Educação

MEC lança programa que torna universidade pública dependente de investimento privado

Estudantes cobram liberação de verbas do orçamento e dizem que proposta não resolve problemas, além de criar dependência

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Ministro da Educação, Abraham Weintraub, durante apresentação do programa "Future-se" em Brasília (DF)
Ministro da Educação, Abraham Weintraub, durante apresentação do programa "Future-se" em Brasília (DF) - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foi sob protestos que o Ministério da Educação apresentou, nesta quarta-feira (17), em Brasília (DF), o programa “Future-se”, que prevê a criação de um fundo de cerca de R$ 102 bilhões para atrair investimentos privados nas instituições de ensino superior do país. A iniciativa precisa ser avaliada pelo Congresso Nacional por meio de projeto de lei após uma consulta pública feita pelo MEC.

De acordo com o ministro da Educação, Abraham Weintraub, e o secretário de Ensino Superior do MEC, Arnaldo Barbosa de Lima Júnior, que expuseram a proposta para jornalistas e reitores, o total de R$ 102 bilhões não é um valor anual, e sim um montante que poderá ser acessado pelas instituições conforme a apresentação de resultados e as necessidades de cada unidade de ensino após a eventual aprovação do programa pelo Legislativo.

A União Nacional dos Estudantes (UNE), que acompanhou a apresentação do “Future-se”, afirmou que a medida não resolve o problema imediato de asfixia orçamentária no ensino superior.

“Tem reitor hoje que não tem dinheiro para pagar a luz. Precisamos debater como retomar [a verba] dos cortes que foram feitos. Os estudantes estão à disposição pra dialogar, mas a gente quer resposta pra hoje, quer saber o que vai acontecer com os estudantes que estão sem bolsa, por exemplo. Os reitores já disseram: como vamos pensar um projeto pro futuro se, no presente, as universidades não funcionam?”, bradou o presidente da entidade, Iago Montalvão, diante de um ministro e um secretário visivelmente constrangidos.

“É por isso que a gente está fazendo consulta pública, para ouvir sua opinião”, respondeu Arnaldo Barbosa. O secretário acrescentou que a assistência estudantil não estaria sendo cortada e que “está faltando informação”. Ele disse que a área está “completamente descontingenciada”.

O protesto da UNE tem como pano de fundo uma crise na pasta da Educação, que vive um aprofundamento dos problemas desde o início do governo de Jair Bolsonaro (PSL). Entre os destaques da gestão, tiveram realce, nos últimos meses, cortes de verba nas IES, troca de ministros e uma disputa entre diferentes correntes do governo por influência no MEC. Como resultado desse conjunto de fatores, a gestão do ministério tem enfrentado forte oposição, com críticas de especialistas, entidades da sociedade civil e movimentos populares.

Programa

Segundo o MEC, o “Future-se” terá múltiplas fontes de recursos para compor o fundo. Serão R$ 50 bilhões do patrimônio da União, R$ 33 bilhões de fundos constitucionais, R$ 17,7 bilhões de leis de incentivo fiscal e depósitos à vista, R$ 1,2 bilhões de recursos provenientes da área de cultura e R$ 700 milhões da utilização econômica do espaço público e de fundos patrimoniais.

Apesar de ser atacada por Bolsonaro, a Lei Rouanet é apontada, no programa, como uma das opções de financiamento para espaços universitários como museus e bibliotecas, entre outros.

Do ponto de vista operacional, o governo afirma que as instituições poderão, no âmbito do programa: firmar contratos de gestão, como é o caso de parcerias público-privadas (PPPs) e cessão de prédios e lotes; criar fundos patrimoniais, com contribuição de empresas e ex-alunos, para financiar pesquisas; e ceder os chamados “naming rights” (“direitos de nome”, em português) de prédios e campi universitários, parceria por meio da qual os equipamentos podem passar a ser identificados com nomes de agentes privados. A gestão do fundo também será privada.

Segundo Weintraub, a proposta é construir uma alternativa que gere “liberdade, crescimento, riqueza, desenvolvimento”.

“Como diria Winston Churchill, se você está caminhando pelo inferno, não pare. Continue caminhando”, completou, citando o ex-primeiro-ministro do Reino Unido.

