O que começou como um dia normal de trabalho para a advogada negra Valéria Lúcia dos Santos terminou com ela sendo algemada por policiais militares, por ordem de juíza, dentro do 3º Juizado Especial Cível de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, na última segunda-feira (10/9).
Valéria defendia sua cliente em um processo contra a operadora de telefonia Claro por uma cobrança que teria sido duplicada, no valor de R$ 180. No fim da audiência, a juíza Ethel Tavares de Vasconcelos não permitiu que Valéria tivesse acesso a um documento da defesa da operadora.
Para a advogada, tratava-se de uma violação dos direitos de sua cliente, por isso ela acionou a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e se recusou a deixar a sala.
“Caso eu saísse, estaria concordando. Precisava resistir para garantir o direito da cliente”, contou Valéria à Ponte. Foi quando a juíza acionou a Polícia Militar e dois homens a retiraram da sala. Valéria ficou algemada no corredor.
A advogada relata que não é a primeira vez que tem um direito negado durante o trabalho. Caso semelhante aconteceu, segundo ela, em Arraial do Cabo, outro município da Baixada Fluminense.
“Eu me acovardei antes porque a OAB sempre fala que a gente tem de usar de urbanidade, nem sempre é melhor afrontar. Quando aconteceu pela segunda vez, me deu um flashback. ‘A mesma coisa acontecendo, não acredito’. Aí eu gritei, temi uma nova injustiça. ‘Não vou me acovardar'”, explica.
Além de sentir novamente o trabalho interrompido, Valéria pontua que, por ela ser negra, é comum ser menosprezada por magistrados que a recebem. “Alguns juízes, desembargadores, quando a gente entra na sala, eles não nos veem como advogados. Eu tento abstrair porque preciso trabalhar, ignoro. Neste dia, a juíza perguntou se eu e a minha cliente éramos irmãs porque nós duas éramos negras”, diz.
Segundo Valéria, além dessa pergunta, a juíza Ethel Tavares teria mostrado seu preconceito ao jogar a credencial da OAB da advogada em sua direção, após o encerramento do caso.
“Não me abalei em nenhum momento quando ela teve ação para me ferir sobre minha cor. Agora, me feriu quando não quis deixar eu trabalhar… aí é demais, é meu ganha pão. Não tem ninguém que me sustente”, completa.
O fato de não se retirar da sala rendeu um B.O. (Boletim de Ocorrência) por desobediência, pois teria descumprido uma ordem dos PMs. Valéria assinou o documento para, depois, “requerer todos os direitos”.
O caso repercutiu imediatamente. O presidente da OAB de Duque de Caxias acionou o juiz titular do 3º Juizado Especial Cível de Duque de Caxias e obteve a anulação dos trabalhos.
Uma nova audiência acontecerá na terça-feira (18/9), feita pelo próprio juiz titular. Em coletiva de imprensa, a OAB do Rio de Janeiro informou que a entidade pedirá “punição máxima” para os policiais militares e para a juíza leiga (espécie de juíza auxiliar).
O Coade (Coletivo Advogados para a Democracia) repudiou a “lamentável realidade de desrespeito, desqualificação e desvalorização ao exercício da advocacia”, enquanto o MNU (Movimento Negro Unificado) destacou o “racismo e assédio moral na relação de trabalho” e o “racismo estrutural em um “seu sistema de opressão e subtração de direitos”.
O CNDH (Conselho Nacional dos Direitos Humanos) condenou a ‘subalternização e invisibilização da população negra” em nota.
Para Valéria, a realização de nova audiência, por si só, é uma vitória. A advogada não pretende registrar um B.O. por racismo contra a magistrada. “Eu tenho pena dela. Não tenho como mudar minha cor da pela, nasci negra e vou morrer negra. Ela tem a chance de mudar. Se ela tem preconceito, tem chance de mudar por dentro, pode trabalhar isso. Espero que ela procure ajuda”, diz Valéria.
Racismo institucional
Segundo Thayna Yaredy, advogada criminalista e coordenadora-chefe do setor de bolsas e desenvolvimento do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), faltou à OAB tratar do racismo ocorrido neste caso.
“O racismo faz parte da estrutura do Judiciário, assim como de uma estrutura social em si. Esse racismo permeou a situação de modo a tornar vazio o direito e a possibilitar até a arrastá-la no chão.
É uma situação onde vários outros advogados estavam esperando suas audiências e ficaram parados pensando na pauta, não se deram conta da arbitrariedade. Imagino se tentassem arrastar um dono de um grande escritório de advocacia”, provoca.
Para a youtuber Maira Azevedo, conhecida como Tia Má, o caso de Valéria está conectado ao antigo estereótipo da agressividade relacionado à mulher negra. “Toda pessoa preta quando ela é imperiosa e altiva, as pessoas querem interpretar isso como suposta agressividade, mas quando é com gente branca falam de ´personalidade forte'”, analisa.
Com raízes que remontam aos tempos da escravidão e que foram reforçadas cultural e socialmente com o passar das décadas, a imagem da “negra agressiva” é vista por estudiosos como essencial para perpetuar a perspectiva racista da subserviência da mulher afrodescendente na sociedade brasileira.
Para o youtuber Spartakus Santiago, esse estereótipo não é recente e existe em todas as áreas. Cita como exemplo a cantora americana Azaelia Banks, vista como uma profissional difícil, enquanto o rapper também americano Kanye West é apontado como profissional complicado, mas com tratamento de forma mais condescendente. “Esse peso cai muito mais em cima da mulher negra”, pontua.
Ex-atleta
Valéria é natural da Tijuca, bairro da região norte do Rio de Janeiro, e se formou na Universidade Veiga de Almeida como bolsista do ProUni. Ela é mãe de dois jovens de 17 e 15 anos, ambos morando nos Estados Unidos, onde a carioca morou por 10 anos no período em que era casada com um americano.
Os filhos, Victor Brian Hart, o mais velho, e Carlos Alexander Hart, estão nos Estados Unidos onde jogam basquete, um deles cursando universidade com bolsa por conta do esporte. “Eu jogava quando garota, comecei no atletismo e depois fui para o basquete. Não é por nada, mais os dois são bons de bola e estudiosos. O mais velho foi melhor jogador de um campeonato na Flórida”, conta.
A advogada retornou ao Brasil em 2005 para cuidar da mãe, que realizava no Rio de Janeiro um tratamento para curar o câncer. Não voltou mais aos Estados Unidos. Apesar da distância, são os dois filhos que a ajudaram a superar o momento difícil.“Família é tudo, os dois me ajudam”, conta, citando um outro porto seguro.
“Meu tio, Antônio Carlos, me fala umas coisas sábias quando sentamos para tomar um café. ‘Sobrinha, vai devagar, mas não abaixa a cabeça. Segue em frente’. Assim ele me ajuda”, continua.
Edição: Ponte Jornalismo