Professor universitário e integrante do Conselho Nacional do Ministério Público entre 2009 e 2015, o jurista Luiz Moreira considera que a Lava Jato instaurou uma disputa por protagonismo no Brasil e, por isso mesmo, pretende criminalizar o sistema político.
Às vésperas do primeiro encontro entre o ex-presidente Lula e o juiz Sérgio Moro, em Curitiba, ele analisa a nova fase da disputa por protagonismo no âmbito da operação.
Confira os melhores momentos da entrevista concedida ao Brasil de Fato Paraná:
Brasil de Fato – O senhor costuma afirmar, em entrevistas, que a Lava Jato migrou da seara jurídica e passou a atuar politicamente. Quando, precisamente, houve essa mudança?
Luiz Moreira – É difícil estabelecer uma análise nesse sentido, porque nós não conseguimos vislumbrar o que eles imaginavam no início da operação. Nós só podemos analisar os fenômenos. E, do ponto de vista do Direito e da política, o que é possível dizer que a Lava Jato sempre optou por uma forte vinculação com a mídia. Então, ela sempre se orientou pelos holofotes – e sempre precisou deles – para justificar, pela opinião pública, as medidas tomadas no âmbito jurídico. E isso denota, de alguma forma, desde o início, uma atuação política, que se tornou mais evidente ao longo do tempo.
Embora o juiz Sérgio Moro tenha, em alguns momentos, efetuado medidas técnicas, ele sempre pautou sua atuação pela política. E é por isso que o Lula, no depoimento ao Moro, deve também politizar sua defesa.
O ex-presidente Lula costuma dizer que é perseguido pela força-tarefa da operação Lava Jato. Essa perseguição existe, de fato?
A atuação da Lava Jato ante o presidente Lula, especialmente, dialoga muito com a opinião pública. O que está em jogo é uma disputa por protagonismo político. A Lava Jato se fortaleceu e se utilizou das prisões – e da divulgação dessas prisões – para se legitimar. Praticamente, todas as prisões e conduções coercitivas se valeram da mídia para reafirmar a ideia de que a operação visa eliminar a corrupção.
A estratégia foi muito clara. Primeiro, prende um doleiro: [Alberto] Youssef. Depois, prende um tesoureiro de partido: [João] Vaccari [Neto]. Depois, o presidente de uma empreiteira: Marcelo Odebrecht. Não são simples prisões, mas prisões com forte conotação política, para mostrar que a corrupção estava em todas as esferas e ganhar, assim, a simpatia popular e se legitimar. Como se o Ministério Público e o Judiciário fossem poder políticos, majoritários, e precisassem do apoio popular para implementar suas ações. Mas o Direito é contra majoritário: ele não depende da autorização pública para fazer valer a lei. Aliás, é normal que o cumprimento da lei confronte a opinião pública. O doleiro, o tesoureiro de partido, o dono da empreiteira: são figuras a que o senso comum atribui práticas de corrupção. Ao prendê-los, a Lava Jato sai do anonimato e convoca a sociedade a se mover contra seus “inimigos”.
O Lula é a maior figura política do país, hoje. Foi o presidente com o maior índice de aprovação, cerca de 88%, e elegeu uma sucessora. À medida que a Lava Jato disputa a opinião pública, ela passa a interferir na formação da opinião e na vontade dos cidadãos, e entra na disputa por protagonismo. Ou seja, se derrotar o Lula, a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Justiça Federal se convertem nas grandes instituições políticas da República.
Uma das principais críticas à operação Lava Jato é a seletividade partidária. A Lista de Fachin, divulgada na semana passada, resultou na abertura de inquéritos contra 201 empresários e políticos de vários partidos. Isso não enfraquece o argumento da seletividade?
É um equívoco imaginar que a Lava Jato é seletiva e pretende criminalizar apenas o PT. A Lava Jato pretende criminalizar o sistema político como um todo. O adversário é a política. Momentaneamente, é o PT. E a Lava Jato atinge o Lula porque ele é o líder mais popular do Brasil. Derrotá-lo, hoje, significa derrotar a política.
Então, o PT é o adversário momentâneo. E está claro que a Lava Jato deixou de ser uma manifestação jurídica e se tornou política. Semana passada, em uma conferência no parlamento italiano, o Luigi Ferrajoli – maior jurista italiano vivo – fez uma acusação duríssima ao Moro. Ele disse que “ao Moro interessa ganhar”. Segundo Luigi Ferrajoli, Moro não participa do processo como juiz imparcial, nem como alguém que verifica a existência de provas. Se o Ferrajoli está correto, e ao Moro interessa apenas ganhar, a determinação de que o ex-presidente Lula deveria estar presente na oitiva de todas as testemunhas de defesa significa o Lula deixa de ser réu e passa a ser entendido como partícipe de um debate eleitoral, tendo como adversário nesse debate o juiz Moro e tudo o que ele representa.
Moro pretende instaurar um debate na sociedade para decidir se Lula é ou não inocente, e está convidando o ex-presidente para uma espécie de “debate eleitoral”. E é por isso que o Lula deve aceitar o convite do juiz e enfrentá-lo em uma disputa político-partidária. O Moro quer “ir para o palanque”, e o Lula não vai negar o convite, porque esse é o terreno dele. Só que o Moro é juiz, então teria que se exonerar da função. Ele não pode se blindar das garantias do Judiciário para agir politicamente.
Em meio a essa disputa por protagonismo, a Lava Jato conseguiu comprovar que Lula cometeu algum crime? Quais devem ser os próximos passos da operação, nesse sentido?
O que nós temos hoje são apenas delações. E não se trata de expressões desinteressadas de cidadãos cumpridores dos seus deveres, que estariam “colaborando com a Justiça”. Trata-se de pessoas que reconhecidamente cometeram crimes e que procuram se beneficiar com a delação. No caso do Marcelo Odebrecht, ele esteve mais de um ano preso. E não há voluntariedade na prisão. Um dos requisitos da delação é que a pessoa espontaneamente procure o Ministério Público para trazer informações e, com isso, demonstrar que se arrependeu do crime cometido. E não é disso que se trata, nem no caso do Marcelo nem do Emilio Odebrecht. Eles têm dois propósitos: salvar a empreiteira e reduzir a pena. Não é possível que se atribua valor a essas delações.
Do ponto de vista jurídico, o Lula é inocente. Rigorosamente, não há crime. A Lava Jato não demonstrou, até hoje, nada contra ele. Mas, como as acusações contra o Lula são recorrentes e se repetem, com apoio da mídia, a Lava Jato espera dar a sensação de que o ex-presidente é culpado e tenta destruir sua imagem pública. Mas, até hoje, rigorosamente não há crime.
A estratégia não é demonstrar a existência de provas, mas transformar o processo na própria pena. A pena do Lula, uma vez que não há prova de nenhum crime, é justamente responder ao processo. E esse processo não vai terminar tão cedo. Ele é alimentado por vazamentos, boatos, e por uma repercussão midiática, necessariamente, para que o nome dele esteja todos os dias nos jornais associado a condutas criminosas. Qual é a acusação contra o Lula? Todas, e nenhuma. Por isso é tão difícil e complexo se defender nesse processo.
Edição: Ednubia Ghisi