No último dia 30 de abril, a oposição venezuelana, liderada pelo deputado Juan Guaidó, e o dirigente opositor Leopoldo López, líder do partido Voluntad Popular (Vontade Popular), colocou em prática o que eles chamaram de “Operação Liberdade”. Tratava-se de um golpe de Estado que visava a derrubada do presidente Nicolás Maduro pela via militar. O cenário do conflito foi o anel viário Distribuidor Altamira, importante artéria da capital, próximo à base aérea militar La Carlota, na zona leste de Caracas.
O dia não havia amanhecido completamente quando Guaidó transmitiu uma mensagem em vídeo pelas redes sociais, fazendo um chamado aos militares venezuelanos, para que se levantassem contra o governo. O elemento surpresa era Leopoldo López, segundo a jornalista espanhola, Esther Yáñez, correspondente internacional há mais de dois anos na Venezuela. O político foi condenado por delitos cometidos nos protestos violentos de 2014 e estava em prisão domiciliar. “A grande surpresa foi ver Leopoldo López. Foi isso que me fez pensar que algo grande iria acontecer. Já aí meu coração começou a palpitar”, relembra a correspondente dos canais Tele 5 e Tele 4, da Espanha.
A informação, segundo Yáñez, chegava a conta-gotas aos jornalistas, subindo a tensão aos poucos. O primeiro alerta veio cedo. "Despertei com uma mensagem enviada às 4h30 da manhã, a um grupo de Whatsapp de jornalista nacionais e internacionais, criado pelo assessor de comunicação de Juan Guaidó. A mensagem dizia: "Atenção, informação em pleno acontecimento".
A partir desse momento as versões contadas variam de acordo com a ideologia de cada meio de comunicação e de sua linha editorial. Foram muitos aqueles que omitiram informações, tantos outros que manipularam e alguns tantos que mentiram. Esther ficou famosa nas redes sociais, com vídeos que viralizaram, justamente por dizer a verdade e mostrar o que outros meios estrangeiros não estavam contando, inclusive colocando sua vida em risco.
Nas primeiras horas, pairava a dúvida se os opositores estavam dentro ou fora da base aérea. Em sua mensagem difundida nas redes sociais, Guaidó dizia: “Estamos em La Carlota”, abrindo espaço para a dúvida. Além disso, canais internacionais de notícias difundiam informações que não deixavam clara a situação. Leopoldo López, que por sua vez, publicava nas redes sociais textos em que dizia, entre outras coisas, “estou em La Carlota”, com uma foto sua, cercado de militares.
Foi a repórter do canal internacional Telesur, Madelein García, que divulgou a primeira informação e vídeo de dentro da base aérea La Carlota mostrando que estava sob controle de oficiais leais ao presidente Nicolás Maduro e que López e Guaidó na verdade estavam em uma ponte em frente a base, no Distribuidor Altamira.
“Pedi autorização para entrar na base aérea La Carlota, porque a gente não sabia o que estava acontecendo dentro da base. Os opositores diziam que La Carlota estava tomada. E um canal dos EUA estava transmitindo imagens de uma câmera que parecia estar dentro da base área e dizia que estava tomada. Essa era a matriz de opinião que os meios estavam construindo”, explica a repórter. E conta o viu lá dentro. “Quando entrei vi que a situação era de normalidade. O comandante me disse que estavam tentando controlar a situação e evitar que os opositores entrassem”.
Nesse momento, do lado de fora, já era possível ver que os militares que acompanhavam os líderes opositores não passavam de 40 soldados e oficiais de média e baixa patente. A deserção não foi massiva como Guaidó esperava.
O mestre em Filosofia de Guerra, Jorge Ladera, analisa quem eram os militares que apoiaram os opositores. “Quando vemos a imagem de Leopoldo López junto ao Guaidó no anel viário de Altamira, observamos que os acompanhavam um coronel, um tenente, alguns sargentos. Não são patentes militares altas. Não havia ninguém do alto mando militar que pudesse ter acesso às unidades militares grandes, que garantisse uma mobilização de destacamentos, pelotões, batalhões e que pudesse forçar um golpe de Estado”.
