O golpe que tirou do poder a ex-presidenta Dilma Rousseff completa um ano na próxima quinta-feira (31). Nessa data, em 2016, os senadores decidiram, por 61 votos favoráveis a 20 contrários, afastar definitivamente a petista do cargo, mesmo sem comprovar que ela tenha cometido crime de responsabilidade. “Eles inventaram um processo para me tirar do governo. E usaram uma maioria construída por compra de votos, que são os mesmos 267 que garantem a impunidade do presidente ilegítimo Temer”, afirma Dilma um ano depois, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.
Rousseff também comenta sobre a situação de perseguição política e jurídica ao ex-presidente Lula, sobre a proposta do governo golpista de privatização da Eletrobras e sobre a necessidade de lutar contra o golpe. “Todos nós vamos ter de ser capazes de nos dedicar a tentar tirar o Brasil dessa encruzilhada em que ele se encontra”, afirma. Confira a seguir ou ouça a versão de áudio aqui, que foi ao ar no Programa Brasil de Fato, em emissoras de São Paulo, Belo Horizonte e Recife.
Um ano após o processo de impeachment, como a senhora olha para tudo o que aconteceu?
Eu considero que o processo de impeachment foi um golpe porque não tinha crime de responsabilidade. Eles inventaram um processo para me tirar do governo. E usaram uma maioria construída por compra de votos, que são os mesmos 267 que garantem a impunidade do presidente ilegítimo Temer. É a mesma composição do Congresso, que foi construída pelo [ex-deputado] Eduardo Cunha e que me tirou através de um processo absolutamente sem base e sem fundamento, hoje reconhecido pelo mundo inteiro. A história foi bastante desagradável para os golpistas. Prendendo-os, deixando claro quem eram eles.
O golpe também esbarra nessa perseguição ao ex-presidente Lula?
Eu não acho que o golpe é um ato apenas. Meu impeachment é a primeira etapa do golpe, a segunda etapa está se mostrando bastante conservadora e muito reacionária, de um lado, e extremamente radicalizada de outro. Faz parte dessa segunda etapa tirar o Lula da eleição de 2018, criando factoides judiciários para ele. Todo esse absurdo processo do triplex, na qual o próprio juiz [Sérgio Moro] reconhece que os fundamentos da acusação não existem. Ele próprio, o juiz, faz acusações que não deveriam ser feitas. Esse segundo aspecto do golpe tem um lado que é a politização da Justiça. Quando um juiz diz: "olha, eu não li, mas acho que está correto" e fala fora dos autos... Aquela questão que é básica na democracia, que todos são iguais perante a lei, ela deixa de existir. Você cria uma justiça e usa a lei para destruir civilmente o que eles consideram como o alvo inimigo que tem que ser destruído.
O Congresso agora está propondo uma reforma política, com o “distritão”, e alguns partidos falam sobre parlamentarismo. Isso também está incluído nesse contexto de golpe?
Você tem uma terceira fase, que pode ser simultânea, que é essa proposta de parlamentarismo. Toda vez que as classes dominantes, os setores conservadores, se encontram em uma situação difícil, eles apelam para o parlamentarismo. Esse parlamentarismo, combinado com o “distritão”, tem por objetivo criar um sistema em que a força do dinheiro vai ser absolutamente dominante. Não é nem hegemônica, vai ser dominante. O objetivo é tirar a representação progressista, popular, de esquerda, de centro-esquerda, do mapa. O grande objetivo do golpe estratégico é esse. O tático imediato é impedir que a Lava Jato chegue a eles. Todos os oportunismos fisiológicos que eles são capazes. Agora, o grande objetivo era, como perderam quatro eleições seguidas, quatro eleições presidenciais, chegaram à conclusão que a democracia não lhes convinha. Eles não são democratas.
Qual seria uma reforma política ideal para o país, na sua opinião?
