Torcedores cantam, sorriem, choram, xingam e se emocionam pelo seu clube. O futebol desperta paixões que, muitas vezes, acabam em violência. Foi pela paz dentro e fora dos estádios que, nos últimos anos, surgiram as torcidas antifascistas no Brasil e no mundo. A depender desses coletivos, racismo, homofobia, machismo e opressão estão com seus dias contados na cultura do futebol.
Na dupla Gre-Nal, através de ações nos estádios e nas redes sociais, torcedores unem a paixão ao seu clube com denúncias contra o fascismo, empunhando seus trapos e bandeiras que recordam que o futebol é do povo. Por mudanças nos espaços esportivos, os rivais já estiveram do mesmo lado na roda de conversa “Mobilização na arquibancada – o combate ao preconceito no futebol”, realizada no Museu da UFRGS, em abril de 2018. E ambos garantem que mais momentos como esse vão acontecer, inclusive junto a movimentos de outros clubes.
No Grêmio, a Tribuna 77
A Tribuna 77 é um coletivo multicultural de torcedores do Grêmio que se reúne na arquibancada superior norte da Arena. Foi embrionada no último ano do Olímpico Monumental, em 2012, dentro do contexto histórico e social que a transferência de estádio representava. Desde então, foram muitas experiências, debates e encontros em busca da transformação de um não-lugar em um espaço com identidade, história, memória e de lutas por um estádio e um mundo melhor.
Entre as principais pautas do movimento, estão a redemocratização dos espaços de futebol, o resgate e manutenção do patrimônio histórico e cultural do clube, além do combate ao racismo, LGBTfobia, machismo, misoginia e todos os tipos de preconceito, explica o mediador da Tribuna 77. Ele prefere não ser identificado para, segundo entende, manter a horizontalidade do coletivo.
“O antifascismo é um dispositivo problematizador das práticas de poder. Isso significa que nossa preocupação é com aquilo que compreendemos como fascismo em todos os âmbitos: negação da diferença, supressão do outro, afirmação de uma verdade única, imposição de determinados modos de existir e se relacionar em detrimento de outros.”
O nome, assim como a motivação, fazem referência ao ano de 1977, na gestão do patrono Hélio Dourado, que avançou com ações progressistas dos gabinetes até as arquibancadas, em plena ditadura militar. Também serviram de inspiração a experiência da Coligay, primeira torcida abertamente formada por homossexuais no Brasil, a campanha do cimento (onde o Olímpico se tornou Monumental pelas mãos de torcedores e torcedoras de todo o país) e o projeto que formou milhões de torcedores ao permitir a entrada gratuita de crianças com até 12 anos nos estádios.
No Internacional, a Frente Inter Antifascista
Em 2015, integrantes da torcida colorada Guarda Popular criaram a Frente Inter Antifascista, aberta a qualquer torcedor que deseje partilhar o mesmo objetivo de combater a elitização e o fascismo dentro e fora dos estádios. Com o recrudescimento dos movimentos golpistas e suas consequências em 2016, a Frente cresceu. Hoje, conta com integrantes de torcidas, sindicatos, movimento estudantil e torcedores em geral do Inter, unidos pelo amor ao colorado e contra as opressões.
“Algumas músicas de arquibancada acabam descambando pra homofobia, machismo ou racismo”, explica o mediador da Frente, que também não se identifica devido à horizontalidade do grupo. “O torcedor, na média, não interpreta esse tipo de ofensa como opressão no contexto do futebol. Nesse sentido, nossa Frente tem um caráter pedagógico também, ao se aproximar de outros colorados e fazê-los refletir sobre esses temas que, como sabemos, não estão circunscritos aos estádios.”
As arquibancadas e as redes sociais do grupo, já testemunharam manifestações a favor das ocupações nas escolas e pela qualidade do ensino público, contra a venda da Petrobras, denunciando o assassinato de Marielle Franco, afirmando o #Fora Temer, entre outras. Seus integrantes também são combativos dentro do clube, em relação a temas como a elitização. “Obtivemos recentemente uma grande vitória junto a institucionalidade do clube, com o ‘Sócio Academia do Povo’, modalidade popular e acessível de associação para abrir mais espaço às camadas de menor renda dentro do Beira-Rio”, observa o mediador.
Futebol é sim lugar de política
A ascensão de coletivos antifascistas no futebol está ligada aos surgimento de movimentos identitários e a um momento histórico de conquista de Direitos Humanos, na virada do século, explica Gustavo Bandeira, doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Futebol é sim lugar de política”, esclarece.
A afirmação, bem como a atuação dos torcedores antifascistas dos mais de 20 coletivos conhecidos de clubes brasileiros, bate de frente contra a polêmica declaração do apresentador Tiago Leifert, da TV Globo e Sportv. Para Leifert, um evento esportivo não é local apropriado para manifestações políticas.
Para a Frente Inter Antifascista, que não vê seus ideais retratados pelos grandes meios de comunicação, há interesse em que o processo de elitização dos estádios continue. “A quem interessa que manifestações políticas sejam silenciadas dentro dos estádios? O silêncio sempre tem lado. Enquanto as torcidas viram notícia normalmente nos episódios de violência, retumba o silêncio dos jornalistas destes veículos sobre problemas reais dos torcedores, como as proibições infundadas, a criminalização das torcidas, os horários dos jogos e o preço dos ingressos.”
A Tribuna 77 compreende que todos os espaços são de disputa e de difusão de conteúdo. Desde a imprensa empresarial até a mídia alternativa, de guerrilha. Para eles, “as torcidas antifascistas, assim como os movimentos progressistas, não têm a devida atenção da grande mídia, mas hoje existem muitos veículos independentes, podcasts, etc, que dão ampla difusão. Mas o futuro é de mudanças. E o grande fato é que estes movimentos estão em plena ascensão. Quem não acompanhar vai ficar pra trás da informação e da história”, aposta o mediador.
“Futebol e política sempre estiveram grudados, sempre estiveram juntos, lado a lado. A diferença é que antes havia o pensamento político de apenas um grupo hegemônico, sem nenhuma forma de contestação”, afirma Bandeira. “Não é que hoje haja maior volume de discurso político no futebol, mas sim maior volume de discursos dissonantes”, nota. E explica: “Não é um aumento e sim o aparecimento de grupos que estavam apagados numa cultura em que os demais grupos hegemônicos falavam como se seu discurso não fosse político”.
Edição: Marcelo Ferreira