Bahia

Ribeirinhos denunciam exploração predatória de água por transnacionais em Correntina

Ações de moradores em fazendas foram atribuídas ao MST por páginas de notícias falsas; caso repercutiu nas redes sociais

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Parte do maquinário destruído para impedir a captação empresarial da água
Parte do maquinário destruído para impedir a captação empresarial da água - Reprodução

Em uma tentativa de interromper a captação de água feita por empresas transnacionais ligadas ao agronegócio, moradores da cidade de Correntina, no interior da Bahia, ocuparam as fazendas Igarashi e Curitiba.

O caso ganhou as redes sociais. Páginas de notícias falsas, as chamadas fake news, atribuíram a ação ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), afirmando que o protesto havia causado a destruição das fazendas.

O MST negou envolvimento na ação, mas manifestou solidariedade à população local, que vem sendo prejudicada pelas atividades. Em nota, a Comissão Pastoral da Terra disse que “a ação do povo de Correntina não é de agora. Assistindo à sequência de morte de suas águas essenciais, diante do silêncio das autoridades, ações do tipo e outras vêm sendo feitas há mais tempo”.

Andreia Neiva, ribeirinha da região e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), diz que o conflito entre populações tradicionais e empresas se iniciou há décadas, ainda durante a ditadura militar.

"Desde a década de 1970, quando chegaram os grandes empresários na região, começaram os conflitos, inclusive com assassinatos. Isso gira em torno do controle que as empresas tentam ter sobre as terras e as águas. As famílias e comunidades sempre denunciaram, mas como nunca tiveram uma resposta dos órgãos competentes, chegou uma hora que saturou", afirma. Como exemplo da perseguição a defensores de direitos humanos, Neiva cita a morte do advogado Eugênio Lyra, em 1977.

A empresa responsável pelas fazendas ocupadas tem permissão para captação de água fluvial. Em um dia, ela explora, em média, 106 milhões de metros cúbicos, volume equivalente ao consumo mensal da população de Correntina. A ativista explica ainda que a exploração empresarial da água impede que as plantações da população local sejam irrigadas, situação que foi agravada este ano pelo atraso da chegada do período chuvoso.

"Antes eram empresas aqui do Brasil. Hoje, as empresas no Oeste da Bahia são, na grande maioria, internacionais. A relação das comunidades tradicionais com o rio beira uma relação mística. Na nossa concepção, as águas são fonte de vida. A forma da exploração das empresas é ver a água como mercadoria, a qualquer custo. São modos de vida antagônicos", defende.

Correntina está localizada na região de Cerrado no Oeste da Bahia. As águas do local são responsáveis pelo abastecimento da bacia do Rio São Francisco, tendo grande importância para todo o Nordeste.

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Confira a nota de movimentos populares, lançada no dia 6 de novembro, sobre o caso:

NOTA: Cansado do descaso das autoridades, o povo de Correntina reage em defesa das águas

A mídia está a noticiar que na manhã de quinta-feira, 02/11/2017, feriado de Finados, houve manifestação de populares nas Fazendas Igarashi e Curitiba, no distrito de Rosário, município de Correntina. Segundo imagens e áudios que circulam pela Internet, estas fazendas teriam sido invadidas e parte de suas máquinas, instalações e pivôs quebrados e incendiados, e que os autores destas ações são populares de Correntina. Segundo os relatos participaram da ação entre 500 a 1.000 pessoas.

O Oeste da Bahia tem se destacado como produtor de grãos para exportação, referência para o agronegócio nacional, cada vez mais de interesse internacional. Está inserido no MATOPIBA – projeto governamental de incentivo a esta produção nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – atual fronteira agrícola brasileira, onde estão localizados os últimos remanescentes de Cerrado no Brasil. É nesta região onde se encontram os rios Carinhanha, Corrente e Grande, suas nascentes, subafluentes e afluentes, principais contribuintes com as águas do rio São Francisco na Bahia, responsáveis por até 90% de suas águas no período seco. São estas águas que abastecem milhares de comunidades rurais e centenas de municípios baianos e dos outros estados do Submédio e Baixo São Francisco.

