O desmonte da Funai não para. Na última semana, Michel Temer assinou novo decreto extinguindo 87 cargos comissionados, enfraquecendo a capacidade da instituição de analisar, fiscalizar e monitorar ação de grandes empresas em terras indígenas, especialmente na Amazônia. A bancada ruralista, aliada do presidente e do ministro da Justiça Osmar Serraglio (PMDB-PR), agradece – assim como grandes empreiteiras, mineradoras e outros tantos interessados nas riquezas da região.
Os cortes anunciados pelo governo federal atingem especialmente a Coordenação Geral de Licenciamento (CGLIC) e as Coordenações Técnicas Regionais (CTLs), áreas estratégicas que são responsáveis por analisar grandes empreendimentos em terras indígenas, cuidar do licenciamento, as contrapartidas e fazer o trabalho de receber e levar demandas ao poder público.
Os cortes atingem, por exemplo, servidores responsáveis por fiscalizar obras chave como hidrelétricas na Bacia do Tapajós, a linha de transmissão entre Manaus e Boa Vista, a mina da Belo Sun (PA) e várias rodovias no Mato Grosso, como a MT-242 e BR-158. Agora, a CGLIC tem dez técnicos para analisar cerca de três mil processos de licenciamento: 300 para cada trabalhador.
O decreto que mutilou a Funai passou por cima de negociação costurada há meses, segundo conseguimos apurar com fontes na instituição. E tem o claro objetivo de acelerar o licenciamento de obras que estão dentro de terras indígenas. Com isso, a Coordenação Geral de Licenciamento (CGLIC) vê, na prática, sua função se tornar figurativa.
O corte geral chega a quase 20% do corpo técnico da Funai e as coordenações citadas, estratégicas, foram reduzidas pela metade. Mais: já existiria um projeto de lei na Casa Civil de revisão geral do licenciamento, pronto para ser apresentado ao Congresso Nacional, que retiraria da Funai a responsabilidade pelo licenciamento de obras. Nada que surpreenda entidades representativas como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e os próprios servidores da instituição.
Para Dinamam Tuxá, membro da Coordenação Executiva da APIB, tudo que já se esperava está acontecendo: desmonte da Funai com a posse de um presidente – Antônio Fernandes Toninho Costa – que serve apenas como massa de manobra, perda de direitos dos povos indígenas, liberação mais rápida e inescrupulosa de licenciamentos, demarcações de terras emperradas e enfraquecimento do trabalho de base.
“Isso é tudo o que a gente temia. Porque os cargos que estão sendo extintos são exatamente o do braço da Funai (CGLIC) que trabalha ‘in loco’ nos territórios, fazendo um mapeamento das demandas, e é a ponte com o poder público e a sociedade. Com a ausência dele dentro do órgão, além do seu papel fiscalizador, agora as atrocidades serão cometidas sem nenhum braço do Estado”, afirma Tuxá.
A opinião de Dinamam é compartilhada por Cléber Buzatto, secretário executivo do CIMI. “Os cortes são um inequívoco demonstrativo da opção do governo Temer por desconstruir instrumentos do estado brasileiro que tem responsabilidade em responder as demandas dos povos originários do Brasil. É uma decisão que se associa a outras desse governo que favorecem os inimigos dos povos indígenas de modo especial vinculados ao agronegócio e a bancada ruralista”, diz Buzatto.
Um estudo do Inesc já mostrava que a Funai trabalha atualmente com apenas 36% da sua capacidade. São cerca de 2,1 mil funcionários efetivos (contra mais de 3 mil em 2012), quando o número total de cargos autorizados pelo Ministério do Planejamento é de quase seis mil. Pelo menos desde a década passada já se sabe, na Funai, da necessidade de se contratar mais de 3 mil servidores. No entanto, dos dois concursos públicos realizados nos últimos anos, nem sequer 400 servidores foram chamados. Enquanto isso, estima-se que 250 deles já se aposentaram, e outros 250 devem se aposentar até 2019.
Em nota, a Funai disse que “buscará o apoio do governo federal para que as ações da instituição não sejam paralisadas e o trabalho continue sendo realizado com eficiência em todas as coordenações regionais brasileiras”. Culpando a crise econômica, e dizendo que “se adaptará a esta nova realidade”, a nota diz ainda que a Funai “buscará alternativas” com o governo e Ministério da Justiça para “não prejudicar a instituição e as 305 etnias existentes no Brasil”. Algo que soa como mero discurso protocolar que não encontra respaldo na realidade.
Além da constante queda do número de funcionários, o orçamento da Funai vem sendo progressivamente destruído. O valor autorizado em 2017 é praticamente o mesmo de 2007 em termos reais.