Vivemos em uma situação extremamente difícil. O Brasil tem 35 partidos. Você há de convir comigo que não existem 35 projetos para o Brasil. O que se vê e que explica uma parte do golpe foi uma ocorrência grave, que é logo após a Constituinte, e a Constituição Cidadã de 1988: se construiu no Brasil um centro democrático. No centro estava o velho MDB, com Ulysses [Guimarães] e outros, que eram progressistas, eram de centro-direita, ou centro-esquerda. A grande maioria deles não era excessivamente conservadora. Alguns até eram, mas olhavam o país, respeitavam o Brasil.
Esse centro democrático se perdeu nesses caminhos dos governos pós-1988. E chegou no período Lula e floresceu mais no meu, a construção de um centro que passou progressivamente a ter uma hegemonia de centro-direita. Essa hegemonia, que está expressa no grupo do Eduardo Cunha e no controle que ele tinha do chamado centrão, é extremamente grave. Porque nessa discussão sobre as formas que assumiu a coalizão presidencial, é fundamentalmente não por causa dessa coalizão, é porque o centro foi dominado, pode se dizer, por uma quase extrema direita. Extrema direita pelos métodos, pela concepção de mundo, pelas lutas civilizatórias as mulheres, contra os gays, contra LGBT, contra negros... Enfim, extremamente conservador do ponto de vista civilizatório, mas também econômico e social.
Você tem uma estrutura de regulação eleitoral que facilita também essa proliferação de partidos, porque não tem cláusula de barreira. Ao não ter cláusula de barreira, duas cláusulas democráticas - que é o fundo partidário e o acesso gratuito à televisão - passam a ser moeda de troca. Cria-se partidos que não têm compromisso com a questão de um partido, que é ter acesso ao governo, e esse partido passa a negociar tempo de televisão, comprando e vendendo, e passa a negociar também, o fundo partidário, a que ele tem acesso. Passa a ser um negócio. Então é necessária uma reforma, mas você não resolve a reforma política com “distritão” ou “distritão misto” etc. Você resolve mudando a cláusula de barreira e caracterizando e dando valor ao partido. Não há como você ter democracia sem partido.
Ainda nesse processo de golpe, e sobre o papel da mídia, qual sua opinião sobre a importância de uma lei de meios de comunicação para democratizar o acesso aos conteúdos e ter menos monopólio?
Sempre me perguntam sobre as minhas autocríticas. Eu tenho duas, grandes. Uma é não ter lutado mais por uma Lei de Meios. Outra é essa questão de ter isentado, na esperança de que os empresários investissem, e o que eles fizeram foi aumentar sua margem de lucro. Mas no caso da mídia, eu acho que tem uma característica que nós temos de estar atentos. Sempre que nós falamos em controle e regulação, nós estamos falando em regulação econômica da mídia. Nenhum de nós está falando que quer controlar o que eles falaram, censurar o que eles dizem, ou ter qualquer ato contra a liberdade de imprensa. O que nós queremos é que um grupo econômico não controle o rádio, a televisão, o canal pago, a televisão aberta, a internet, que tenha um grande espaço na internet, entre outras coisas mais. Nós não queremos o reino de um grande grupo com sua grande opinião tentando fazer a cabeça do Brasil. Isso tem de ser regulado sim. Eles sempre foram muito competentes para tentar dizer que o que nós queríamos era acabar com a liberdade de imprensa. Não. Eles é que não querem liberdade de imprensa. Eles é que acham que, através do controle que eles têm, monopolista, eles tentam ter uma opinião apenas. Nós somos a favor da pluralidade de opiniões, da diversidade de opiniões, do respeito à toda grande riqueza regional que esse país tem. É visível que nós vivemos em uma situação no Brasil gravíssima, antidemocrática por característica, que é a presença de um grande grupo e esse grande grupo é a [Rede] Globo, ele tenta conduzir a política do Brasil. Ele tenta fazer e desfazer e isso é muito grave, porque caracteriza uma coisa muito perigosa. que é o “grande irmão”. O “grande irmão” é Globo.
