Abordagens repressivas e a indução à abstinência como um pré-requisito de participação são os principais erros cometidos na elaboração de políticas públicas para usuários de drogas em situação de rua. A conclusão é do relatório Crack: Reduzir Danos produzido pela Open Society Foundations (OSF), lançado nesta terça-feira (31), em São Paulo (SP).
A organização sem fins-lucrativos listou três importantes iniciativas brasileiras para tratamento dos usuários, que tiveram foco em uma agenda positiva, em diferentes períodos de 2015. O relatório apresenta as ações do programa Aproximação, realizado pela ONG Redes da Maré, no Rio de Janeiro, Programa de Braços Abertos, da Prefeitura de São Paulo, e do ATITUDE, do Governo do Estado de Pernambuco.
Em comum, as três iniciativas são pautadas pela não-violência e pelos direitos humanos. A análise dos projetos resultou no levantamento de 7 lições aprendidas para o tratamento dos usuários.
Repercussão
Para Pedro Abramovay, diretor para América Latina da OSF, as experiências brasileiras analisadas são “ousadas” e “eficientes”. Ele enfatiza, principalmente, a estratégia da concessão de moradias sem a cobrança de exames antidoping. “Essas lições têm que pautar o debate sobre drogas, que passava pela ideia de que não havia solução e que teríamos que enjaular essas pessoas. Não é verdade”, declarou.
Nathália Oliveira, coordenadora da Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas (INNPD) e do Coletivo É de Lei, pontua que o êxito do relatório é a tentativa de popularizar a discussão sobre a redução de danos, ainda restrita à academia e a especialistas, em um documento de linguagem simples e fácil.
Para ela, os projetos analisados convergem para uma quebra de paradigma. “Esses programas não impõem um método, mas justamente mostram que há várias maneiras [de se implementar políticas públicas], desde que pratiquem a garantia de direitos, respeitem os sujeitos e não sejam dentro de uma lógica de oferecer mais violência e encarceramento para pessoas que usam drogas”, disse.
Já o médico cancerologista Drauzio Varella frisou a origem social da formação dos espaços de consumo de crack a céu aberto, conhecidas por “cracolândias”. “Quando vemos aquelas pessoas jogadas na rua, a impressão que temos é que foi o crack que provocou aquilo, quando ele é o fim da linha para pessoas que viveram em condições extremamente desfavoráveis e que acabaram entrando por esse caminho”, declarou.
Varella afirma que os resultados positivos dos programas de tratamento devem ser relativizados e flexíveis, já que o menor tempo de exposição [ao crack], ainda que pequeno, já é uma “vitória”.
Ele disse apoiar internações se necessárias para o quadro clínico do beneficiário e apenas se forem articuladas com diversos setores do poder público. “O que fazemos é uma hipocrisia. A gente não interna, mas prende (…) É um longo processo de recuperação e temos que se acostumar com o fracasso porque os programas dão certo até certo ponto”, disse.
Guerra às drogas
A canadense Liz Evans, diretora executiva dos programas de redução de danos para usuários de drogas injetáveis, compartilhou os resultados semelhantes com dos New York Harm Reduction Educators – NYHRE e o Washington Heights CORNER Project, com foco na moradia, doação de seringas esterilizadas e projetos odontológicos com os beneficiários.
Segundo ela, a guerra às drogas, centrada no ódio ao usuário, no racismo e na criminalização da pobreza, é responsável por criar falsas narrativas hegemônicas sobre vício e evita a implementação de políticas públicas criativas e estruturais pelo mundo.
“Nós estamos incrivelmente inclinados a acreditar que as pessoas que usam drogas são criminosas, paramos de olhar os usuários como seres humanos, e isso nos impede de criar soluções”, declarou.
Para Nathália Oliveira, a lógica de guerra às drogas ainda é hegemônica no país e o endurecimento da legislação com a Nova Lei de Drogas, de 2006, vitimizou usuários e pequenos traficantes. O texto, que prometia amenizar o punitivismo estatal aos usuários, intensificou número de prisões. Pela atual legislação, é o juiz quem define quem será considerado “usuário de drogas” ou “traficante”, dependendo da quantidade apreendida, antecedentes criminais e outras condições no momento da detenção.
Na mesma linha, Abramovay afirma o impacto da mentalidade proibicionista para as políticas é “gigante”. “É uma ideologia tão profunda que impede que as pessoas enxerguem que, de fato, há outras soluções e elas vão lutando para reproduzir esta lógica de guerra às drogas, em que as pessoas mais vulneráveis e mais pobres são as que mais sofrem em consequência desses conflitos”, finalizou.
De Braços Abertos
Na capital paulista, o De Braços Abertos, programa da gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT) e um dos programas analisados pela Open Society Foundations, será substituído pelo programa Redenção.
Depois da posse, o prefeito João Doria (PSDB) afirmou que apostaria na internação obrigatória como parte de um modelo de tratamento focado na abstinência, o que se opõe ao projeto baseado na redução de danos.
Nathália demonstrou preocupação com o acúmulo construído pelo projeto, ainda que existam imperfeições, como a necessidade de ampliar o público atendido e a expansão de um modelo de cuidado para outros territórios da cidade.
“Há 27 anos temos a narrativa que São Paulo tem a maior cracolândia e que lá é um lugar que não tem jeito. O programa [De Braços Abertos] cumpre simbolicamente o papel de dizer que é possível testar novas experiências e fazer de outro jeito”, disse.
Já Abramovay ponderou que ainda é cedo medir impactos do programa da gestão tucana. “Deve-se fazer uma grande pressão para que os aprendizados sejam incorporados em qualquer novo programa que seja colocado pela Prefeitura”, finalizou.
As ações do programa do prefeito João Doria devem se iniciar apenas em abril.
Edição: Juliana Gonçalves
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