Após manifestações populares contra a captação empresarial de água em Correntina, no oeste da Bahia, o Ministério Público Estadual realizou uma audiência pública nesta sexta-feira (1). O evento ocorreu por mais de quatro horas, iniciando-se às 9h da manhã, após uma marcha iniciada às margens do Rio Arrojado, que corta parte da cidade.
Nilson “Maguila” José Rodrigues, o prefeito da cidade pelo PC do B, respondeu às críticas de políticos do estado sobre a mobilização dos habitantes da cidade, que chegaram a destruir equipamentos de duas fazendas.
“Ontem tive a felicidade de receber a Comitiva de Direitos Humanos. Nós discutimos como preservar as áreas de recarga do nosso cerrado. Nós precisamos conseguir, e acho que vamos, que o governador ouça os ribeirinhos. Eu já conversei com ele, afirmei que em Correntina não há terrorismo, há desespero. Há momentos em que é preciso um grito de alerta para que as autoridades acordem”, afirmou.
Rodrigues criticou ainda o fato de que policiais abordaram crianças e adolescentes, alguns em ambiente escolar, para buscar familiares alvo das investigações policiais. O prefeito foi precedido por falas da Promotoria baiana e da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Samuel Britto, da CPT, apontou que a responsabilidade pelo conflito é do agronegócio que atua na região e criticou a omissão das instituições na fiscalização do uso da água por parte das empresas, afirmando que muitas delas grilam áreas.
“Dizem que o agronegócio é produção legal. A fazenda Igarashi está em terra grilada, segundo o órgão de terras da Bahia. Como isso é legal? Nós, da CPT, temos vários protocolos de denúncias feitas pela população. E nada foi feito. Vocês querem o conflito? Não, mas o conflito bateu às portas de vocês. A nós cabe reagir, não há outra opção”, afirmou.
Responsável pela convocação do evento Luciana Khoury, da área ambiental da Promotoria, defendeu modificações na regulamentação da captação de recursos hídricos.
“Nossa crise hídrica é provocada pela falta de chuva, mas não só por ela. Ela também ocorre por conta de atividades produtivas, que não levam em conta os limites do ecossistema, que não são regulamentadas e fiscalizadas. Há problemas institucionais de gestão: nós não temos Plano de Bacia, então, não há limite”, criticou.
O Ministério Público baiano defende a suspensão de novas outorgas, a revisão e cadastro das já concedidas, e atualização dos critérios técnicos para concessão. Khoury pontuou que já é sabido que “algumas fazendas, ao captar água, estavam de fato reduzindo a vazão do rio” e que ao menos desde 2015 a população tem denunciado a questão e não obteve respostas.
Após a ação popular no interior das duas fazendas, a cidade foi tomada por efetivos policiais e procedimentos de investigação foram instaurados. Segundo os moradores, vários abusos foram cometidos e boa parte do inquérito se baseou no relato de pistoleiros conhecidos na região.
Andreia Neiva, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), criticou a criminalização dos manifestantes, que se organizaram de forma espontânea.
“Esse conflito é histórico. Tem mais de 40 anos. Sou ribeirinha e no ano em que nasci, um trabalhador rural foi morto, em 1983. Estão saqueando nossas águas, estão roubando. Pode até ser legal, mas não é legítimo. Nós tivemos várias tentativas de diálogo. Nada foi encaminhado. Chega um momento em que é preciso um ato de rebeldia para ser ouvido. Quando o pai e a mãe não vê, a criança chora. Cadê o governo do estado aqui para ouvir o povo? Se for tratar a gente como bandido, prepara a cadeia, porque vai prender todo o oeste”, afirmou, sendo uma das falas mais aplaudidas pelos mais de cinco mil presentes na audiência, segundo estimativas das organizações participantes.
A fala de Neiva encontrou eco nas colocações da população, que participou ativamente da audiência. Um idoso afirmou que se “fosse preso, estaria satisfeito”. No mesmo tom, uma senhora afirmou preferir “morrer de bala do que de sede”.
Conforme a crítica da militante do MAB, nenhum representante do governo baiano esteve presente. Khoury afirmou que Rui Costa, do PT, pediu mais prazo para participação, com o intuito de levantar dados em relação às outorgas de água.
As autoridades policiais presentes afirmaram que o grande contigente policial em Correntina, incomum para os padrões do município, se deu após uma “denúncia anônima” de que a Delegacia da cidade seria invadida. Representantes das policias militar e civil afirmaram à população que denúncias de abusos serão investigadas.
A reportagem viajou ao município acompanhando um grupo de entidades durante uma missão promovida pelo Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, responsável pelo convite ao Brasil de Fato.
Fotos: Rafael Tatemoto
Edição: Simone Freire