Militares venezuelanos desertores que se encontram atualmente em território colombiano têm realizado declarações que expõem conflitos e contradições em relação ao tratamento que vêm recebendo após a cruzar fronteira.
Estas declarações evidenciam uma questão que ainda não tinha se tornado pública, como o diálogo que possuem diretamente com o governo dos Estados Unidos e da Colômbia e um possível financiamento por parte de organismos internacionais, como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).
O ex-capitão do Exército venezuelano Jean Marchena Castillo é um dos 400 militares que desertaram na semana do dia 23 de fevereiro, durante a crise em que opositores tentaram ingressar caminhões com a suposta ajuda humanitária no território venezuelano. Um dos oficiais mais antigos entre os desertores, Castillo falou abertamente sobre o tema durante esta semana.
“Queremos agradecer ao governo norte-americano, ao governo da Colômbia e aos nossos deputados venezuelanos Gaby Arellano e José Manuel Olivares. Estamos trabalhando de mãos dadas com todos eles (...) A Acnur está nos atendendo muito bem”, destacou o ex-capitão em um vídeo publicado nas redes sociais.
No mesmo contexto, um ex-sargento do Exército venezuelano, Luis Gonzalo Hernández, deu declarações polêmicas à imprensa. Ao comentar que um grupo de de desertores militares, leais ao autoproclamado presidente Juan Guaidó, reclama o apoio dos líderes opositores para se manter no país vizinho, o ex-militar implicou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) na questão.
Hernández afirma que as despesas de alimentação e hospedagem dos militares desertores estavam sendo pagas pela Acnur. No entanto, segundo ele, este organismo passou a exigir, no último sábado (16) que os ex-militares desocupassem os hotéis e passassem a viver por conta própria.
“A Acnur nos deu de três a quatro dias para sair do hotel. Nos ofereceram um colchonete, um mapa e 350 mil pesos colombianos [o equivalente a R$ 400, aproximadamente]”, disse o ex-sargento do Exército, mostrando o suposto comunicado da agência internacional.
De acordo com a declaração, cerca de 200 desertores estão em Cúcuta, na fronteira entre a Venezuela e a Colômbia, na mesma situação. Agora, os ex-militares cobram uma solução financeira para todos os desertores. “Na Venezuela, éramos o sustento do lar e aqui estamos sem nada”, informou.
Luis Quintana, professor de geopolítica da Universidade Militar Bolivariana da Venezuela, avalia que as agências da ONU, como a Acnur, não tem atuado de maneira neutra ou independente neste conflito.
“Várias agências da ONU e ONGs transnacionais estão atuando na fronteira da Colômbia com a Venezuela, gestionando os temas migratórios. Mas o fazem de uma forma enviesada, contradizendo os princípios de neutralidade que estão estabelecidos no direito internacional humanitário”, afirma.
Como explica o professor, a Acnur, devido às convenções de Direitos Humanos e aos tratados que orientam o tema sobre refúgio, não poderia diferenciar o refúgio de civis ou de ex-militares, ainda mais em um contexto que não envolve um conflito armado.
“Os princípios de trabalho das agências como Acnur devem ser regidos pela neutralidade e imparcialidade, o que limita a incidência em conflitos de natureza política. Portanto, se há um tratamento mais favorável a refugiados militares em relação a civis, como pagar hotéis para uns e manter outros nos acampamentos de refugiados, há uma contradição com os princípios que orientam seu trabalho”, afirma.
O docente e pesquisador considera que o tratamento diferenciado aos ex-militares responde a interesses políticos.
“É um tratamento privilegiado, necessitam atendê-los bem porque vão utilizá-los para futuras tarefas, no marco do plano de colapso que perseguem os governos dos EUA e Colômbia contra a Venezuela”, avalia.
No início de março, o representante do governo nacional da Venezuela no estado de Táchira, Freddy Bernal, já havia denunciado o fato da Acnur participar dos planos desestabilizadores alojando e mantendo a militares desertores em Cúcuta, na fronteira.
“Existem aproximadamente 435 militares desertores em hotéis de Cúcuta. E tem algo muito grave acontecendo, pois quem está financiando tudo isso é a Acnur, que é uma agência para a proteção dos refugiados. É muito grave que a Acnur esteja financiando grupos que não tem outra intenção senão a de incursão na Venezuela”, declarou Bernal naquela ocasião.
Procurada pela reportagem do Brasil de Fato, a Acnur da Colômbia não se pronunciou até o fechamento desta matéria.
Deserções na fronteira
O chamado à deserção feito aos soldados e oficiais da Força Armada Nacional Bolivariana (FANB) é um tema constante nos discursos do líder opositor venezuelano, Juan Guaidó, desde que se autoproclamou “presidente interino” da Venezuela no dia 23 de janeiro deste ano.
Um mês depois, no dia 23 de fevereiro, a deserção foi uma das principais estratégias da oposição na batalha fronteiriça.
Nesse dia, cerca de 400 militares venezuelanos cruzaram a fronteira e entraram na Colômbia, segundo dados oficiais. Dois deles roubaram dois carros blindados da Guarda Nacional Bolivariana e atropelaram uma jornalista chilena e uma policial na Ponte Internacional Simón Bolívar, antes de serem recebidos sob aplausos por simpatizantes de Juan Guaidó, entre eles, o deputado José Manuel Olivares, do partido Vontade Popular, que os esperavam do lado colombiano da fronteira.
Ixariery Godoy é segunda sargenta da Brigada Bolivariana, composta por civis que realizam treinamento militar voluntariamente. Ela participa do esquema de segurança na fronteira da Venezuela com a Colômbia, tanto na vigilância quanto no sistema de “inteligência popular”. Em entrevista ao Brasil de Fato, ela afirma que os militares venezuelanos, de maneira geral, vinham recebendo ofertas financeiras para desertarem no dia 23 de fevereiro.
“Para o dia 23 de fevereiro, eles [os opositores] necessitavam um fato midiático ressaltante, para dizer que o governo tinha perdido o apoio da Força Armada, então oferecem um dinheiro que depois não pagaram. Apenas os militares do alto escalão receberam”, garante a sargenta.
De acordo com a averiguação dos brigadistas da zona, os militares desertores continuam tendo um papel dentro dos planos contra a Venezuela.
“Estão pagando porque esses desertores estão prestando um trabalho, treinando a paramilitares para incursionar na Venezuela. Eles ofereceram dinheiro e pagaram a esses militares [que desertaram]. Isso é traição porque eles estão trabalhando para o inimigo em função de dinheiro”, diz a brigadista.
A informação foi confirmada por fontes oficiais venezuelanas. O deputado da Assembleia Nacional Constituinte, Diosdado Cabello, afirmou que oficiais receberam ligações diretas de funcionários do governo dos EUA. Alguns deles teriam recebido a oferta de 20 mil dólares para deixar a Força Armada Nacional Bolivariana.
Além disso, o senador dos Estados Unidos Tim Kaine, do partido Democrata, visitou nesta semana a cidade colombiana de Cúcuta, na fronteira, e disse, durante um discurso, que “serão enviados 180 milhões de dólares para dar assistência aos venezuelanos que se encontram do lado colombiano da fronteira”.
A fronteira entre os dois países continua fechada desde o dia 22 de fevereiro e a relação diplomática entre os dois países foi interrompida pelo governo venezuelano no dia 24 de fevereiro, depois do apoio do governo colombiano às tentativas de entrada da suposta ajuda humanitária no dia 23 de fevereiro, consideradas um ataque ao governo venezuelano.
Na ocasião, o próprio presidente Iván Duque esteve na fronteira para prestar seu apoio a Juan Guaidó.
Embora o clima na fronteira seja de tranquilidade, os brigadistas bolivarianos continuam alertas, segundo a professora Ixariery Godoy.
“Nós estamos em permanente alerta, fazendo trabalho de inteligência. Na ponte Las Tienditas temos um acampamento com 1200 brigadistas, que é uma presença simbólica, porque nós não temos armas”.
Governo da Colômbia
Diante das polêmicas declarações dos desertores nas redes sociais, o Ministério de Relações Exteriores da Colômbia emitiu um comunicado informando que os militares que cruzaram a fronteira “entregaram armamento e uniforme e que estão sob custódia da Força Pública da Colômbia”. A nota confirma que os os membros estão recebendo “apoio de alojamento transitório e alimentação”.
Através do comunicado oficial, a chancelaria colombiana também enviou uma mensagem aos desertores:
“A Colômbia não vai tolerar nenhuma alteração da ordem pública, nem ameaças à sua segurança”.
Segundo a imprensa venezuelana, os ex-militares teriam ameaçado revelar um possível plano de intervenção a Venezuela, caso a Colômbia não cumprisse os acordos estabelecidos entre eles.
Edição: Luiza Mançano