Logo nos primeiros três meses de governo, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) e sua equipe articularam a assinatura dos termos do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), que concedeu o uso comercial da base de Alcântara, no Maranhão, para os Estados Unidos. Os esforços para concretizar o acordo foram retomados pelo governo de Michel Temer (MDB) em 2016, após duas tentativas frustradas: no Congresso Nacional, em 2001, e por meio de plebiscito, na mesma época.
A proposta original do governo estadunidense era proibir a utilização da base pelo Brasil, devido à confidencialidade tecnológica. Porém, os representantes do governo Bolsonaro alegam que o novo acordo não fere a autonomia brasileira e que trará muitos ganhos para o país. Flávio Rocha, professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) e integrante do grupo de estudos Observatório da Política Externa do Brasil, analisou a íntegra dos termos.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o especialista em geopolítica explica as diferenças entre os acordos e como a negociação pode impactar o Brasil. Segundo ele, o país está abrindo mão — no curto, médio e longo prazo — de estabelecer parcerias com países que não sejam alinhados com os Estados Unidos, o que pode prejudicar a relação com a China, principal destino das exportações brasileiras. “Os Estados Unidos não vão conseguir cumprir o papel da China na pauta econômica brasileira e, de fato, isto vai impactar nas concepções de soberania do Brasil”.
Ele avalia que as consequências da subordinação brasileira ao governo estadunidense podem perdurar por anos e prejudicar o desenvolvimento tecnológico do espaço no caso brasileiro. “O que a gente começa a suspeitar é que têm grupos localizados dentro do governo Bolsonaro que estão ganhando com essa aproximação, como alguns grupos militares que estão interessados em modernização tecnológica no padrão OTAN. Existem grupos no setor financista apoiadores de Bolsonaro que estão interessados no alinhamento com os Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE”.
Leia a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Qual sua opinião sobre o novo acordo da base de Alcântara, assinado por Jair Bolsonaro e Donald Trump nos Estados Unidos?
Flávio Rocha: Após estudá-lo, a conclusão que chegamos é que o acordo é muito restritivo em qualquer possibilidade brasileira de desenvolver, principalmente, o veículo lançador de satélites. É um acordo que, ao fim e ao cabo, derrota qualquer possibilidade de um programa espacial brasileiro autêntico às nossas necessidades em prol da utilização do espaço por parte dos Estados Unidos. Ou seja, mesmo o tipo de tecnologia que a gente viria a desenvolver vai ser dentro de uma lógica feita para atender os interesses dos Estados Unidos. Então, a nossa conclusão é que esse acordo não é bom para o Brasil a médio e longo prazo.
No novo texto, os porta vozes do governo brasileiro alegaram que a expressão “área segregada” foi substituída para “área restrita”, para tentar abafar críticas que questionam a autonomia do país perante o acordo comercial com os Estados Unidos. Essa alteração foi feita?
Comparamos esse acordo com um que foi assinado em 2001, na época do governo Fernando Henrique Cardoso, e que acabou não sendo ratificado pelo Congresso Nacional. No lugar, um tempo depois, foi assinado o acordo com a Ucrânia, que também, por inúmeras razões, não vingou. Mas, na comparação entre o acordo de hoje e o dos Estados Unidos, quando se põe os dois documentos de lado é quase que um copia e cola. A maior parte das expressões, dos termos dos acordos são idênticos, a começar pelos objetivos do acordo tecnológico que saiu agora, que é impedir que tecnologia dos Estados Unidos vaze ou seja aproveitada pelo Brasil ou por qualquer ator na utilização na base de Alcântara.
Na comparação, o novo acordo até tem alguns termos mais suaves, mas, a rigor, é o mesmo acordo, não tem avanço. Por exemplo, quando a gente estuda uma das questões que deu problema naquela época, no ano de 2001 — e que está dando o que falar agora —, sobre o acesso às áreas restritas, controladas, o que a gente observa nessa parte do acordo é que ele ficou mais restritivo ainda, ou seja, a movimentação pessoal brasileira nas áreas restritas da base só vai acontecer com permissão e comum acordo do governo dos Estados Unidos.
Então, não tem muita diferença, suaviza alguns termos, mas, a rigor, ele mantém o mesmo tipo de atrelamento e enquadramento subalterno do programa espacial brasileiro e do uso da base de Alcântara frente aos Estados Unidos. Ele dá pouca lateralidade e capacidade de movimentação para o governo brasileiro no uso da base.
Em relação à soberania e autonomia do país, o que esperar do governo Bolsonaro? Essa relação estreita com o Estados Unidos é benéfica para o país?
Não, no meu entender, não. O que vai acontecer, provavelmente, é uma base funcionando no curto prazo, com uma série de condicionantes, mas uma base sendo operacionalizada e isso é um ganho, mas é um ganho de curto prazo. Do ponto de vista do médio e do longo prazo, o Brasil utilizar a base para alavancar toda uma cadeia tecnológica de exploração do espaço — aquilo que garantiria nossa soberania e capacidade de barganhar, negociar e participar, tanto do ponto de vista geopolítico quanto do econômico da indústria de exploração espacial — não é garantia do acordo. Muito pelo contrário, o acordo é restritivo, principalmente no desenvolvimento dos veículos lançadores de satélites.
As partes mais críticas do acordo são, justamente, as que dizem que o Brasil não pode e não vai receber tecnologia para desenvolver isso e que também não pode usar os recursos do aluguel do centro de lançamento para desenvolver seu veículo lançador de satélites, ou seja, não receber essa tecnologia e também não poder usar o dinheiro que vem disso para desenvolver essa tecnologia do veículo lançador.
Geopoliticamente, em relação ao espaço estratégico, do que o Brasil está abrindo mão ao se colocar nessa posição com o governo estadunidense?
O Brasil está abrindo mão --- no curto, médio e longo prazo --- de estabelecer parcerias com países que, necessariamente, não sejam alinhados com os Estados Unidos. O Brasil assina um acordo com causas muito restritivas e fortemente amarrado a outro regime, que previne a proliferação de tecnologia de fabricação de mísseis. As tecnologias de fabricação de mísseis balísticos intercontinentais e de fabricação de foguetes espaciais são muito semelhantes. A rigor, os países que dominam uma tecnologia, automaticamente, dominam a outra. Então não é interesse dos Estados Unidos e de outras grandes potências que essa tecnologia esteja disponível amplamente no sistema internacional.
Quando o Brasil topa a amarração de impedir a proliferação dos atores de mísseis, ele abre mão de desenvolver o veículo de lançamento de satélite, de comprar essa tecnologia ou de barganhar a utilização de Alcântara em troca dessa tecnologia com países como a China e a Rússia. Dificilmente, os Estados Unidos vão permitir que o Brasil faça uma parceria de lançamento em Alcântara com a China.
Além disso, o Brasil também se coloca em uma posição, ao meu ver, meio delicada, porque, de Alcântara vão subir uma série de satélites. Então vamos supor que o acordo seja aprovado e que tenha uma série de investimentos dos Estados Unidos para transformar a base de lançamento de Alcântara em um espaço oposto, ou seja, em uma região com capacidade de lançar satélites em órbita alta e baixa, aproveitando a posição geográfica perto da Linha do Equador.
Se o Brasil aceita esse acordo, pelas cláusulas, ele não vai poder inspecionar com liberdade tudo aquilo que subir em termos de satélite. Então ninguém garante que os Estados Unidos não vão utilizar a base dentro de sua competição geopolítica com a China. Quando se acompanha essa competição, o setor aeroespacial é uma área muito delicada no qual esses dois países estão competindo.
Dentro dessa competição, existe o lançamento de satélites espiões, satélites que são feitos para monitorar a área, fazer previsão do tempo, satélites meteorológicos e satélites de comunicação --- que têm uma dupla função: eles também podem ser satélites de comunicações militares. Esse tipo de satélite pode subir de Alcântara dependendo da conveniência política e das relações do Brasil com os Estados Unidos ou dos Estados Unidos com a China.
Então, o Brasil se coloca em uma posição bem subalterna porque ele não vai ter direito a inspecionar aquilo que vai estar sendo lançado dentro do seu território. Isso é um tipo de coisa que, simplesmente, não está tendo debate. O governo Bolsonaro foi muito apressado em fechar um acordo que já estava pronto e que não teve amplo debate com a comunidade científica brasileira.
As vezes em que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) se pronunciou foi contra esse tipo de acordo, mas não tem debate com universidades, comunidade científica e sociedade. É um acordo fechado de governo a governo e a gente fica pensando a troco de quê o Brasil está fazendo esse acordo com os Estados Unidos.
Do ponto de vista geopolítico, eu vejo que está dentro do alinhamento que o governo Bolsonaro quer fazer com o governo dos Estados Unidos neste momento, e que não vai terminar com o governo Bolsonaro, mas trazer consequências para o desenvolvimento tecnológico do espaço, no caso brasileiro, nos anos futuros.
Nós estamos entrando, no curto prazo, em uma armadilha do desenvolvimento tecnológico. Ou seja, a gente vai ficar fortemente amarrado ao programa espacial dos Estados Unidos e sem poder de barganha com vários players importantes na comunidade internacional.
Como fica a relação do Brasil com os Estados Unidos no governo Bolsonaro?
