Violência no campo

Feridos no massacre em Quedas do Iguaçu (PR) são tratados como réus

ONU recebe denúncia de irregularidades na investigação do assassinato de dois trabalhadores rurais sem-terra

Quedas do Iguaçu (PR) |
Caminhonete utilizada por integrantes do MST, baleada pela PM na quinta-feira (7)
Caminhonete utilizada por integrantes do MST, baleada pela PM na quinta-feira (7) - Júlio Carignano

Dois trabalhadores rurais mortos, Vilmar Bordim e Leonir Orback, e sete feridos por Policiais Militares, agentes de grupos especiais da PM e seguranças privados da empresa Araupel. Entre os ferimentos das vítimas, tiros pelas costas. Apenas os próprios atiradores tiveram acesso à cena do crime durante cerca de duas horas após o ocorrido. Dois feridos têm mandado de prisão expedido. Estes são alguns dos fatores que levaram a entidade Terra de Direitos a denunciar para a Organização das Nações Unidas - ONU, nesta quarta-feira (13), a investigação do massacre ocorrido contra certa de 30 integrantes do acampamento Dom Tomás Balduíno, em Quedas do Iguaçu (PR), no dia 7 de abril. O documento pede que se transmita ao governo brasileiro o pedido de investigações imparciais e medidas para evitar novas violações.

Após reclamações dos advogados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST e da Terra de Direitos a órgãos estaduais e federais, a Procuradoria Geral de Justiça orientou que o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado - GAECO entrasse no caso. Para o procurador de justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto, coordenador do Centro de Apoio às Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos, a colaboração do GAECO aos promotores de justiça da comarca é "o emblema de uma investigação absolutamente isenta".

O coordenador da Terra de Direitos, Darci Frigo, foi enviado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos a Quedas do Iguaçu para levantar informações e apurar possíveis violações de direitos entorno das investigações. Entre os dias 8 e 9 de abril, Frigo conversou com testemunhas do ocorrido e constatou a existência de uma versão oposta à divulgada pela Secretaria de Segurança Pública do Paraná, em que a PM aparece como vítima de emboscada por parte dos sem-terra.

Para o advogado, o tipo de ferimento de parte das vítimas, atingidas pelas costas, coloca em cheque a versão da PM de que as mortes e ferimentos ocorreram em legítima defesa. Os registros da própria PM apontam o uso de 128 balas durante a operação. "É um número descomunal, num conflito em que não há nenhum policial ferido", aponta. Segundo os advogados do MST, pelo menos três feridos e um dos mortos tiveram ferimentos pelas costas. O laudo do Instituto Médico Legal ainda não foi divulgado.

Outro problema apontado pelo coordenador da Terra de Direitos é a destruição da cena do crime, uma vez que os corpos das duas vítimas fatais foram movidos do local da morte e levados para a delegacia pela própria Polícia Militar, quando deveriam ter sido retiradas pelo Instituto Médico Legal. A perícia da Polícia Civil ocorreu somente após 24h, quando a caminhonete usada pelos integrantes do MST no momento dos fatos, alvejada com cerca de 30 tiros, foi levada pela corporação. Da mesma forma, Frigo questiona o não atendimento imediato dos feridos.

Prisões preventivas

Entre os integrantes do MST feridos pela Polícia Militar, dois tiveram prisões preventivas decretadas enquanto estavam hospitalizados. Um deles, Henrique Gustavo Souza Pratti, precisou ser submetido a uma cirurgia na perna em decorrência de fratura exposta provocada por um disparo de arma de fogo. Nesta terça-feira (12), assim que obteve alta do Hospital Universitário de Cascavel, Pratti foi encaminhado à carceragem da 15º S. Delegacia de Polícia de Cascavel. Não há condições estruturais de atendimento às recomendações médicas para recuperação, conforme afirmação do delegado de polícia Adriano Chohfi. Após pedido dos advogados do MST, a juíza Paula Magalhães concedeu prisão domiciliar.

Pratti prestou depoimento na tarde desta quarta-feira à Polícia Civil, durante duas horas, e garantiu que os disparos partiram da Polícia Militar. "Henrique revelou em detalhes a verdade dos fatos. A PM efetuou o primeiro disparo e mais de uma centena deles em seguida, sem revide, além de alterar a cena do crime para obstar com as investigações", afirma Claudemar Aparecido de Oliveira, advogado do MST que atua na defesa dos dois feridos. 

A versão apresentada por Pratti contraria o depoimento dado por Pedro Francelino no dia seguinte ao crime. Francelino foi interrogado pela delegada Anna Karyne Turbay Palodetto quando ainda estava UTI do Hospital São Lucas, em Cascavel. No mesmo dia, a delegada cedeu a gravação do interrogatório a meios de comunicação. Neste depoimento, Francelino afirma que o primeiro disparo partiu de um integrante do MST que desceu do ônibus, veículo que estava no final do comboio formado pelos acampados no dia do crime. O autor do disparo, segundo Francelino, teria sido uma das pessoas assassinadas. A contradição está no fato de que as duas pessoas mortas estavam na caminhonete, posicionada na frente do Ônibus.

Oliveira afirma que Francelino teve seu direito de consulta reservada ao advogado negado, de forma "repetida, ilícita e arbitrária", pela delegada. O advogado classifica o interrogatório como ilegal por violar a plenitude da defesa e o Artigo 7º, inciso III, do Estatuto da Advocacia. Segundo Oliveira, Francelino é vigiado 24 horas ininterruptas por dois policiais militares, portanto, ainda não foi garantido o direito de conversa privada com o advogo. O agricultor chegou a ser algemado, mesmo estando internado na UTI, impossibilitado de andar.

Na avaliação do representante do Conselho Nacional de Direitos Humanos, as vítimas estão sendo transformadas em réus no processo de investigação. "Na verdade, quem deveria estar sendo investigado são os policiais militares que mataram os trabalhadores". 

Apreensão ilegal

O advogado questiona a falta de objetos no Auto de Exibição e Apreensão, expedido pela Polícia Civil na quinta-feira (7). Conforme reclamação do trabalhador que foi abordado pela Polícia no dia do crime, os agentes levaram o seu celular, o capacete e a chave da motocicleta que pilotava. "Está ilegal, uma vez que os objetos não constam como apreendidos", garante Oliveira.

Constam como apreendidas duas armas de uso permitido, ambas com pentes de munição intactos. O MST nega o uso de armas de fogo pelos militantes. O fato de as duas armas não terem sido utilizadas confronta a tese da Polícia Militar e da Polícia Civil de que o primeiro tiro partiu dos trabalhadores. Até o momento, não há anúncio de apreensão de mais armas.

Ameaçados

Segundo Sotto Maior Neto, além da investigação da morte e do ferimento dos trabalhadores sem-terra, o GAECO vai apurar as ameaças sofridas por integrantes do MST. Antonio Miranda, Rudmar Moeses, Fabiana Braga, Tiago Ferreira e Cláudio Braga são os cinco militantes que têm recebido intimidações diretas, através de ligações anônimas e via redes sociais, em especial por meio de páginas do facebook em apoio à madeireira Araupel. No sábado (9), durante o ato contra a violência no campo, realizado pelo MST, no centro de Quedas do Iguaçu, um dos trabalhadores recebeu ligação anônima com novas ameaças.

O papel dos atores envolvidos neste contexto, especialmente dos agentes do Poder Público, é buscar uma superação pacífica desse conflito, e "não fazer nenhum tipo de instigação à violência, que é exatamente o contrário do que se pretende fazer", garante o procurador.

 

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