Jair Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade ao compartilhar um vídeo convocando manifestação contra o Congresso Nacional, organizada por grupos de extrema direita, em defesa dos militares e do próprio governo. A análise é de especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, que afirmam que a ação fere o item II do artigo 85 da Constituição Federal.
A cláusula prevê como crime de responsabilidade do presidente da República atos que atentem contra o livre exercício do Poder Legislativo, Judiciário, do Ministério Público e outros Poderes constitucionais das unidades da Federação.
O ato organizado por defensores do governo está marcado para o próximo dia 15 de março. A mobilização ganhou força na semana passada após o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), ter atacado parlamentares acusando-os de fazer “chantagem”.
Divulgado com exclusividade pelo O Estado de S. Paulo, o vídeo de um minuto e 40 segundos conta com o Hino Nacional Brasileiro como trilha sonora, e, em tom dramático, mostra em seus primeiros segundos a facada que Bolsonaro sofreu em Juiz de Fora (MG), em 2018.
"Ele foi chamado a lutar por nós. Ele comprou a briga por nós. Ele desafiou os poderosos por nós. Ele quase morreu por nós. Ele está enfrentando a esquerda corrupta e sanguinária por nós. Ele é a nossa única esperança de dias cada vez melhores. Ele precisa de nosso apoio nas ruas. Dia 15.3 vamos mostrar a força da família brasileira", diz trecho da legenda do vídeo compartilhado por Bolsonaro.
Tânia Oliveira, da coordenação executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), reprova a postura do presidente e afirma que, ao compartilhar o vídeo, Bolsonaro cometeu um crime.
“Quando o presidente da República repassa, em qualquer que seja o mecanismo, a convocação para um ato que tem como pauta o fechamento do Congresso Nacional, isso é claramente um crime de responsabilidade. Em alguns casos existem interpretações sobre o que é ou não é crime de responsabilidade. Nesse caso não há qualquer dúvida. Ele corroborou com o chamamento de um ato contra a democracia brasileira. É muito grave”, ressalta Oliveira.
Doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Adilson Moreira traça o mesmo diagnóstico e afirma que Bolsonaro violou a Constituição de diversas formas.
Moreira explica que, conforme o artigo primeiro da Constituição Federal, o Brasil é um Estado Democrático de Direito e se baseia na divisão entre os três Poderes. Por mais que sejam independentes, Legislativo, Executivo e Judiciário devem exercer o controle um sobre o outro, reciprocamente, de forma a manter o equilíbrio entre eles.
Segundo o especialista, todas as pessoas que representam tais poderes também são controladas pelas normas jurídicas da Constituição. Seja o presidente, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) ou senador.
Portanto, na avaliação de Moreira, Bolsonaro fere o próprio Estado Democrático de Direito ao convocar uma ofensiva contra o Congresso.
O professor universitário acrescenta que, além do item II do artigo 85, a fala de Bolsonaro também fere o item III do mesmo artigo, que aborda os direitos políticos, sociais e individuais.
“Ele está atentando contra um poder que representa a população brasileira, portanto, está violando também o direito de voto e a lógica da democracia. São inúmeras violações”.
Por ser um crime de responsabilidade, o especialista afirma que Bolsonaro pode ser alvo de um processo de impedimento.
“O próprio Congresso Nacional pode iniciar um processo de impeachment presidencial. Isso é um crime de responsabilidade de natureza político-administrativa. E o Congresso Nacional tem a possibilidade de fazer isso, também está previsto na Constituição da República”, afirma Moreira.
O presidente, por sua vez, alegou em sua conta oficial no Twitter, que trocou mensagens de cunho pessoal pelo Whatsapp e disse que “qualquer ilação fora desse contexto são tentativas rasteiras de tumultuar a República”.
Na avaliação dos juristas, no entanto, o fato de ter compartilhado a convocatória contra o Congresso Nacional em sua rede pessoal, não exime o presidente do crime de responsabilidade.
“Esse fato atenta contra a democracia. E esse não é o primeiro ato. São vários. Uma sucessão de atos que atenta contra o povo brasileiro, contra grupos minoritários, contra outros poderes. Contra a população em geral. Na verdade, é mais um de uma série de atos pelos quais ele poderia ter sido responsabilizado”, argumenta Adilson Moreira.
Tânia Oliveira, da ABJD, defende que as casas Legislativas deveriam repudiar o ato com veemência e que a sociedade deve cobrar respostas dos poderes instituídos. Ela acrescenta ainda que qualquer cidadão pode oferecer uma denúncia e dar início ao pedido de impeachment contra o presidente da República submetido à Câmara dos Deputados.
Posicionamentos
Quase 24h depois da notícia veiculada nos principais jornais do país, Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, fez uma postagem em defesa da democracia, sem mencionar diretamente a manifestação de grupos autoritários.
“Só a democracia é capaz de absorver sem violência as diferenças da sociedade e unir a Nação pelo diálogo. Acima de tudo e de todos está o respeito às instituições democráticas”, escreveu Maia, fazendo referência ao slogan "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".
“Criar tensão institucional não ajuda o País a evoluir. Somos nós, autoridades, que temos de dar o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional. O Brasil precisa de paz e responsabilidade para progredir”, concluiu o presidente da Câmara.
Segundo ressalta Pedro Fassoni Arruda, cientista político e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Bolsonaro acumula declarações polêmicas, contrárias à democracia e às instituições, durante seus 27 anos de atuação parlamentar.
Fassoni relembra que não é a primeira vez que Bolsonaro atenta contra o Congresso Nacional. “Antes de ser eleito, ele declarou, inclusive, que uma das primeiras medidas ao assumir, seria justamente fechar o Congresso Nacional. Assim como seus filhos, que contam com respaldo do pai, e já fizeram declarações no mesmo sentido sobre ‘bastar somente um soldado e um cabo para fechar o STF’”, comenta Fassoni. A frase em questão foi dita por Eduardo Bolsonaro em outubro de 2018.
Na opinião do cientista político, o desgaste causado entre os três poderes neste momento é resultado da política adotada pelo governo.
“Bolsonaro vem tensionando, por meio dessas declarações, e tentando medir força com o Congresso e com o STF, para ver se existe algum tipo de reação. Como não existe nenhum tipo de tentativa efetiva de barrar esse avanço, Bolsonaro continua testando os limites dessas instituições. Acredito que se não houver uma resposta, do Congresso e do STF, diante a esse atentado do Bolsonaro, as coisas podem piorar”, avalia.
Repúdio
Com a repercussão nacional do ato de Bolsonaro, as executivas nacionais do PT, PSOL e PSB, assim como diversos parlamentares, manifestaram repúdio contra o presidente.
Em nota oficial, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva definiu a republicação do vídeo por Bolsonaro, assim como a declaração do general Heleno, “como mais um gesto autoritário de quem agride a liberdade e os direitos todos os dias”.
Já o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso definiu o episódio como “uma crise institucional de consequências gravíssimas”. “Calar seria concordar. Melhor gritar enquanto se tem voz”, registrou em seu perfil no Twitter.
Ciro Gomes (PDT) classificou como “criminoso” incitar a população com “mentiras contras as instituições democráticas” e pediu reação do Congresso. Os partidos políticos, entidades e movimentos sociais informaram que devem se reunir na Câmara dos Deputados, na próxima terça-feira (3), para articular resposta às ações autoritárias do governo e de seus apoiadores.
Na segunda-feira (24), o general da reserva Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo na gestão Bolsonaro, já havia criticada a mobilização do dia 15 de março. Ele repudiou o uso de imagens do general Augusto Heleno e do vice-presidente, general Hamilton Mourão, em chamados para a manifestação e classificou a ação como “irresponsabilidade”.
“Exército Brasileiro. Instituição de Estado, defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Confundir o Exército com alguns assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas é usar de má fé, mentir, enganar a população”, disse Santos Cruz.
A história se repete
Frente ao não diálogo de Bolsonaro com parlamentares do Congresso que não estejam completamente alinhados com seu governo, o cientista político Pedro Fassoni Arruda, compara a gestão do político, atualmente sem partido, com a atuação de Jânio Quadros e Collor de Mello na presidência.
“O que Bolsonaro, Jânio e Collor tem em comum? O fato de que nenhum deles tem a habilidade, o jogo de cintura, para negociar com o Congresso Nacional. Reclamam da letargia das instituições, que o ritmo é difícil. Nenhum deles contava com maioria no Congresso, e tendo dificuldade para negociação, ensaiavam uma espécie de Bonapartismo, tentando se colocar como liderança acima dos interesses das classes sociais, para conduzir ‘com pulso firme’ o governo. Nos dois primeiros casos, essa tentativa falhou. E acredito que essa tentativa também pode dar errado com Bolsonaro”, aposta Fassoni.
Seis congressistas já manifestaram apoio à manifestação do 15 de março. Entre eles, Carla Zambelli (PSL-SP), que fez uma postagem chamando para o ato.
“Não vivemos num parlamentarismo. Não aceitaremos que caciques invertam regras, para prestigiar os que acabaram com o Brasil. O povo elegeu Jair Bolsonaro para fazer o que está fazendo: tirar o país do buraco em que a esquerda o colocou! #Dia15PeloBrasil e foda-se”, escreveu a parlamentar.
Delegado Éder Mauro (PSD-PA), Filipe Barros (PSL-PR), Aline Sleutjes (PSL-PR), Guiga Peixoto (PSL-SP) e a senadora Soraya Thronicke (PSL-MS), estão entre os outros políticos que já manifestaram apoio ao ato contra o Congresso.
Apesar das limitações das instituições e da atuação favorável ao impeachment de Dilma Rousseff, entre outras decisões nos últimos anos, o docente da PUC-SP defende que é preciso existir um equilíbrio e uma harmonia entre os poderes, “um sistema de freios e contrapesos que estabeleça uma série de controles recíprocos entre os poderes”
“Assim como não vivemos no parlamentarismo, o presidente da República não pode ser considerado um imperador. Não tem poderes absolutos. O Congresso tem legitimidade e tira essa legitimidade do voto. É um importante instrumento para frear algum ensaio autoritário do governo, pelo menos em tese”, finaliza Fassoni.
Centrais sindicais
As centrais sindicais se manifestaram na tarde desta quarta-feira (26) por meio de nota em que afirmam que "o presidente ignora a responsabilidade do cargo que ocupa pelo voto e age, deliberadamente, de má-fé, apostando em um golpe contra a democracia, a liberdade, a Constituição, a Nação e as Instituições".
Além de chamar a unidade das centrais em torno do tema, a nota cobra um posicionamento do STF e do Congresso Nacional em relação à atitude de Bolsonaro.
"Diante desse escandaloso fato, as Centrais Sindicais consideram urgente que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional se posicionem e encaminhem as providências legais e necessárias, antes que seja tarde demais. Do mesmo modo, conclamamos a máxima unidade de todas as forças sociais na defesa intransigente da liberdade, das instituições e do Estado Democrático de Direito", diz o texto.
A nota é assinada pelos representantes da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força Sindical, União Geral dos Trabalhadores (UGT), Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST) e Central de Sindicatos do Brasil (CSB).
Edição: Leandro Melito