E sobre os ataques aos direitos dos trabalhadores que têm sido feitas por esse governo golpista?
O povo está cada dia mais sem a menor rede de proteção social, sem acesso a serviços básicos de educação e saúde e isso vai provocar, com o passar do tempo, tem por efeito secundário, a violência, uma quantidade enorme de moradores de rua, a fome, outra vez a gente volta para o mapa da fome, tínhamos saído em 2014. A violenta volta da desigualdade reduz os programas sociais, acabam com o Programa Minha Casa Minha Vida, vão acabando lentamente com o Mais Médicos, e vão produzindo a grande ambição que é o neoliberalismo. Como decorrência no plano internacional, o Brasil volta a se subordinar à esfera de influência dos países desenvolvidos, deixa de ter uma política autônoma, altiva, que respeite os demais países, mas também que se faz respeitar. Perde inclusive, a importância enquanto representante aqui na América Latina, do que há de mais democrático e mais pacífico.
Ainda no tema dos retrocessos, o governo golpista quer privatizar a Eletrobras. A partir da experiência que a senhora tem na área de energia, como avalia o impacto disso nos brasileiros?
É importante que as pessoas entendam porque esse é um setor que tem uma certa complexidade técnica e o governo e muitas pessoas usam disso para ocultar o que de fato estão fazendo. A Eletrobras é uma empresa que tem 47 usinas hidrelétricas. Muitas dessas usinas já têm mais de 30 anos, algumas já têm 60 anos. No Brasil tem uma lei que diz o seguinte: quando uma usina tem 30 anos ela já pagou. E quem pagou? O consumidor de energia na sua conta de luz. Quando ele paga a conta, ele está pagando algumas coisas de cada uma dessas usinas. Algumas delas foram pagas, inclusive, duas vezes, porque tem um período de 60 anos de pagamento.
Em 2012, nós reduzimos a tarifa de energia. Ninguém queria que se reduzisse. Queriam lucrar mais, um lucro além daquilo que está na lei. Então, nós reduzimos as tarifas de energia, sob protesto de algumas pessoas que queriam que tanto o setor privado quanto o público continuassem recebendo e a população não teria nunca acesso a essa parte que teria por direito, por uma questão de justiça, ser voltada para ela, retornada para ela.
Especialistas dizem que o valor é incoerente com a realidade do patrimônio da Eletrobras.
Você veja que está estapafúrdio isso. Eles vão vender por R$ 20 bilhões, porque eu acho que o esquema de privatização é assim: pegam algumas usinas, renovam o contrato de concessão delas, falam o seguinte: "tá tudo zerado”. Não tem essa de passar uma vantagem para o consumidor. O preço da usina é o preço da usina. Mas o mais grave também de tudo é o seguinte: quem garantiu desde a época do apagão do [ex-presidente] Fernando Henrique Cardoso e do racionamento, que foi 2000 para 2001? Uma parte dessa garantia foi dada pela Eletrobras. Eu te diria que a parte mais expressiva dela foi dada pelas usinas da Eletrobrás. Vai acontecer que eles só vão investir quando tiverem lucro significativo. Quando eles não tiverem lucro significativo eles não investem. Aí dá aquilo que deu na época do Fernando Henrique: falta de investimento. Eu acho que essa agenda é uma agenda perigosíssima porque ela compromete o futuro do Brasil. Ela tira os principais instrumentos de expansão do Brasil.
A gente já pode mensurar como isso vai chegar na conta dos brasileiros? Eu falei com o [Luiz] Pinguelli (ex-diretor da Eletrobras) também e ele disse que pode ser entre 8 e 10% no mínimo.
Eu não tenho esse cálculo, eu te digo, mas eu acho que o cálculo do Pinguelli como ponto de partida é um bom cálculo.
Pelo menos 8, 10% de aumento direto na conta?