“O orçamento da Funai é mais uma evidência não só do descompromisso do governo com os direitos indígenas, mas da estratégia deliberada de acabar com sua capacidade de implementar a política indigenista. Uma Funai estruturada, claramente, vai contra os interesses do agronegócio, das mineradoras, das empreiteiras, que estão, mais do que nunca, muito bem representados no governo”, afirma Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc.
Para Tuxá, da APIB, o decreto sucateia e enfraquece a política indigenista como um todo, e dá margem para o avanço do agronegócio. “É possível, por exemplo, que os indígenas não tenham mais acesso ao Bolsa Família e ao salário maternidade, porque quem fazia essa ponte era os servidores das CTLs. Há um cerceamento do acesso às políticas públicas e uma violação dos direitos humanos e constitucionais (saúde, educação, território). Esse decreto é um pacote de maldades que o presidente com a sua equipe vem de maneira maliciosa e desumana atacando os direitos dos povos indígenas no Brasil”, alerta. As ações presenciais de fiscalização dos territórios indígenas, cerca de 13% do território nacional, caíram mais de 60% de acordo com o último relatório da FUNAI: foram 227 ações de fiscalização em 2011 e 92 em 2014. O que levou os próprios indígenas a assumirem a proteção das terras.
O CIMI afirma que, além da desarticulação e desestruturação de unidades locais do órgão indigenista, o decreto pode fragilizar também a defesa do direito dos povos indígenas inclusive no âmbito de disputas judiciais. “Uma vez que as informações colhidas por servidores na ponta são utilizadas na defesa dos povos indígenas em processos judiciais impetrados contra as comunidades”, lembra Buzatto. Para o secretário do CIMI, a fragilização do acompanhamento das grandes obras, associada a outras medidas que o governo quer aprovar, “significarão o total desrespeito aos direitos indígenas nessas obras, especialmente o direito à consulta livre, prévia e informada”, diz.
Para Marcela Vecchione, pesquisadora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), outra questão grave do decreto é a mudança de nomeação de DAS (Direção e Assessoramento Superior) para Funções Comissionadas do Poder Executivo (FCPE), o que facilita nomeações políticas indicadas diretamente pelo ministro da Justiça, por exemplo.
“Se passa o projeto de lei de mineração em terras indígenas, que já é uma catástrofe por si só, com uma coordenadoria de licenciamento enfraquecida será pior ainda. Junte-se a isso o projeto de estrangeirização de terras, a especulação agropecuária, os empreendimentos de monocultivo, que precisam de licenciamento também… tudo isso será devastador no geral e para a Amazônia”, afirma. Para Vecchione, o decreto faz parte de uma estratégia bem pensada de desmonte que faz com que a PEC 215 não seja necessária porque, na prática, já está sendo implantada.
No início de 2016, os servidores da Funai já denunciavam em carta aberta que “a demarcação de Terras Indígenas e o componente indígena no licenciamento ambiental estão sendo criminalizados pelas forças econômicas que sobrepõem seus lucros privados aos direitos constitucionais de todos os brasileiros. Técnicos da Funai vêm sofrendo processos judiciais por emitirem pareceres, sendo intimados a depor em Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) por delimitarem terras. Gestores públicos são chantageados por políticos para endossarem obras que não cumprem as condicionantes legalmente estabelecidas. A perseguição de servidores no cumprimento do seu dever fere as funções do Estado Democrático de Direito, substituindo o respeito aos direitos indígenas por interesses patrimonialistas escusos que, infelizmente, ainda perduram em figuras poderosas do nosso sistema político”.
No fim de 2016, um memorando interno enviado pela diretoria administrativa da Funai ao Ministério da Justiça também alertava sobre impactos em todas as áreas, como a redução de 43% nas ações de fiscalização e combate a invasões de terras indígenas e o encerramento das atividades de 6 das 12 “frentes etnoambientais”. Esses grupos são encarregados da proteção de índios isolados ou de recente contato em regiões de difícil acesso, onde um surto de doença ou a ação de invasores pode provocar mortes em curto espaço de tempo, uma das missões mais sensíveis na questão indígena.
Funcionários da FUNAI reiteram que este processo é longo e conhecido, citando um texto-chave de 1999: “O Lumpen-Indigenismo do Estado Brasileiro”, de Jorge Pozzobon, que já dizia que “o estado de ineficácia e anomia no qual se encontra a Fundação é uma prova eloquente do papel secundário reservado à questão indígena pelos poderes constituídos”
Mais que uma ameaça concreta, uma realidade que já se impõe cada vez mais aos povos originários do Brasil.
*Publicado originalmente no INESC.
Edição: Inesc