"Ora sucede que os primeiros cafoni de Fontamara que, na manhã de 2 de junho, desceram a colina para ir ao trabalho, encontraram-se com um grupo de cantoneiros, chegados do município, com pás e picaretas, para desviar o riacho (disseram eles), para afastar o racho das lavouras e das hortas, que sempre irrigara, sempre, desde quando a terra e a água existiam, e para encaminhá-lo em sentido contrário, de forma a obrigá-lo a costear algumas vinhas e a banhar terras que não perteciam a Fontamara, mas a um rico proprietário do município Dom Carlos Magna." [1]
O rio Arrojado fica na cidade de Correntina, oeste da Bahia. Ele desce do Chapadão das Geraes e serpenteia por 100 quilômetros até desaguar no rio Corrente para logo adiante encorpar o São Francisco. Foi em defesa das suas águas que, no dia 11 de novembro, milhares de homens e mulheres deste pequeno município baiano ocuparam a praça pública cumprindo a sina da canção de Milton, transformando a cidade em “rio de asfalto e gente”[2].
É que dias antes, centenas de moradores da cidade realizaram um protesto na fazenda Higarashi para impedir que dutos sugassem praticamente toda a água do rio para abastecer projetos do agronegócio. As cenas foram exibidas nos principais meios de comunicação do país [3] e o enfoque foi, como sempre, o de tentar rotular as ações de protesto como atos de vandalismo e terrorismo. O governador do Estado tratou o caso como de polícia e enviou forças de segurança para proteger os interesses do capital, determinando apuração dos responsáveis e chamando aqueles ribeirinhos de “bando”. De uma hora para outra, a cidade se viu ocupada e sitiada por policiais.
A reação da cidade em solidariedade aos trabalhadores que impediram que os dutos da empresa continuassem a matar o rio Arrojado, mostrou ao país uma outra perspectiva da questão e evidenciou o grave problema ambiental que atinge aquela população há décadas que é o desastre ambiental da morte de riachos pela ação de grande empreendimentos agrícolas, com a anuência do Estado.
Correntina possui uma riqueza cultural de festas religiosas, feiras e turismo ligadas às águas dos seus rios e riachos. É tradição secular daqueles agricultores pequenos projetos de irrigação para agricultura familiar e de subsistência que nunca causaram danos ambientais. Foi somente à partir de 1970 que o Estado passou a incentivar grandes projetos de plantação de pinos e eucaliptos naquela região que levaram a destruição de 70% do cerrado e, com ele, das nascentes de dezenas de riachos da região que foram assoreadas até a morte, em processo de desertificação[4].
Foi aí que começou a tragédia das mortes dos rios e a tomada de consciência da sua população da importância da água nas suas vidas. Nos anos 2000, um grande proprietário de terras quis construir um canal em área de preservação permanente que desviaria cerca de 30% das águas do rio Arrojado. Cansados de esperar pelo poder público e após enviar carta ao então presidente FHC que, por óbvio, nada fez, a comunidade ribeirinha realizou um ato político de destruição do canal.
A desastrosa política estatal de plantação de eucaliptos somada a inescrupulosa sanha do agronegócio teve como resultado a morte de 17 riachos da região nos últimos 20 anos. O rio Arrojado, palco da revolta da população de Correntina, tem de 35 a 40 milhões de anos e, pelos estudos de pesquisadores, pode desaparecer daqui a 20 ou 30 anos.
Quarenta milhões de anos!
A revolta dos ribeirinhos contra a Higarashi tem início em 2015, quando 6 mil pessoas realizaram um protesto na cidade para pedir que o Estado não outorgasse autorização de captação de água para empreendimentos privados, pois isso aprofundaria ainda mais o trágico drama ambiental. Nada foi feito. Nem pelo governo do Estado, nem pelo Judiciário, nada. No ano passado, o Ministério Público da Bahia e o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Corrente recomendaram que o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA) não concedesse outorgas para grandes empreendimentos na bacia do Rio Corrente – da qual o Arrojado faz parte -, o que não foi acatado.
Para se ter uma ideia do tamanho da tragédia causada pela empresa Higarashi basta ver que os seus dutos captavam por dia 103 milhões de litros de água do rio, enquanto que toda a população da cidade junta capta apenas 3 milhões/dia. Ou seja, a cidade toda consome do rio apenas 2,8% do que uma fazenda.
A ação da população não foi somente legítima como imprescindível para salvar o rio da morte certa, caso os criminosos projetos de captação continuassem, acintosamente, a dragá-lo. A pergunta que fica é quem autorizou tamanho disparate? Qual a indenização e compensação que essa empresa deu ou dará às milhares de famílias que vivem às margens e desses rios há mais de um século?
Investigar isso parece não ser o interesse do poder público. Ao contrário, as autoridades querem punir justamente a população local. Entidades que atuam na área de direitos humanos soltaram uma nota[5] em que denunciam o verdadeiro clima de terror que está sendo submetida a população de Correntina. Vale colar um trecho:
“São três delegados responsáveis pela investigação, incluindo o coordenador regional lotado em Santa Maria da Vitória, município vizinho, além de suporte significativo de outras equipes enviadas da capital. Até o momento, dezenas de pessoas, dentre homens, mulheres, idosos, em sua maioria moradores das comunidades ribeirinhas, foram inquiridas na delegacia local, que funciona em ritmo nunca antes registrado na história de Correntina. Em paralelo, temos informações de que ocorrem, de forma ostensiva e sem autorização judicial, buscas pelas comunidades, com a participação ativa da Polícia Militar, na tentativa de obter informações das pessoas em suas residências e locais de trabalho, sem sequer uma intimação formal. Já aqueles que eventualmente receberam intimação são chamados para prestar informações poucas horas após o recebimento da notificação, o que impossibilita o acompanhamento do ato por um/a defensor/a."
Triste ironia desses tempos.
Fontamara é um belo romance neorrealista italiano escrito em 1933 quando seu autor, Ignazio Silone, estava exilado fugindo da polícia fascista em Davos, na Suíça. Retrata o drama de uma pequena localidade que sofre pela falta de água causada por ricos proprietários durante o fascismo. O nome Fontamara significa fonte amarga. A ficção denúncia de Silone se materializa em Correntina dos dias atuais.
E a lição de resistência dada pela população de Correntina deveria ser incorporada por todos nós brasileiros que dia pós dia assistimos a desvios e furtos de direitos sociais retirados da mesma forma e ritmo daquelas enormes dragas e dutos da fazenda Higarashi.
A luta pela defesa das águas de um rio por homens e mulheres simples de mãos calejadas, cujos pais, avós, bisavós viveram e morreram tendo essas águas como elemento indissociável da própria existência, em uma cidade de 35 mil habitantes, no interior profundo do Brasil, sem querer, tornou-se um poderoso exemplo de tomada de consciência e ação política concreta, tão necessária nos tempos atuais. Oxalá as águas do Brasil se revoltem numa imensa Correntina.
[1] Fontamara, de Ignazio Silone, 1933, pg. 46.
[2] https://www.youtube.com/watch?v=iFTosuHoiw0
[3] https://www.youtube.com/watch?v=CDNQWKoeSdM
[4] https://www.youtube.com/watch?v=TEyP3otRaCc
(*) Patrick Mariano é escritor, advogado popular e mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).
Edição: Justificando