Os conflitos causados pela invasão da agropecuária, desde os anos 1970, no que eram os territórios tradicionais das comunidades que habitam o Cerrado, têm sido pauta de uma intensa discussão, e de dezenas de audiências públicas. A gravidade destes conflitos é de conhecimento regional, estadual, nacional e até internacional. Contudo, ao longo de décadas o agronegócio nunca assumiu a responsabilidade por sua nefasta atuação, alicerçada num tripé que tem como eixos centrais: a invasão de terras públicas por meio da grilagem e da pistolagem; o uso de dinheiro público para implantação de megaestruturas e de monoculturas de grãos e pecuária bovina; o uso irresponsável dos bens naturais, bens comuns, com impactos irreversíveis sobre o ambiente, em especial, sobre a água e a biodiversidade, além de imensuráveis impactos sociais.

A ação do povo de Correntina não é de agora. Assistindo à sequência de morte de suas águas essenciais, diante do silêncio das autoridades, ações do tipo e outras vêm sendo feitas há mais tempo. Em 2000, populares entupiram um canal que pretendia desviar as águas do mesmo rio Arrojado agora ameaçado pelas fazendas no distrito de Rosário. O canto fúnebre das “Alimentadeiras de Alma”, antiga tradição religiosa de rezar pelos mortos, passou a ser realizado para chamar a atenção para a morte das nascentes e rios às centenas na região. Romarias com milhares de pessoas vêm sendo feitas nos últimos anos em cidades da região em protesto contra a destruição dos Cerrados.

As ações do agronegócio possuem a chancela do Estado baiano e brasileiro, que age como incentivador e promotor, é insuficiente ou omisso nas fiscalizações e tem sido conivente com a sua expansão por meio da concessão de outorgas hídricas e licenças ambientais para o desmatamento, algumas sem critérios bem definidos. Estes critérios que vêm passando por intensas flexibilizações com as mudanças radicais na legislação ambiental. O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos – INEMA concedeu à Fazenda Igarashi, por meio da Portaria nº 9.159, de 27 de janeiro de 2015, o direito de retirar do rio Arrojado uma vazão de 182.203 m³/dia, durante 14 horas/dia, para a irrigação de 2.539,21 ha.

Este volume de água retirada equivale a mais de 106 milhões de litros diários, suficientes para abastecer por dia mais de 6,6 mil cisternas domésticas de 16.000 litros na região do Semiárido. Agrava-se a situação ao se considerar a crise hídrica do rio São Francisco, quando neste momento a barragem de Sobradinho, considerada o “coração artificial” do Rio, encontra-se com o volume útil de 2,84 %. A água consumida pela população de Correntina aproximadamente 3 milhões de litros por dia, equivale a apenas 2,8% da vazão retirada pela referida fazenda do rio Arrojado.

Alegar que as áreas irrigadas no Oeste da Bahia representam apenas 8% da região, ou seja, 160 mil hectares num universo de 2,2 milhões de hectares, não minimiza seus impactos. Megaempreendimentos e suas obras de infraestrutura em plena construção com vistas à expansão das áreas irrigadas determinam uma rota de cada vez maior devastação. Alguns exemplos: Fazenda Santa Colomba, em Côcos, Fazendas Dileta; Celeiro e Piratini, em Jaborandi; Fazendas Sudotex, Santa Maria e Igarashi, em Correntina. Algumas destas fazendas estão construindo centenas de quilômetros de canais, dezenas de reservatórios (piscinões), perfuração de centenas de poços tubulares e instalação de centenas de pivôs. Quanta água está sendo comprometida com tudo isto? Se a irrigação não fosse uma tendência regional, como explicar tantos investimentos neste modelo de agricultura? Comitês e Planos de Bacia e outras medidas no campo institucional, antes promovem esta rota insana, do que preservam os bens comuns da vida, hoje e de amanhã.

A ganância do agronegócio e as conveniências dos que representam o Estado são os responsáveis pelo desespero do povo. Não há ciência no mundo que possa estimar um valor monetário para o rio Arrojado, e isso o povo de Correntina parece compreender bem. Os próceres do agronegócio agem com hipocrisia e continuam se negando a assumir o passivo socioambiental existente no Oeste Baiano. Não resistem a uma mínima comparação com o modo de produzir dos pequenos e médios agricultores, que fornecem os alimentos diversos que a população consome com impactos infinitamente menores e muito mais cuidados de preservação. Não há como evitar a pergunta: os equívocos dos processos para outorgas hídricas e licenciamentos ambientais e a falta de fiscalização eficiente dos órgãos responsáveis são garantias para a legalidade e legitimidade do agronegócio?

Diálogo com os representantes do agronegócio tem sido um simulacro de democracia e honestidade.  Na audiência pública havida em Jaborandi, no dia 27/10/2017, para discutir a questão das águas, outorgas e legislação ambiental, com interessados dos municípios de Jaborandi, Coribe e Correntina, populares foram impedidos de questionar a tese, na ocasião defendida por conhecido cientista aliado do agronegócio, de que não há relação entre a ação humana e as mudanças climáticas.

