governo indiano é de 2006 e reconhece 558 mil vítimas.
Uma pesquisa realizada pelo Comitê Consultivo Científico do Conselho de Pesquisa Médica da Índia em 2017 mostrou que mulheres que inalaram o gás tóxico em 1984 têm 9% de chances de dar à luz a bebês com má formação genética. A incidência de distúrbios é quase seis vezes menor entre os filhos de mães não expostas ao isocianato de metila.
Vidas contaminadas
Jyoti Vishu Karma tinha cinco anos na época do desastre e cresceu vendo os pais e os dois irmãos enfrentarem os impactos da contaminação. A filha dela, Yashi, tem 13 anos e convive com um distúrbio neurológico congênito que compromete a locomoção, retarda o aprendizado e a impede de formular frases complexas.
A multinacional pagou como indenização, em média, o equivalente a R$ 2,5 mil por atingido, sem considerar os danos às gerações seguintes. As famílias de vítimas fatais receberam cerca de R$ 10 mil cada.
“Nossa vida nunca foi a mesma depois daquele desastre. Todo o meu entorno foi afetado pelo gás. Uma das minhas sobrinhas teve o mesmo diagnóstico da Yashi. Então, só na nossa família, foram duas crianças afetadas”, afirma Jyoti, enfatizando que o valor da indenização é irrisório se comparado ao dano.
Yashi frequenta o centro de reabilitação Chingari, que oferece gratuitamente os serviços de fisioterapia, fonoaudiologia e aulas especiais para crianças da segunda e terceira gerações atingidas.
Irreversível
“O que as pessoas vivem hoje são os impactos que aquele vazamento provoca no sistema neurológico”, assegura o doutor Raghuram, que atende na clínica Sambhavna, localizada em uma das comunidades mais atingidas. “Quando atinge o nível neurológico, quer dizer que passa a impactar no material genético. Aí, não tem jeito. Crianças estão nascendo com Síndrome de Down, paralisia cerebral, autismo... E a quarta e a quinta geração também sentirão esses efeitos, porque não há como impedir que eles sejam passados adiante”, explica o médico.
Em 2016, a divisão de pesquisa da clínica Sambhavna constatou que a incidência de câncer entre a população atingida pelo gás é dez vezes maior que em outras regiões.
Raghuram acrescenta que, para além dos distúrbios e tumores, os adultos de Bhopal convivem com sintomas peculiares e muito semelhantes entre si, evidenciando que o vazamento de gás é a causa comum desses efeitos.
“Quase 90% dos pacientes relatam que sentem vertigem, tontura, dormência em alguns membros. Pessoas não diabéticas, sem nenhuma causa aparente, sofrem de incontinência urinária, e isso tudo é muito alarmante”, relata o médico. “Se a gente traçar uma linha entre todos esses casos, o que há em comum é a exposição ao gás na infância”.
A clínica Sambhavna só se dedica a tratar os sintomas que os pacientes relatam. Outras formas de prevenção ou redução de danos das gerações futuras estão descartadas no momento, porque dependem de pesquisas específicas. Para isso, seria preciso saber exatamente quais materiais vazaram em 1984 e em quais quantidades. A Union Carbide nunca forneceu essas informações.
“Há muitas controvérsias nesse sentido. Se houvesse vazado apenas isocianato de metila, talvez o desastre não produzisse todos esses sintomas. Nós suspeitamos que também vazaram outras substâncias”, afirma Raghuram.
Os responsáveis
A indignação com a postura da empresa estadunidense uniu ativistas que se sensibilizaram ao longo dos anos com a causa dos atingidos.
Rachna Dhingra cresceu na capital Nova Delhi e só tomou conhecimento dos impactos do vazamento em Bhopal quando foi estudar nos Estados Unidos. Em 1999, sobreviventes viajaram à América do Norte para protestar contra as condições da fusão da Union Carbide com outra companhia estadunidense, a Dow Chemical, que seria oficializada dois anos depois.
“Eles diziam que a Dow Chemical não podia simplesmente comprar os ativos de outra empresa e não assumir seus passivos pendentes”, conta Rachna. “Comecei a pesquisar o que tinha acontecido, me envolvi com o tema e me mudei para Bhopal em 2003”.
Hoje, Rachna é representante da Campanha Internacional por Justiça em Bhopal e se dedica a denunciar a impunidade do que considera “o maior desastre corporativo da história”.
Nenhum dos oito executivos da Union Carbide na Índia foi punido. O então presidente da empresa, Warren Anderson, que assinou a obra em Bhopal, foi preso logo após o vazamento, mas pagou uma fiança e morreu 30 anos depois em uma praia na Flórida, costa leste dos Estados Unidos.