No curto prazo, essa relação vai aumentar e o Brasil vai, realmente, se alinhar mais com os Estados Unidos. Agora, nós temos um padrão histórico, pelo menos, desde os anos 1950, em que o Brasil se aproxima e depois se afasta. A gente está em um momento onde o Brasil está se aproximando dos Estados Unidos. O que nós não conseguimos entender é que, em outros momentos onde o Brasil se aproximou, sempre havia, explicitamente, uma barganha no sentido de obter algum conjunto de coisas dos Estados Unidos, principalmente investimentos, mas também apoio político — era o caso do regime militar — e investimentos na industrialização — por exemplo, no governo de [Getúlio] Vargas, durante a Segunda Guerra Mundial.
Agora, existe uma conjuntura internacional completamente diferente: pós-crise de 2008 e uma situação na qual a economia brasileira não é complementar da economia americana. Por exemplo, o nosso grande foco de exportações, o agronegócio, os Estados Unidos não é o grande mercado, mas justamente o rival da potência estadunidense: a China.
Então causa muita estranheza em qualquer observador mais racional da política externa do governo brasileiro — independentemente de sua posição política — porque ele replica o discurso dos Estados Unidos em relação à China, faz esses acordos, mas, objetivamente, a gente não consegue encontrar nenhum ganho concreto para o Brasil, dos pontos de vista geopolítico e econômico nessa aproximação com os Estados Unidos. Existe uma sinalização de apoio ao ingresso na OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], mas, fora isso, a gente não consegue ver nada.
Tem uma sinalização de que o Brasil vai ser convidado a ser um aliado regional da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte], mas, pelo que nós estamos sabendo, isso ainda nem entrou em processo de discussão dos Estados Unidos com seus parceiros na OTAN. O que está causando estranheza é que tem esse alinhamento, mas a gente não está conseguindo entender qual vai ser o ganho no curto, médio e longo prazo para o Brasil.
O que a gente começa a suspeitar é que têm grupos localizados dentro do governo Bolsonaro que estão ganhando com essa aproximação, como alguns grupos militares que estão interessados em modernização tecnológica no padrão OTAN. De repente, negociar Alcântara pode ser uma sinalização de boa vontade, porque esses grupos têm acesso a equipamentos vindos dos países da OTAN e dos Estados Unidos, em sistema de circulação. Existem grupos no setor financista apoiadores de Bolsonaro que estão interessados no alinhamento com os Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE.
Mas, por exemplo, as declarações do agronegócio não são confortáveis com essa estigmatização da China. O agronegócio olha e diz o seguinte: “se a China para de comprar ou compra menos, os Estados Unidos não vão comprar os produtos que os chineses abriram mão”. Por exemplo, de soja eles são, junto ao Brasil, os maiores produtores do mundo. Se nós pararmos de vender soja para os chineses, não vamos vender para os Estados Unidos. E quem vai comprar?
Então a gente ainda está tentando entender até onde vai esse tipo de cooperação, vamos ter que esperar alguns meses ou anos para saber o resultado. Eu tenho um palpite: em algum momento, independentemente de termos um governo de direita, esquerda ou centro-esquerda nos próximos anos, em dois ou quatro anos vai ter uma reversão dessa aproximação, assim como os governos do regime militar a partir de [Ernesto] Geisel, que já estavam tomando distância dos Estados Unidos e adotando uma política externa mais autônoma.
A gente pode ter alguma coisa semelhante depois do governo Bolsonaro. Ou seja, pode haver uma conclusão de que essa aproximação não trouxe tantos bens assim para o Brasil e, portanto, o país deve procurar seguir uma política externa mais autônoma em relação aos Estados Unidos. Mas, no curto prazo, esse alinhamento não é mais uma hipótese, ele já é fato mesmo.
Mesmo se um dia houver esse recuo em outro governo, soberania e posicionamento internacional do Brasil já se perdeu?
Sim, já se perdeu, o país deixa de ser um grande protagonista e de utilizar, por exemplo, uma posição privilegiada nos BRICs [Brasil, Rússia, Índia e China] para negociar com os próprios Estados Unidos e perde capacidade de barganha.
Quando se está em uma situação na qual se pode barganhar com dois lados rivais, o país aumenta seu poder de negociação e tem mais chances de conseguir seus interesses, especialmente na esfera econômica. Agora, quando se escolhe, explicitamente, um lado, o outro não vai negociar. O lado que se escolhe tem que complementar isso e, dificilmente, os Estados Unidos vão conseguir cumprir o papel da China na pauta econômica brasileira e, de fato, isto vai impactar nas concepções de soberania do Brasil.
*Com colaboração de Emilly Dulce
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira