“O jogo não está dado”, afirma a jurista e professora da Universidade de Brasília, Beatriz Vargas, sobre as promessas do presidente eleito Jair Bolsonaro de caracterizar movimentos sociais como “organizações terroristas”. Para ela, com essa postura, o presidente terá que lidar com o texto constitucional, que reconhece o livre direito de organização e manifestação política.
A “Criminalização das lutas sociais” foi tema de debate realizado nesta terça-feira (30) pelo o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), em São Paulo. Além de Vargas, participou do debate o Padre Júlio Lancelotti, sacerdote católico e membro da Pastoral do Povo da Rua, com mediação de Ney Strozake, advogado e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Vargas destacou o marco temporal dos 30 anos de vigência da Constituição de 1988 que, segundo ela, foi construída em um ambiente de consenso sobre o exercício do Judiciário como garantista dos direitos sociais. “De uns tempos para cá, o que observamos é uma mudança em relação ao senso técnico jurídico do campo e uma atitude de má vontade com as ações e os movimentos sociais”, ponderou.
Segundo a jurista, o discurso de Bolsonaro, embora acenda o alerta sobre a criminalização das lutas sociais, deverá ser atenuado após sua diplomação como presidente; caso contrário, Bolsonaro estaria praticando crime de responsabilidade.
“O candidato vitorioso vem com um discurso punitivista, agressivo, e faz ameaças de que vai agir no sentido de colocar fim ao ativismo social, e isso nos coloca uma série de preocupações. Essas preocupações hoje são reais e não devem ser subestimadas. E por outro lado, é bom também a gente ter em mente que não podemos superestimar. A fala do candidato não pode ser a fala do presidente. Ou seja, uma vez empossado presidente da República, o capitão Bolsonaro, se continua realizando esse tipo de ativismo, ele estaria praticando crime de responsabilidade. A Constituição em vigor não é só a origem desses movimentos sociais, como protege a sua atuação”.
Vargas chamou a atenção para o decreto presidencial 9.527, de 15 de outubro de 2018, que cria uma força tarefa especial de inteligência, com o objetivo de fornecer elementos de análise e acompanhamento de organizações criminosas ou terroristas. Segundo ela, não é a existência do decreto em si que causa apreensão dos defensores de direitos civis e políticos, mas a modificação da legislação que delimita o que é organização criminosa ou terrorista, através de projetos de lei que já tramitam no Congresso.
“É preciso acompanhar e monitorar esse movimento, como uma forte não só prevenção, mas de tentar impedir que esse movimento ocorra”.
Dois dias depois da eleição presidencial, o Padre Júlio Lancelotti fez uma provocação sobre o sistema político brasileiro: “algumas palavras me ferem o ouvido, como, por exemplo, democracia. Onde existe o estado democrático de direito? Para quem existe?”
O sacerdote comentou as ameaças que tem sofrido por sua atuação social e destacou que foi processado por Bolsonaro em 2017, por tê-lo qualificado como “racista, machista e homofóbico” durante uma celebração religiosa.
Diante das sinalizações do presidente eleito sobre sua intenção de tipificar movimentos como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) como organizações terroristas, denunciou que o ódio praticado por Bolsonaro e seus seguidores já é sentido pela população em situação de rua: “a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana está dizendo todos os dias aos moradores de rua que eles serão exterminados a partir do dia primeiro de janeiro”.
“Uma vez me perguntaram: padre, de que ordem o senhor é? E eu respondi: eu sou da desordem. A ordem é a repressão, é a covardia, é calar a voz dos que querem se manifestar. Nós temos que exercitar o nosso amor político pelos insignificantes, pelos esquecidos. E nesse momento é importante que tenhamos a coragem da insubordinação, da desobediência civil”, concluiu.
Edição: Diego Sartorato