Além dos militares que acompanhavam López e Guaidó, alguns soldados foram levados para a área de conflito, sob falsos pretexto, segundo o general Alexis Rodríguez Cabello.
Outro grupo de militares, composto principalmente por mulheres, quando se deu conta que foi enganado, roubou um ônibus e dirigiu até a Casa Amarilla de Caracas, um dos prédios da chancelaria venezuelana, para denunciar o ocorrido. Assim também aconteceu com os oito tanques de guerra que os militares desertores haviam roubado. Os militares leais a Maduro levados a Altamira de maneira enganosa, foram buscar um por um dos carros blindados e os devolveram a seus comandos.
O momento mais tenso do dia ocorreu por volta das 10h30 da manhã quando coquetéis molotov atingiram um tanque de guerra, que estava dentro da base aérea, que ficou completamente destruído. Nesse momento uma rajada de tiros, disparados por opositores, atingiu também as instalações da base aérea.
Durante os ataques oito militares leis a Maduro foram atingidos, um deles, um coronel, ficou gravemente ferido. O tiro que veio do alto atinge seu pescoço e saiu pela clavícula, diz a repórter Madelein Garcia. Os disparos, segundo a jornalista, partiram de franco-atiradores. A informação também foi confirmada pelo analista político Amauri Chamorro, que também trabalha como consultor e assessor da Presidência da República da Venezuela, mas deixa claro que nessa entrevista fala como analista político e não porta-voz do governo.
Ao todo, na parede do edifício da Guarda Nacional Bolivariana, dentro da base militar, foram contadas mais de 20 disparos, de armas curtas e longas.
O governo venezuelano denunciou, que algumas das armas utilizadas por militares desertores que acompanharam Guaidó e Leopoldo López no Distribuidor Altamira, eram fuzis AR-15, fabricados nos Estados Unidos, que não são utilizados pelo exército venezuelano. Há a suspeita de que o armamento faça parte de uma apreensão de fevereiro deste ano, feita no Aeroporto Internacional Arturo Michelena, na cidade venezuelana de Valência, e que ficou sob a custódia do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin). Alguns militares do Sebin, incluindo o diretor-geral, estavam entre os desertores que apoiavam o golpe e libertaram Leopoldo López.
Enquanto isso acontecia na zona leste, do outro lado da cidade, no centro da capital, a população se concentrava ao redor do palácio presidencial Miraflores. “Esse dia recebemos um alerta muito cedo, pelos celulares. Como somos um povo organizado estamos sempre atentos. Recebemos a orientação de ir para Miraflores porque havia uma tentativa de golpe de Estado”, relatou o primeiro-tenente, José Rodríguez Nascimento, comandante do batalhão da Brigada Territorial de Las Vegas.
O militar conta como as Brigadas Bolivarianas se organizaram rapidamente para chegar ao palácio presidencial. “O primeiro grupo chegou 5 minutos depois do alerta. Um segundo grupo chegou 10 minutos depois e um terceiro 15 minutos. Os outros foram chegando aos poucos. Em 40 minutos o palácio estava cercado pela população. Em uma hora já tínhamos entre 500 e 800 pessoas ao redor de Miraflores”, lembra o tenente.
Os opositores nunca chegaram na zona do Palácio, segundo o comandante Nascimentos. “Não chegaram porque a população automaticamente resguardou o Miraflores, organizadas nas Brigadas Bolivarianas, compostas por cidadão comuns com treinamento militar, que são acionados em situações irregulares", explica.
"Uma coisa que nenhum meio de comunicação estrangeiro mostrou foi que 100 mil pessoas cercaram o palácio presidencial de Miraflores para mostrar seu apoio ao presidente Nicolás Maduro.O número de pessoas em Miraflores era 10 vezes maior que a quantidade de gente da Praça Altamira junto a Juan Guaidó", aponta Chamorro.
Quem planejou o golpe?