Eu quero te dizer que eu acho pouco. Porque quando você olha o preço de uma usina individual, eu acho a seguinte equação: uns quase uns 70% para mais é investimento. Uns 30%, menos até, 20% é operação e manutenção. E isso vai para a tarifa. Não são todas as usinas que estão amortizadas já, mas é uma parte significativa que está amortizada. E isso pode resultar em algo como 8 a 9% mínimo, chegando a uns 15, 20%. É o que a gente espera. Agora, é gravíssimo também a falta de segurança. Eu quero ver quem é que vai investir na hora da precisão. Porque você não precisa, não dá pra ficar discutindo, quando o país volta a crescer a sua projeção de consumo de energia amplia.
Na sua opinião, qual a real motivação do governo golpista com essa medida? Eles dizem que é a cobertura do rombo de R$ 159 bilhões.
Não é só isso não. Eu acho que o governo golpista junta a fome com a vontade de comer, como diz o nosso povo. Eu acho que é da ideologia dele acreditar que o Estado tem de sair de todas as atividades, mesmo aquelas que são estratégicas para um país, como é o caso do fornecimento de energia elétrica. Ela é estratégica, porque desse fornecimento dependem todas as atividades econômicas e sociais desse país. Não funciona uma escola se não tiver luz elétrica, não funciona um posto de saúde, um hospital. Não funciona uma indústria, não funciona uma atividade agrícola. Então, eles são neoliberais. Um dos itens fundamentais do neoliberalismo é tirar o Estado de todas as atividades. E notadamente, na área de energia, porque, além disso, essa área é extremamente atraente. Esta, vamos dizer, é a grande fome neoliberal, acabar com a Eletrobras, fazer com que ela seja uma empresa privada, é algo que está no receituário que eles têm para o Brasil. Esse mesmo receituário vai querer chegar na Petrobras.
Essas medidas atacam a soberania nacional do país?
Uma coisa que é terrível é voltar numa região do mundo, em que por mais de 140 anos nós vivemos em paz, e ver que aceitaram a entrada de Exército dos Estados Unidos em operações na Amazônia. Isso é imperdoável. Não tenho nada contra os Estados Unidos, mas não tenho nada a favor que o Exército norte-americano vá para a Amazônia e em um quadro de crescente antagonismo na Venezuela. Acho de uma irresponsabilidade do governo brasileiro absurda. São irresponsáveis de deixar que haja ali um conflito, porque ali não é brincadeira. Ali dará guerra civil. Eles estão querendo aqui, transformar a América Latina numa zona de conflito. E esse governo ilegítimo do Temer é irresponsável de aderir a isso.
Um ano após o golpe, como está sua rotina? A senhora tem pensado em disputar novos cargos eletivos?
Minha rotina hoje é mais leve. Óbvio, porque a minha rotina era mais pesada antes, quando eu era presidenta. Faço esporte, tento me acondicionar fisicamente. Acho que as pessoas têm que fazer isso porque é uma questão de você envelhecer com qualidade. Eu, como estou entrando nos 70, quero ser capaz de andar quando tiver 80. Além disso, eu leio, estudo, participo de debates e atuo em atividades culturais. Eu tenho uma vida bem diversificada. Mas ainda não, não estou pensando nisso [candidatura] ainda não. Não que eu descarte integralmente isso, mas agora não estou avaliando essa possibilidade.
A gente está vivendo um momento de muita desesperança no país. Qual mensagem você deixa ao povo brasileiro?
Eu acho que o povo brasileiro sempre foi capaz, nas mais difíceis situações, de meio que digerir essas forças que queriam na verdade ou submetê-lo ou oprimi-lo, ou tirá-lo da decisão. Ele sempre foi lúcido o suficiente. Eu acredito que o povo brasileiro, é um povo que tem fé e muita esperança. Nós vamos ter também de lutar, lutar é importante. Eu acho que lutar fortalece, dá brio, dá garra para as pessoas. Todos nós vamos ter de ser capazes de nos dedicar a tentar tirar o Brasil dessa encruzilhada em que ele se encontra.
Edição: Luiz Felipe Albuquerque