“Às vezes, a crise incomoda, faz com que a gente repense as estruturas, a forma de pensar, de trabalhar, mas, se for bem conduzida, permite oportunidades, desenvolvimentos, revoluções. O que a gente está propondo é uma revolução conjunta”, argumentou Weintraub, ao defender uma maior aproximação entre as esferas pública e privada.

Dependência privada

“Acho que [o programa] cria uma dependência do setor privado muito grande. Cria dois problemas: primeiro, uma desresponsabilização do Estado em relação ao financiamento, o que faz com que os reitores fiquem à deriva pra conseguir financiamento e captação privada, e isso gera o outro problema, que são as contrapartidas que você precisa dar. Uma empresa não doa dinheiro. Ela investe esperando retribuição pra otimização de lucros”, argumenta o presidente da UNE.

O projeto prevê que a adesão das instituições deverá ser voluntária. De acordo com Weintraub, quem optar por não entrar no programa ficará limitado à dinâmica orçamentária do teto de gastos, arrocho fiscal – aprovado em 2016, durante o governo de Michel Temer (MDB) – que congela as despesas públicas em educação e outras áreas durante um horizonte de 20 anos.

Eixos

O “Future-se” deverá ter como base três eixos principais: gestão, governança e empreendedorismo; pesquisa e inovação; e internacionalização.

“O objetivo é colocar o Brasil no patamar de outros países”, afirmou Weintraub, acrescentando que o MEC teria se baseado em experiências globais para condensar a proposta do programa.

"A gente quer premiar as boas práticas, a gente não acredita no assistencialismo. A gente quer premiar a cultura do esforço, o bom desempenho, por isso estamos lançando esse programa. A gente quer permitir que se formem cada vez mais talentos e quer reter esses talentos [no Brasil]", argumentou Arnaldo Barbosa.

A UNE se disse preocupada com as referências utilizadas pelos dois gestores, que, durante a apresentação do programa, fizeram diferentes menções ao desempenho de instituições estadunidenses.

“Um dia, joguei futebol e ganhei uma bolsa nos Estados Unidos, então, grande parte do programa vem nessa direção”, disse o ministro, após afirmar que estava emocionado ao apresentar a proposta.

“Nós entendemos que [o programa] não é, num primeiro momento, uma privatização da universidade, mas sabemos que essas universidades que eles usam como exemplo, que são do modelo americano, têm uma enorme dependência do setor privado. Embora, nos Estados Unidos, as universidades sejam públicas, elas dependem quase que exclusivamente do setor privado. A suspeita que a gente tem, a priori, é de que isso pode abrir um precedente perigoso pra relação da universidade com a iniciativa privada”, enfatiza Montalvão.

Trâmite

De acordo com o governo, o projeto de lei que institui o “Future-se” deverá ser enviado ao Poder Legislativo após cinco semanas de consulta pública. O ministro informou que aguarda um posicionamento dos reitores a respeito sobre o tema.

O programa havia sido anunciado publicamente por Weintraub nos últimos dias, mas ainda não tinha sido detalhado, o que cercou o governo de rumores sobre uma possível cobrança de mensalidade e tentativa de privatização das instituições. “Privatização está totalmente errado. É uma complementação do orçamento”, disse o secretário nacional de Ensino Superior.

A UNE afirma que irá se debruçar sobre a proposta para analisar os detalhes. A entidade se queixa que os estudantes não foram previamente ouvidos pelo ministério.

“Eles chegaram com uma proposta pronta pros reitores e pra toda a comunidade [acadêmica], pra depois dizerem que vão fazer uma consulta pública. Na nossa opinião, tem que ouvir as entidades, os especialistas, porque não basta jogar uma consulta na internet em que qualquer pessoa vai ter o mesmo peso de opinião. Existem especialistas nesse tema”,aponta o presidente.

Manifestação

A apresentação do programa se deu em meio a um protesto popular que se formou na porta do Inep. Estudantes de diferentes entidades se aglutinaram no local para bradar contra a proposta.

“Eles precisam saber que a gente não está desligado, não está dormindo. A gente está muito acordado e acompanhando cada milímetro do passo do governo Bolsonaro e do ministro da Educação, que ainda não apresentaram pra sociedade um projeto pra uma educação de qualidade”, disse a estudante Gabriela Viena, em entrevista ao Brasil de Fato.

Na ocasião, os manifestantes divulgaram que preparam, para o dia 13 de agosto, uma nova mobilização nacional contra as medidas do governo Bolsonaro na área de educação.

Edição: João Paulo Soares