Guaidó foi quem convocou o levante, mas nos bastidores quem comandava toda a operação era o político Leopoldo López, libertado da prisão domiciliar na madrugada daquele dia por militares desertores. Uma das câmeras de jornalistas que acompanhavam os eventos capta o momento em López ordena o fechamento da autopista Francisco Fajardo, via arterial de Caracas, ponto de concentração de opositores. Deputados opositores confirmam, com a condição de não serem identificados: era Leopoldo quem comandava tudo.
Além disso, dois oficiais tiveram papel importante no planejamento da tentativa de golpe. Um deles era o tenente-coronel comandante da Guarda Nacional Bolivariana (GNB) Ilich Sánchez Farias, que até aquele momento era o responsável pela segurança interna de todos os poderes públicos do Estado, entre eles a Assembleia Nacional, o Tribunal Supremo de Justiça, o Conselho Nacional Eleitoral, do Ministério Público. E o outro era o general Manuel Ricardo Cristopher Figuera, ex-diretor do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin), que havia sido demitido no dia anterior.
O objetivo principal do levante era atacar a base aérea militar La Carlota. “Os líderes opositores esperavam que houvesse uma reação violenta do governo venezuelano e das forças militares, para criar a partir disso um factóide sobre mortos, assassinatos, massacres, bombardeios e fuzilamentos”, avalia o analista político Amauri Chamorro.
Em sua opinião um contra-ataque das forças armadas poderia justificar uma intervenção militar dos EUA.“O objetivo era realmente provocar as Forças Armadas para saírem às ruas e gerar assassinatos. Esperavam uma resistência armada, o que seria lógico, pois havia um ataque a uma base militar. Isso justificaria, diante da comunidade internacional, uma invasão militar estrangeira”.
A jornalista da Telesur também levanta essa hipótese. “O que buscavam era o enfrentamento entre militares. Mas, do lado de dentro da Carlota nunca houve disparos com armas de fogo. Apenas bombas lacrimogêneas, para dispersar as pessoas. A ordem do presidente Maduro, me disse um dos comandantes, era esgotar a via do diálogo e do uso progressivo da força utilizada para o controle da ordem pública e não utilizar as armas de guerra contra a população civil”.
“Maduro, muito inteligentemente, ordenou que o exército não reagisse, sob nenhum pretexto. Eles deveriam proteger a base, para não ser invadida, porém não tinham autorização para atirar”, explica Amauri Chamorro.
Um grupo de opositores civis conseguiu entrar na base militar depois de derrubar parte da grande que cerca a base, segundo Madelein. “Foi um momento muito tenso, sobretudo quando entraram e começaram a queimar um comando de aviação. Os militares foram falar com eles, pediram que se afastassem. “Vocês já fizeram o que queriam fazer então agora vão embora. Vocês têm que sair porque essa é uma zona de segurança”, teria dito um dos oficiais, segundo a jornalista. O diálogo prevaleceu. “Em qualquer parte do mundo teriam disparado contra os invasores”, ressalta.
Os opositores, enfim, se retiraram de dentro da base. Já era meio dia e o golpe havia fracassado. Os enfrentamentos com pedras, coquetel molotov e bombas de efeito moral continuaram, mas o cenário já havia se convertido em problema de ordem pública. “Não havia muita gente, o povo não saiu às ruas. Eram os mesmos de sempre”, diz Madelien García.
O que deu errado nos planos opositores?
Os líderes opositores, que haviam começado o dia com palavras de ordem e gestos imponentes, foram mudando o semblante com o passar das horas. Quando o ponteiro do relógio se aproximava do meio-dia, os rostos foram ganhando ar de preocupação, nervosismo e irritação. Algo havia falhado. Os gestos de Leopoldo López indicava que não havia chegado o que eles tanto esperavam.
“Depois ficamos sabendo que quem lhes falhou foi o general Manuel Ricardo Cristopher Figuera, ex-diretor do Sebin, que organizou tudo e depois foi embora. A informação que temos é que ele esteve em Miraflores um dia antes, falando com o presidente. Recebeu ordens, cumpriu algumas delas. Às 6h da manhã o presidente teve uma última chamada com ele. Depois disso desapareceu. Ele deixou a oposição na mão”, diz Garcia, que tem contato direto com a alta cúpula do governo e dos militares.
