FUTEBOL

"Vai virar Palmares": a luta de torcedores por um Palmeiras antirracista — e campeão mundial

Artistas e ativistas negros e periféricos quebram "estereótipo enganoso"; time estreia na terça (8) no Mundial de Clubes

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Clube está na semifinal do Mundial de Clubes pelo 2º ano seguido: "Palmeiras é preto", dizem torcedores - Reprodução/YouTube - TV Palmeiras/PUMA

"Por menos que conte a história, não te esqueço, meu povo. Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo". Os versos do poeta José Carlos Limeira em referência à experiência do Quilombo dos Palmares ganharam nova forma entre torcedores do Palmeiras.

Em novembro de 2021, numa sexta-feira à noite, na gelada zona oeste paulista, centenas de pessoas se encontraram na quadra da Torcida Uniformizada do Palmeiras (TUP) para um debate que reinventou os versos de Limeira para a realidade concreta da luta antirracista no clube: "Do Palmeiras, faremos Palmares".

Na mesa de debate, estiveram ativistas, integrantes de movimentos populares e jornalistas que querem o título no Mundial de Clubes, mas que, sobretudo, sonham com um mundo antirracista, sem violência contra a população negra, a classe trabalhadora, as mulheres e a população LGBTQIA+. O torneio começa para o Palmeiras nesta terça-feira (8), a partir das 13h30 (horário de Brasília), quando o time enfrenta o Al Ahly, do Egito.

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O evento contou com o jornalista Pedro Borges, co-fundador do Alma Preta, agência de jornalismo especializada na temática racial; o escritor e cineasta Alessandro Buzo; a advogada Beatriz Mascarenhas; e o historiador Wanderley Laurino. O debate, segundo os presentes, "foi um marco histórico".

"Essas discussões são muito grandiosas, difíceis, delicadas, e elas exigem a participação de atrizes e atores da sociedade que são também grandes. O Palmeiras é uma grande instituição, um grande ator da sociedade brasileira. É importante que a sua torcida se envolva nessas questões", considerou Pedro Borges ao Brasil de Fato

"[O evento na TUP] Foi momento de se fazer uma boa reflexão sobre a questão de raça, sobre o racismo, sobre a história do clube. E, de alguma maneira, sobre como a sua torcida pode carregar isso de uma maneira combativa, antirracista e que esteja de acordo com os princípios da maioria da população brasileira", diz o jornalista.


Pedro Borges durante debate na sede da Torcida Uniformizada do Palmeiras (TUP) / Reprodução/Twitter - @rebellolua

"O Palmeiras é preto"

Em entrevista ao Brasil de Fato, Alessandro Buzo, que é um dos organizadores do Sarau Suburbano e é conhecido pela atuação nos programas "Manos e Minas", da TV Cultura, e no "SPTV", da TV Globo, disse que o debate feito na sede da segunda maior torcida organizada do clube reforça a importância de "um Palmeiras de todos". O evento foi convocado por diversos grupos e coletivos que atuam na torcida alviverde, como o Porcomunas.

"Eu acredito na força de pessoas e de coletivos organizados, como foi lá na TUP. Uma discussão como essa traz progressos em torno do bem comum, que é ter um Palmeiras de todos", afirma Buzo. Ele nega com veemência a imagem do torcedor do Palmeiras como um homem branco, rico e de ascendência italiana.


Debate realizado na sede da Torcida Uniformizada do Palmeiras (TUP), em novembro de 2021 / Reprodução/Twitter

"Não concordo com essa cara branca, playboy e elitista como pintaram a torcida do Palmeiras. Eu frequento o estádio desde a década de 1980 e, no tempo do Palestra Itália, o saudoso Parque Antártica, a gente via a cara da torcida do Palmeiras. Não é essa que aí está hoje. Você via o preto, você via o pobre, você via o periférico, você via o favelado, você via todo o tipo de pessoas, inclusive o rico", afirma Buzo.

O estereótipo também é recusado por Pedro Borges. Segundo ele, "estamos falando de um time de massa, um time que tem uma torcida significativa nas periferias. Há uma grande população negra que torce para esse time".

"É importante que esse time faça essas discussões que estão à altura, inclusive, do futebol apresentado na história desse clube pelos seus atletas negros. Foram muitos que, de alguma maneira, garantiram para nós muitas conquistas e alegrias. Em 1999, foi muito grande a importância do Júnior, César Sampaio, do Oséas, Júnior Baiano, Roque Júnior, por exemplo", diz o jornalista.