As causas do vazamento nunca foram esclarecidas. O que se sabe é que o isocianato de metila deveria ser mantido em temperaturas mais baixas. “Foi uma execução desastrosa. Eles desligaram a unidade de refrigeração para economizar algo como US$ 40 por dia”, afirma Rachna Dhingra.
A Union Carbide mantinha uma fábrica semelhante no estado de Virgínia Ocidental, nos Estados Unidos. A companhia nunca autorizou que os indianos fizessem uma visita oficial àquela unidade. Porém, o Comitê de Cooperação para as Vítimas do Gás conseguiu acesso ao projeto e aos protocolos de segurança e descobriu que eles eram mais exigentes do que em Bhopal.
“Temos fortes evidências de que o governo dos EUA fez lobby junto a autoridades indianas tanto para garantir condições para investir no país quanto para se livrar da responsabilidade sobre o ocorrido em Bhopal”, acrescenta a ativista.
Ao não pressionar os Estados Unidos e a Dow Chemical a dar respostas consistentes, Rachna Dhingra considera que os governos indianos desde 1984 vem abrindo caminho para novos extermínios: "É um precedente, um convite para todas as multinacionais virem, matarem as pessoas e poluírem o meio ambiente", completa Dhingra.
Em uma área de 64 km², cerca de 48 comunidades ao redor da antiga fábrica tiveram suas águas subterrâneas contaminadas. Hoje, cerca de 100 mil pessoas vivem no local.
“As pessoas afetadas em Bhopal eram das camadas mais baixas da classe trabalhadora. Recebiam por diária, eram agricultores ou cuidadoras de crianças. Depois que foram expostos ao gás, eles nunca mais puderam executar trabalhos pesados”, relata. “Sem perspectivas, muitos se mudaram para a área logo atrás da fábrica, sem saber que ela ainda estava contaminada, e se tornaram duplamente vítimas”, completa a ativista.
A contaminação da água limita a atuação médica e contribuiu para perpetuar os efeitos do isocianato de metila em Bhopal. “Se você quer curar um paciente, não basta dar remédios. É preciso orientá-lo sobre sua dieta, mudanças de hábito, de rotina. Mas, aqui, o paciente sai da clínica e vai para um bairro em que a água está envenenada. Não há muito o que fazer”, admite o doutor Raghuram.
Luta por reparação
Champadevi Shukla é uma das fundadoras do centro de reabilitação Chingari e diz que renova suas esperanças “no trabalho feito dia após dia”. Ela relata que perdeu o marido e dois filhos em decorrência do vazamento de gás.
“Eu mesma enfrentei muita dificuldade para enfrentar os sintomas. Então, o centro de reabilitação é uma possibilidade de fazer algo por essas crianças, enquanto aguardamos que se faça justiça”, afirma. “Ver a evolução delas é o que nos faz continuar”.
Desde 1984, os atingidos tentam chamar a atenção da mídia e da Justiça para o agravamento dos impactos em Bhopal. Depois de marcharem 770 km até Nova Delhi e realizarem protestos a cada aniversário do vazamento, eles conseguiram fundos para manter as clínicas e centros de reabilitação na cidade, além de garantirem investimentos em saneamento básico na região.
A Campanha Internacional por Justiça em Bhopal fez uma nova lista de exigências em 2019, quando o crime da Union Carbide completou 35 anos. Entre as reivindicações, estava o pagamento de US$ 8 mil para cada sobrevivente, com base em valores definidos pela Suprema Corte Indiana. A organização também pediu que a Índia cobrasse da Dow Chemical uma compensação por danos à saúde e ao meio ambiente. Nenhum dos itens da lista foi atendido.
A média de lucro da Dow Chemical em seus últimos anos de operação é superior a US$ 4 bilhões ao ano, o equivalente a R$ 18 bilhões. No Brasil, a multinacional atuou no mercado de agrotóxicos entre 1956 e 2019. Desde junho do ano passado, ela se fundiu com a multinacional DuPont, também dos Estados Unidos, e passou a operar nos ramos de embalagem, infraestrutura e cuidados do consumidor.
A empresa Corteva Agriscience, resultado da fusão entre Dow Chemical e DuPont, é a sétima maior companhia do setor de agrotóxicos no mundo e a que mais recorre à Justiça brasileira para flexibilizar leis que regulamentam o uso de pesticidas.
O Brasil de Fato entrou em contato com a Dow Chemical e expôs os questionamentos apresentados na reportagem, mas não obteve resposta.
Edição: Rodrigo Chagas