Flagrantes contradições do modelo de desenvolvimento regional são inúmeras e precisam ser evidenciadas. Por exemplo, a de que é muito maior a área preservada de Cerrado em relação à explorada. Omite-se que as áreas de Reserva Legal das fazendas do Oeste da Bahia estão sendo regularizadas por meio da “grilagem verde” sobre os territórios das comunidades tradicionais, e que a função ecológica cumprida pelas Áreas de Preservação Permanente – APPs, aos longo dos cursos d’água, nas áreas de descarga, são diferentes das funções ecológicas que cumprem os chapadões responsáveis pelo abastecimento do aquífero Urucuia, áreas de recarga, que já foram dizimadas pelo agronegócio.

A luta em defesa da vida mais uma vez é marcada pelo protagonismo popular de quem faz com as mãos a história e sabe que a água não é mercadoria, como quer convencionar o agronegócio, inclusive utilizando-se da Lei 9.433/1997, a “Lei das Águas”. As águas do rio Arrojado abastecem comunidades centenárias e não podem servir apenas aos interesses dos irrigantes como o grupo Igarashi, que chega à região com a má fama de ter que migrar da Chapada Diamantina, uma das regiões da Bahia que sofrem com a crise hídrica, em especial, na bacia do rio Paraguaçu, justamente por conta dos impactos de sua exploração. Os conflitos ambientais parecem não findar com o caso das fazendas deste grupo, pois esta é apenas uma fazenda num universo de inúmeras do Oeste da Bahia. Tudo indica, portanto, que o cansaço do povo frente ao arrojo do agronegócio e ao descaso das autoridades e a urgência da defesa da vida seja o argumento que impõe esta reação.

Deste modo e diante da notória crise hídrica, somada à irresponsabilidade arrogante do agronegócio e à incompetência do Estado, tal cenário coloca o povo em descrença e desespero, ao ver o rio Arrojado, base para sua convivência e modo de vida, com tamanhos sinais de morte, assim como inúmeros riachos, nascentes, veredas e rios da região. E, então, partem para alguma reação concreta, que chame a atenção dos responsáveis públicos e privados. Não há palavras para descrever o sentimento coletivo que tomou conta do povo de Correntina, que num ímpeto de defesa agiu para defender-se, pois sabe que se não mudar o modelo de “desenvolvimento”, baseado no agronegócio, estarão comprometidas as garantias de vida das populações atuais e futuras.

Novembro de 2017.

 

Agência 10envolvimento

Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras

André De Witte -Bispo da Diocese de Ruy Barbosa, Bispo referencial da CPT no Regional NE3 e Vice-presidente da CPT Nacional

Articulação Estadual dos Fundos e Fechos de Pasto da Bahia

Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais da Bahia – AATR/BA

Blog Combate Racismo Ambiental

Coletivo de Antônia Flor – Assessoria Técnica e Popular em Direitos Humanos

Comissão Pastoral da Terra – CPT/BA

Conselho Pastoral dos Pescadores – CPP/MG

Consulta Popular – CP

Coordenação Nacional da Federação de Estudantes de Agronomia do Brasil – FEAB
Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco – FUNDIFRAN

GeograFAR/UFBA

Grupo Ambientalista da Bahia – Gambá

InstitutoPACS – Políticas Alternativas para o Cone Sul

Iser Assessoria – ONG – Rio de Janeiro

Levante Popular da Juventude – LPJ

Licenciatura em Educação do Campo: Ciências Agrárias/UFRB
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB

Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST

Movimento Estadual dos Acampados, Assentados e Quilombolas da Bahia – CETA

Movimento Mulheres pela P@Z

Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM

Pastoral da Juventude do Meio Popular – PJMP – Diocese de Bom Jesus da Lapa

Pastoral da Juventude Rural – PJR

Pastoral do Meio Ambiente – PMA – Diocese de Bom Jesus da Lapa

Plataforma Operária e Camponesa de Energia

Programa de Pós- Graduação em Educação do Campo/UFRB, Mestrado Profissional em Educação do Campo

Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP

Sindicato dos Eletricitários da Bahia – Sinergia

Sindicato dos Engenheiros da Bahia – Senge

Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente no Estado da Bahia – SINDAE

Sindicato dos Petroleiros da Bahia – Sindipetro BA

Edição: Vanessa Martina Silva