O incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, no último domingo (2), vem sendo utilizado por empresas de comunicação, movimentos de direita e pelo próprio governo federal como exemplo para uma suposta necessidade da privatização de museus e aparelhos da cultura estatais.
Isso porque a principal causa apontada para o fogo que destruiu 90% do acervo do museu seria a falta de manutenção da estrutura do Museu, devido à falta de financiamento público. Para especialistas da área e pesquisadores do próprio Museu, no entanto, a manutenção do caráter público da instituição é fundamental, assim como o fim da negligência orçamentária com a cultura e pesquisa no país.
Entre as notícias veiculadas na última semana estava a informação, originalmente publicada pelo jornal O Globo, de que há 20 anos a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), instituição a qual o Museu é vinculado, teria negado um acordo de repasse de R$ 80 milhões pelo Banco Mundial. A notícia, no entanto, já foi desmentida em nota pelo próprio Banco Nacional e pela UFRJ, na tarde de ontem (5). De acordo com o diretor-adjunto do Museu, o Banco Mundial teria fechado seu setor cultural antes da conclusão das negociações.
Para a antropóloga Daniela Alarcon, pesquisadora do Programa de Pós Graduação de Antropologia Social do Museu Nacional, é papel da sociedade defender o Museu Nacional das tentativas de privatização.
"Estamos falando de um jornalismo irresponsável que está circulando boatos, mentiras, como parte de uma agenda de ataque à universidade e instituições públicas no país. Qualquer tentativa de avançar no sentido de desvincular o museu da UFRJ, ou qualquer forma de privatização, tem que ser rechaçada veementemente não só pelos pesquisadores do Museu Nacional, mas pela a sociedade como um todo. É um museu entranhado nas memórias da população da Zona Norte do Rio de Janeiro, área que tem pouquíssimo acesso à cultura. Além de ser uma instituição de pesquisa de ponta, conhecida no mundo todo, ele sempre teve um caráter público. É importante frisar a natureza pública dele e como ele sempre teve uma interface muito grande com a população", afirmou.
Para o ex-ministro da Cultura na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, Juca Ferreira, a tragédia do Museu Nacional vem sendo cooptada por grupos que defendem a bandeira eleitoral da privatização.
"Faz parte do momento em que vivemos, onde há uma exacerbação de uma percepção política de redução do Estado, fortalecimento do mercado, e transferência de responsabilidades públicas para a área privada. A eleição está assumindo um caráter plebiscitário porque esse projeto político já perdeu quatro eleições. Eles esquecem que quando se vê a lista dos Museus que pegaram fogo nos últimos anos no Brasil, tem vários que eram administrados não pelo Estado. Então é uma resposta estreita e pequena, quando na verdade o que a gente deveria estar fazendo: primeiro assumir que o Brasil nunca deu a devida importância à cultura, em todas as suas dimensões, particularmente à preservação da memória", opinou.
A privatização de equipamentos de cultura também é criticada pelo ator Sérgio Mamberti, ex-presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte). "Minha discordância é profunda com relação a isso, é estrutural mesmo, é uma questão de princípio. 0Um Estado presente, nesse caso, é muito desejável. Não podemos criminalizar o Estado pelo que está acontecendo, pelo contrário, isso é o resultado de uma verba mínima de 500 mil reais por mês que deixou de ser alcançada. Essa solução não contempla a cidadania, pelo contrário, para isso temos que ter um governo responsável", afirmou.
Na tarde de ontem, o presidente Michel Temer (MDB), em reunião com empresários e banqueiros, discutiu alternativas para a reconstrução do museu, e, entre elas, a viabilização do apoio do setor privado nos fundos por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, que permite a dedução de parte do imposto de renda por empresas para destinar recursos a atividades culturais. Além do incentivo fiscal, a Lei beneficia empresas com a propaganda de sua marca no evento ou local financiado.
Para Juca Ferreira, historicamente crítico à Lei Rouanet, a melhor solução para a precarização dos aparelhos de cultura seria aumentar o orçamento destinado à pasta, que nunca chegou a 1% do orçamento da União. "Através do mecanismo de renúncia fiscal o Estado investe mais no que não é seu do que no que é seu. A Lei Rouanet tem mais recurso que o Ministério da Cultura (MinC), e quem define o uso são os departamentos de marketing das empresas", afirmou.
De acordo com a assessoria de imprensa do MinC, o orçamento da pasta em 2018 prevê o investimento de R$ 1,43 bilhão em projetos culturais associados à Lei Rouanet, valor quase nove vezes maior ao dos recursos previstos para a área de patrimônio.
Para 2018, conforme a assessoria de imprensa do MinC, o orçamento da pasta prevê o investimento de 1,43 bilhão de reais em projetos culturais associados à Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet. O valor é quase 9 vezes maior ao dos recursos previstos para a área de patrimônio, que deverá receber 168 milhões de reais neste ano.
Em paralelo à onda de pedidos de privatização do Museu Nacional, a Reitoria da UFRJ vem sendo amplamente criticada por supostamente não ter repassado parte de um aumento no orçamento para pagamento dos docentes ao Museu, no último ano. Ontem, o pró-reitor de Finanças da universidade gravou um vídeo explicando que houve uma tentativa de confundir os orçamentos pessoal e de custeio. "São orçamentos distintos, o pessoal é obrigatório do governo federal com seus servidores. Ele não pode ser utilizado pela UFRJ para seu funcionamento", afirmou.
Na reunião com Temer, os banqueiros pediram a demissão do reitor da UFRJ, Roberto Leher, por acharem que ele não possui competência para tocar o projeto. Leher é filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e tem sofrido ampla perseguição política. Na opinião de Daniela, qualquer informação que pretende responsabilizar a reitoria da universidade ou a diretoria do Museu no lugar do governo federal é uma "deturpação grosseira da realidade". Procurado pela reportagem, Leher não se pronunciou até a publicação da reportagem.
Edição: Diego Sartorato