A informação extraoficial é de que o então diretor do Sebin, Cristopher Figuera convenceu a oposição de que tinha o compromisso de alguns comandos militares, que trairiam o presidente Maduro e passariam para o lado opositor. Com isso, haveria condições de haver um golpe de Estado.
Para o analista político Amauri Chamorro tratou-se de uma operação meticulosamente planejada. “A contra-inteligência do governo Maduro confundiu a oposição venezuelana, o governo dos Estados Unidos e os órgãos de inteligência estadunidenses, fazendo parecer que a unidade do exército e o poder civil havia sido rompida, que um conjunto de generais tinha se levantado contra o presidente Maduro”, afirma Chamorro.
Um especialista militar romeno, o ex-comandante Valentin Vasilescu, publicou um artigo no site Rede Voltaire, que explica como “um pequeno serviço de contra-espionagem venezuelano, a Sebin (Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional) conseguiu derrotar a CIA”. O especialista apresenta dados técnicos precisos, sobre como funciona a espionagem dos EUA, Rússia e Venezuela. O Brasil de Fato procurou governo venezuelano para checar os dados e recebeu a informação de que “maioria das informações divulgadas pelo especialista eram verdadeiras”.
O ex-comandante da Romênia garante que oficiais do Sebin foram infiltrados em grupos opositores e na imprensa financiada pelos Estados Unidos. Houve uma operação com a seleção e a publicação das notícias ligadas à evolução política na Venezuela. Uma vez lá, infiltraram informações falsas na imprensa, como se fossem “vazamentos”, direcionados à CIA. Entre essas informações esta uma sobre a intenção de certos generais da primeira força-tarefa venezuelana em trair o presidente Nicolás Maduro e libertar os opositores políticos presos.
“A fim de ganhar a confiança dos agentes da CIA, os membros do Sebin até organizaram reuniões de conspiração com os generais venezuelanos, sob total controle da inteligência da contra-espionagem militar”, publicou Vasilescu. E disse ainda que Juan Guaidó receberia “pelotão com mais de mil soldados”, para tomar a base aérea La Carlota.
“Depois disso, a Casa Branca deu luz verde para a ação de 30 de Abril que se tornou o maior fracasso da CIA no decurso das últimas décadas. A Venezuela provou que lutar com patriotismo e profissionalismo, mesmo para um país sul-americano sob embargo, pode quebrar os planos da CIA”, destaca o especialista militar.
Os militares venezuelanos não se identificam com a oposição
O sociólogo e mestre em Filosofia de Guerra, pela Universidade Militar Nacional Bolivariana, Jorge Ladera, afirma que uma das razões pelas quais a oposição não conseguiu ao longo dos últimos 20 anos ter apoio dos militares é a luta de classes que permeia toda a política venezuelana.
A Força Armada Nacional Bolivariana tem uma composição de classe social diferente de outros países da América Latina. No Brasil e na Argentina, por exemplo, a composição das altas patentes das forças armadas é conformada pela elite, que ao longo dos anos foram acumulando condições financeiras e influência política.
“No caso da Venezuela, existe uma geração de oficiais que se incorporaram depois de 1999, no contexto da Revolução Bolivariana, que são de extratos sociais baixos e que passaram por um processo de formação do pensamento bolivariano, o projeto de integração latino-americano, da autodeterminação dos povos, da soberania e do novo conceito de defesa e desenvolvimento da nação”, destaca o sociólogo.
Por outro lado, a oposição venezuelana é a expressão de classe econômica que perdeu espaço no poder para o projeto nacional bolivariano. “Essa é uma classe econômica dominante que não influência sobre essa nova composição militar, porque no seu momento de controle político do Estado usava os estamentos militares como uma relação utilitária”, ressalta Jorge Ladera. “Ademais, o discurso da oposição venezuelana é entreguista, tem como princípio a abertura do país para a principal potência mundial”, conclui Ladera.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira