Cortes orçamentários, declarações confusas e ausência de projeto. Para Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação, os primeiros sete meses de Jair Bolsonaro (PSL) na Presidência da República refletem a concepção retrógrada de um político que enxerga na universidade pública uma ameaça.
Desde o anúncio do congelamento de 30% na verba do Ministério, estudantes, professores e trabalhadores vêm denunciando nas ruas o desmonte do ensino público. Como resposta, o governo apresentou o programa "Future-se", que prevê a criação de um fundo de cerca de R$ 102 bilhões para atrair investimentos privados nas instituições de ensino superior do país.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Janine critica essa proposta. “O risco que muitas pessoas sentem é que ele talvez leve o governo a parar de financiar o ensino público federal. É esse o receio que existe nas universidades: que o 'Future-se' represente, junto com várias outras ações, uma desresponsabilização, uma destruição da universidade federal”, alerta o ex-ministro, que também é filósofo e professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP).
Entre as estratégias do programa, está a negociação de cotas do fundo na bolsa de valores. “Quando se tem ações na bolsa, elas podem subir ou cair. Ora, não se pode submeter nem a educação e nem a saúde a um orçamento arriscado. Deve-se garantir os recursos. Se em certos momentos há uma crise econômica, essas são as áreas que mais devem ser protegidas”, lembra Janine.
Daqui a duas semanas, no dia 13 de agosto, haverá uma nova mobilização nacional nas ruas contra as políticas educacionais do governo Bolsonaro.
Confira entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Em linhas gerais, como o senhor avalia a atual gestão da pasta da Educação?
Renato Janine Ribeiro: Os cortes podem acontecer e muitas vezes acontecem. A minha gestão foi marcada por ser a primeira gestão que teve que encarar redução de verbas, e, por conseguinte, cortes. Contudo, há uma diferença muito grande entre se fazer cortes com critérios e sem critérios. O que estamos vivendo hoje é uma situação de cortes sem critério. O discurso do governo sobre a educação é um confuso e não foi apresentado na campanha eleitoral.
Na campanha, quando Bolsonaro falava de educação, era muito mais para dizer que ele queria retornar aos costumes de 50 anos atrás, e que a educação deveria passar por esse tipo de retorno. No entender dele, representaria um Brasil mais moral.
Essa mudança que o governo Bolsonaro sinalizou muito vaga. Quando o governo tomou posse, não tinha um projeto para a área. Tinha coisas mais firmes em outros pontos, mas na área da educação não tinha um projeto. E começou a fazer declarações a esmo, sem coerência entre elas, de modo que isso acabou trazendo uma insegurança para a sociedade.
A própria declaração que ele pretendia retirar dinheiro do ensino superior para repassar para a educação básica veio acompanhada de uma redução da verba da própria educação básica e de uma desatenção para as grandes pautas dessa área.
Duas pautas da educação básica são prioritárias, e uma delas é a Alfabetização na Idade Certa, um programa que o governo do Ceará criou em 2007 e que foi incorporado pelo MEC em escala nacional em 2013. Esse programa precisa ser desenvolvido e melhorado. Já tivemos anos de estudos a respeito, de como fazer e do que não fazer. Disso praticamente não se falou.
A outra questão é o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), o qual permite pagar melhor salário aos professores da educação básica nos municípios e estados mais pobres, e que vai expirar ano que vem, 2020. Precisa haver uma Emenda Constitucional prorrogando o Fundeb ou teremos uma situação calamitosa na educação básica.
Até agora, o governo não sinalizou quais são as propostas dele. Na verdade, com uma série de medidas de contenção de recursos, com cortes de destinação de recursos, o receio é que o governo deixe o Fundeb perecer.
Estou citando esses casos específicos para mostrar que as medidas que estão sendo tomadas pelo governo no setor não indicam um projeto formatado para a educação. Mesmo o "Future-se", programa traçado para a universidade e o ensino superior, é uma contradição: se o governo tivesse como prioridade a educação básica, ele não teria começado pelo ensino superior.
Que impactos esse programa pode ter, na prática?
O problema do "Future-se", além de estar muito pouco esclarecido e ter um prazo de debate curto, é que ele introduz um financiamento para o ensino superior que viria, em parte, do setor privado, por meio de fundos cotados na bolsa de valores, inserindo um elemento de risco.
Quando se tem ações em bolsa, elas podem subir ou cair. Ora, não se pode submeter nem a Educação nem a Saúde a um orçamento arriscado. Deve-se garantir certos recursos. Se em certos momentos há uma crise econômica, são as áreas que têm que ser mais protegidas. Uma porque lida com a própria vida das pessoas, outra com o futuro.
O que nós estamos vendo é um certo desinteresse do governo em priorizar essas questões. Quando se introduz o elemento de risco no ensino superior e na pesquisa, é complicado.
Soma-se a isso um erro de diagnóstico, porque o comentário feito é que não haveria hoje cooperação entre o setor privado e as universidades. Porém, há mais de 30 anos, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) dá bolsas para empresas chamarem jovens pesquisadores para trabalharem. Desde 2005, existe a chamada Lei do Bem, que facilita a cooperação do professor universitário com o setor privado.
Também temos há alguns anos a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), que é um órgão privado com forte relação com o governo, que coopera com empresas privadas para fazer com elas se beneficiem da melhor tecnologia -- aumentando a cooperação entre universidade e empresa.
O fato de que já existe indica também que já existe conhecimento acumulado sobre em quais pontos essa cooperação pode ser aprimorada. Não deveríamos jogar fora o que existe, e sim, aprimorar o que está em funcionamento.
O "Future-se" é um risco para a continuidade do ensino público superior?
O risco que muitas pessoas sentem é que ele talvez leve o governo a parar de financiar o ensino público federal e que represente, junto com várias outras ações, uma desresponsabilização, uma destruição da universidade federal.
Isso soma-se à determinação de que quem nomeia pró-reitor e diretor é o governo, e não mais o reitor, o que afeta diretamente a autonomia universitária -- ainda mais em um cenário em que não se nomeia o mais votado nas eleições de candidato a reitor... Todos esses pontos representam um nível de intervenção do governo federal sobre as universidades que não se via antes.
A última vez que foram nomeados reitores que não eram os mais votados, no governo Fernando Henrique Cardoso [PSDB], se não me engano, isso causou muito transtorno, muita briga dentro das universidades.
Isso deveria ser mais bem discutido. Há uma preocupação grande não só com o orçamento da universidade, não só com a gratuidade do ensino, mas com a própria autonomia da universidade como órgão que faz pesquisa e formação de recursos.
Podemos afirmar que, neste cenário, o desenvolvimento da ciência brasileira está comprometido?
Está comprometido. A recente desqualificação dos dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a intervenção nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tudo isso indica que o governo não está querendo pautar sua ação pelos indicadores objetivos que a ciência proporciona.
A ciência proporciona indicadores objetivos sobre o clima, sobre a presença de veneno na lavoura, sobre a proporção de pessoas que sofrem doenças. E todos esses indicadores o governo está querendo suprimir.
Se o governo suprime esses dados, a política pública vai ser levada às cegas. Não tem como. Assim como nenhuma pessoa sensata iria plantar soja sem conhecer a tecnologia a respeito, nenhuma pessoa sensata pode governar o país sem conhecer a ciência da sociedade: a sociologia.
É muito preocupante que haja tantas pessoas que não percebem os riscos que isso traz para o Brasil e o retrocesso que isso tudo pode representar.
Segundo o estudo mais recente da Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), a maioria dos estudantes das federais são mulheres, pretos e pardos, e de baixa renda. Os cortes do governo Bolsonaro podem ameaçar o acesso dessas populações é educação formal?
É claro que pode ameaçar. Essa situação toda pode ficar precária, porque a inclusão depende de uma série fatores: das bolsas, dos restaurantes universitários, etc. E os cortes podem ameaçá-los, sim.
O que significa, do ponto de vista histórico, simbólico, a adoção dessas medidas para a área da educação logo no primeiro semestre do governo Bolsonaro?
Significa que a Educação não é uma pasta prioritária para o governo atual. O governo não vê na educação as mesmas expectativas, promessas e esperanças que os últimos governos, desde Itamar Franco [PMDB]. Todos eles viram a educação como um fator de emancipação, de melhora de vida econômica e um fator de desenvolvimento do país.
O governo Bolsonaro parece ver a educação como um perigo de formar as pessoas para o que chama de "imoralidade". Parece considerar que a educação teria favorecido o fim de uma sociedade na qual as pessoas "obedeciam quem mandava" -- na qual, portanto, a mulher obedecia o marido, os homossexuais não saíam a público. Parece que eles associam essa mudança na sociedade à forma de educação e, por isso, uma das prioridades deles é restaurar uma sociedade de costumes de 50 anos atrás, como Bolsonaro disse na campanha eleitoral.
Eles dizem isso junto à ideia de que é preciso favorecer, sobretudo, os setores que aumentam o PIB [Produto Interno Bruto]. Acontece que não se pode separar assim. Os setores que aumentam o PIB precisam de qualidade e, para se ter qualidade, é preciso dados. Por exemplo: não vai aumentar o PIB escondendo o desmatamento. Não vai aumentar o PIB ocultando o aquecimento global. Não vai melhorar o PIB negando verbas de pesquisa. Isso, mesmo nas áreas científicas, não só nas áreas de humanas.
Estamos em uma situação muito periclitante na sociedade brasileira.
Qual a sua perspectiva para a mobilização popular nesse cenário de sucateamento da educação?
Isso depende de nós. O descontentamento com as medidas do governo é muito grande. As pessoas do mundo universitário estão realmente empenhadas em defender a universidade. É preciso que a sociedade perceba que a universidade pública é um patrimônio público da sociedade brasileira e não pode ser destruído.
É preciso que isso não seja feito só por quem está na universidade. É preciso que seja feito também por quem está fora da universidade. As lutas contra essas pautas regressivas do governo Temer [MDB] e Bolsonaro têm sido fracas, insuficientes. Tanto que a reforma trabalhista passou com a promessa de criar 5 milhões de empregos, e o desemprego aumentou.
A reforma da Previdência está passando, e agora os próprios defensores estão dizendo que ela não vai criar empregos. Então, é preciso lutar na defesa dos direitos e na defesa de criação de novos postos de trabalho, além da defesa da universidade. É preciso que as pessoas realmente lutem.
Edição: Daniel Giovanaz