César Sampaio, capitão do Palmeiras no título da Libertadores de 1999, com a camisa do time durante a infância / Reprodução/Twitter - Arquivo Pessoal

Buzo afirma, ainda, que o tema fomenta lutas urgentes para o palmeirense. "Se não tiver uma pressão popular, eu acho que o cerco nos dias de jogos vai continuar". O "cerco" é uma política implementada pela Polícia Militar, em parceria com a diretoria do Palmeiras, que reserva o entorno do estádio Allianz Parque em dias de jogos apenas aos que compraram ingresso.

"Tudo precisa de uma mobilização. É preciso que se brigue por ingressos mais baratos, por um setor mais popular do que já é o Gol Norte [setor mais popular do Allianz Parque]. É preciso que, em alguns jogos de menor visibilidade, se coloque um preço superpromocional. Só assim, muitos palmeirenses que nunca foram ao estádio poderão ter a oportunidade", reflete Buzo.


Alessandro Buzo em jogo do Palmeiras no Allianz Parque, em São Paulo / Arquivo Pessoal

Bailes blacks nos anos 1970: "revolução" no movimento negro

Dois dias depois do debate na quadra da TUP, o repórter Thiago Braga, do Uol, publicou uma reportagem que contribuiu para a discussão sobre a relação do Palmeiras com a questão racial. Em pesquisa histórica, o jornalista mostrou por que o palco do ginásio do Palmeiras é reconhecido como fator importante para a consolidação do movimento negro em São Paulo.


Cartaz do show do cantor James Brown no Palmeiras, em novembro de 1978 / Reprodução/Twitter

Segundo a reportagem, foi no local que o produtor musical Luiz Alberto dos Santos, mais conhecido como Luizão, instalou em 1974 o baile da Chic Show, aquela que se tornaria a festa black da cidade. "Já na primeira edição, o show ficou a cargo de Jorge Ben Jor, atração que seria a mais frequente entre todos os grandes músicos nacionais e internacionais a se apresentarem no Palmeiras", diz o texto.

"O auge aconteceu em 11 de novembro de 1978. Foi quando o ginásio palestrino recebeu o maior nome da música soul, o cantor James Brown. Relatos dão conta de que mais de 20 mil pessoas se espremeram para ver Brown sapatear e cantar seus maiores sucessos", conta a reportagem de Braga.

"O show dele é um dos grandes acontecimentos da Chic Show. Teve o Tim Maia, que lotou também. O James Brown veio com a banda dele, a JB Band, negociamos e trouxemos 36 pessoas, toda a banda, as backing vocal. Foi um grande show", afirmou Luizão ao jornalista do Uol.

Rincón Sapiência: quebra de paradigmas

Na semana passada, viralizou um trecho de uma entrevista dos rappers Terra Preta e Cabal ao podcast especializado PodPorco. Na ocasião, Terra Preta brinca com o suposto estereótipo do palmeirense e fala sobre a importância de campanhas da Puma, fornecedora de material esportivo do Palmeiras, visibilizarem torcedores negros.

Segundo o artista, a presença de Rincón Sapiência em uma ação de marketing da torcida do Palmeiras foi fundamental para resgatar a identidade do que ele chama de "preto palmeirense".


Participação de Rincón Sapiência em campanha de divulgação do material esportivo do Palmeiras / Reprodução/Twitter

Assista ao vídeo da campanha:

"Palmeiras na Quebrada": os projetos de Alessandro Buzo

Na entrevista ao Brasil de Fato, Alessandro Buzo revelou que trabalha na idealização de um programa no YouTube chamado "Palmeiras na Quebrada". Segundo ele, a proposta é "mostrar a cara periférica da torcida do Palmeiras". "O Palmeiras é de todos. Eu acredito que essa cara branca e elitista não é a cara real da torcida do Palmeiras".

Buzo trabalha, ainda, na elaboração do livro Torcida que canta e vibra, com crônicas e poesias sobre sua vivência como torcedor do Palmeiras. A publicação já está em pré-venda no site e nas redes sociais e, segundo ele, terá uma série de histórias e reflexões sobre o time na visão de um escritor periférico.

Edição: Rodrigo Durão Coelho