Corria o ano de 1983 quando 312 famílias de quilombolas foram expulsas de seu território, em Alcântara, uma península do Maranhão, e transferidos para agrovilas mais ao sul do estado. Lá, ganharam lotes de 16 hectares. Três anos antes, o então governador do estado, Ivar Saldanha (PDS), desapropriou 52 mil hectares do território que era ocupado pelos quilombolas e os entregou para a União. A medida fazia parte do projeto de construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), encampado pelo ditador João Batista Figueiredo (1979-1985) e administrado pela Força Aérea Brasileira (FAB).
Os quilombolas expulsos de seus territórios foram transportados para agrovilas localizadas no interior do estado, em uma região coberta por areia e de solo estéril. Nos quilombos, a pesca garantia o sustento da comunidade e ditava a dinâmica de organização do local. “Não sei nem porque chama ‘agrovila’, de agro não tem nada. É um projeto que deu errado. Eu moro em uma das agrovilas, nunca deu certo, nos colocaram em um lugar onde não temos como nos sustentar”, explica Antônio Marcos Pinho Diniz, presidente do sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara.
Em 1991, o ex-presidente Fernando Collor desapropriou mais 10 mil hectares de Alcântara para a construção do CLA, totalizando 62 mil hectares.
Já no ano de 2008, o jogo virou em favor das famílias quilombolas. Um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação elaborado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), garantiu 78,1 mil hectares da região para as comunidades quilombolas e limitou o espaço da base aérea a 8 mil hectares.
Em 2010, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Estado reivindicou outros 12 mil hectares na área costeira de Alcântara. A nova aquisição nunca foi confirmada, mas as 792 famílias de quilombolas que vivem na região vivem, desde então, com medo dessa possibilidade.
Em março deste ano, Brasil e Estados Unidos firmam um contrato que garante aos americanos o direito de explorar a base de Alcântara. O acordo prevê salvaguardas tecnológicas e permite o lançamento de foguetes e satélites na região.
A possibilidade de ampliação da área do CLA, -- que hoje é de 8 mil hectares -- está prevista no documento. Isso fez com que os quilombolas se mobilizassem para conseguir definitivamente a titulação de suas terras, o que lhes garantiria estabilidade na região e poder em uma futura negociação com o Estado.
Governo não quer titular as terras
Na última quarta-feira (10), uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados discutiu o acordo entre Brasil e EUA e as consequências para as comunidades quilombolas.
Representando o governo federal, Carlos de Almeida Baptista Junior, tenente brigadeiro da FAB, não mostrou disposição para negociar. “O que nós queremos do nosso futuro? […] Nós não podemos condicionar a tramitação e aprovação desse acordo à titulação de terras quilombolas e qualquer outro ‘se’, pois estaremos perdendo outra oportunidade de desenvolver aquela região”, impôs o militar.
Deborah Duprat , procuradora federal dos Direitos dos Cidadãos do Ministério Público Federal, em entrevista ao Brasil de Fato, disse que compreende o receio dos quilombolas, que não querem ser enviados para agrovilas.
“Eu acho que é impossível, diante de tantos eventos ocorridos ao longo de quase 40 anos, esperar que elas sejam crédulas em relação sobre a não ampliação da base e que elas não serão removidas. Para que tenhamos conversas sérias e responsáveis, nós precisamos deixar as partes em posições simétricas. Isso só se resolve com a segurança territorial desse grupo, só falta a titulação. A titulação não traz ônus para a União, já que a área é toda pública”, defendeu a procuradora.
Na audiência pública, Baptista Junior afirmou que conversou com quilombolas que vivem nas agrovilas e que teria lhes perguntado se eram mais felizes na época dos quilombos. “Todos que estavam conversando comigo, afirmaram que são mais felizes hoje”, argumentou.
A afirmação do militar foi combatida por quilombolas. “Aquele povo ali sobrevive da aposentadoria rural e da Bolsa Família. Quem não tem salário naquela região, não está bem. Isso é conversa, brigadeiro”, afirmou Leonardo dos Anjos, coordenador-geral do Movimentos dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE).
“O que foi tão perverso nas agrovilas, você retirou comunidades que viviam da pesca na beira do mar e levaram para o interior. Até hoje, elas viajam cinco horas para ir e cinco horas para voltar porque elas não se entenderam fora dessa atividade ancestral, famílias centenárias, que praticavam a pesca e que são obrigadas a viver em solo infértil”, rebate Duprat, do MPF.
Célia Cristina da Silva Pinto, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) criticou a postura do brigadeiro. “Dizer que as pessoas disseram que estavam mais felizes nas agrovilas do que em seus territórios é mentira. Pra eu sobreviver na agrovila, tenho que ter um emprego, para comprar na cidade o que eu não posso produzir. Nós temos dito que não somos contra o acordo, mas esse acordo não pode se sobrepor às vidas humanas. Não me digam que estou mais feliz numa agrovila do que no meu quilombo”, exclamou a quilombola.
O presidente da Agência Espacial Brasiliera (AEB), Carlos Augusto Teixeira de Moura, defendeu o acordo na audiência. Mas antes admitiu que o Estado falhou com os quilombolas expulsos de seus territórios em 1986: “O programa espacial não atendeu todas as expectativas”.
Em seguida, Moura afirmou que em conversas com representantes do setor em outros países, é cobrado por uma solução para o CLA. “ Eles ficam espantados de ver como nós temos uma Alcântara e não estamos utilizando. Aí, eles olham os jornais e observam que estão sendo construídas outras bases em outras partes do mundo”, expôs o representante da AEB.
“Convivência pacífica”
A negativa do governo federal em negociar com as comunidades quilombolas preocupa o deputado federal Helder Salomão (PT-ES). “Eles querem resolver o acordo sem resolver o passivo que há naquela região, sem resolver as questões sociais, de direitos humanos, daquelas comunidades. Não dá para falar das salvaguardas tecnológicas sem garantir os direitos daquela posição”, explica o parlamentar.
A posição do governo federal também preocupa o deputado federal Bira do Pindaré (PSB-MA), para quem as comunidades quilombolas correm “sério risco” de serem expulsas de seus territórios para que a base seja ampliada. Para ele, há a possibilidade de encontrar um caminho comum. “Ora, você não lança foguetes todos os dias. Então, defendo que haja uma convivência pacífica, em que as comunidades fossem assistidas na época de lançamento, com despesas garantidas pela base”, encerra.
Edição: Rodrigo Chagas