ENTREVISTA

'Não podemos deixar que o rio de 25 de Abril se perca do seu leito', diz advogada que viveu Revolução dos Cravos

Nos 50 anos da derrota da ditadura salazarista, a advogada diz que a data deve trazer a memória de um passado de horror

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
A advogada Marilinda Fernandes é natural de Lisboa e viveu a Revolução dos Cravos, mas já está há 40 anos no Brasil - Foto: Alexandre Garcia

Nas primeiras horas do dia 25 de abril de 1974 forças armadas progressistas derrubaram a ditadura salazarista que governou Portugal por mais de quatro décadas. O movimento conhecido como Revolução dos Cravos não apenas instituiu a democracia no país, mas também levou à independência de ex-colônias na África - cujas lutas de independência foram cruciais para que ela ocorresse - e deu esperança para povos que ainda ansiavam por liberdade, como o nosso. O Brasil de Fato preparou algumas reportagens para contar a história e marcar o aniversário de 50 anos da Revolução dos Cravos. Clique aqui para acessá-las.

 

Com 40 anos de Brasil completados neste ano de 2024, a advogada Marilinda Fernandes tem mais tempo na sua nova pátria do que no Portugal onde nasceu. Natural de Lisboa, tornou-se cidadã honorária de Porto Alegre. Militante política desde o curso de Direito realizado em Coimbra, Marilinda viveu a Revolução dos Cravos, que está fechando seu cinquentenário nesta semana.

Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato RS, ela conta como viu o fim da ditadura salazarista e o começo de uma grande esperança. Conta também como Portugal, com 37% da população analfabeta, era antes do levante que derrubou o então líder do regime, Marcelo Caetano, logo acolhido pelos generais brasileiros. Transita pela ameaça da extrema direita, a alienação das novas gerações, a ascensão do partido Chega. Mas exalta a marca perene do 25 de Abril, visível na força para enfrentar as adversidades. “A gente da esquerda tem essa capacidade de nunca entregar os pontos”, orgulha-se.

Confira: 

Brasil de Fato RS - Quero começar ouvindo um pouco da tua história. 

Marilinda Fernandes - Sou Marilinda da Conceição Marques Fernandes. Estou no Brasil desde fevereiro de 1984, portanto estou fazendo 40 anos aqui. Tive a honra de ser condecorada com o título de cidadã honorária desta cidade, o que muito me honra. Nasci em Lisboa. Estudei no liceu de Oeiras e depois fui para Coimbra fazer Direito. Nessa altura, 1973, o movimento estudantil já estava mais ou menos organizado. Havia bastante resistência. Era muito difícil o nosso trabalho de militância. A PIDE (serviço secreto da ditadura salazarista) era muito presente.

Vivíamos tempos de organização, mas muito difícil. Muitas vezes tínhamos que abortar as reuniões, porque havia muitos infiltrados no movimento estudantil. Comecei a militar no movimento estudantil ainda em Oeiras e, em Coimbra, prossegui. Naquela altura, por incrível que pareça, eu era marxista, leninista, maoísta. E, portanto, tínhamos a nossa organização. Mas fomos surpreendidos no 25 de Abril com a Revolução. Surpreendeu a todos. Porque foi, essencialmente, um movimento dos militares, dos oficiais e dos capitães.

A sociedade civil vem a ser chamada depois daquela noite fantástica do 25 de Abril por parte dos capitães. Dos nossos líderes que estavam fora, que eram naquele momento o Álvaro Cunhal, do Partido Comunista, o Mário Soares, do Partido Socialista, e tínhamos o Sá Carneiro, do Partido Social-Democrata. E dos cristãos católicos, o Diogo Freitas do Amaral. Esses quatro foram chamados para compor ato contínuo. Logo que eles se declararam vencedores, Marcelo Caetano (último presidente do conselho do regime ditatorial) se rendeu. Conseguiram que Marcelo embarcasse para o Brasil, muito bem recebido pelos nossos generais, e nesse momento, eles (os capitães de Abril) começam imediatamente a chamar a sociedade civil para se incorporar e para que fizesse a transição entre o regime fascista e a democracia. 


"Fomos surpreendidos no 25 de Abril com a Revolução. Surpreendeu a todos. Porque foi, essencialmente, um movimento dos militares, dos oficiais e dos capitães" / Foto: Alexandre Garcia

BdF RS - Antes de a gente entrar propriamente na revolução, tu nasceste já na ditadura.

Marilinda - Nasci na ditadura em 1954. 

Em 1974, Portugal tinha 70 mil universitários e 37% da população do país era analfabeta

BdF RS - E como era viver na ditadura em Portugal? 

Marilinda - Eu vivia numa cidade que se chama Oeiras, essencialmente na linha de Estoril, onde a elite se situava. Meu pai era o primeiro cabo da GNR, que seria, por exemplo, semelhante à vossa PM aqui, e assim as diferenças de classe não eram tão nítidas. A burguesia não era tão ostensiva na sua riqueza. Nós, os melhores alunos, entravam no liceu, os filhos dos operários e as pessoas mais carentes entravam no ensino técnico e aí já era feita a divisão. Então, os que entravam no liceu iam para a universidade e iam ser doutores. Chegamos em 1974 com uma população de 70 mil estudantes no ensino universitário, que não é nada, com 37% de analfabetos.

Eu notava essencialmente a miséria em Portugal quando eu ia para a minha aldeia no Norte, onde meu pai nasceu. Nessas aldeias do Norte, a minha chama-se Vila Chã e fica no concelho de Ponte de Lima, acima do Porto, as crianças não tinham sapatos, andavam descalças, os homens tinham que emigrar para a França, os rapazes que não queriam ir para a tropa (exército) tinham que fugir porque tinham toda possibilidade de morrerem. Não havia qualquer tipo de pensão para os velhos, não havia qualquer tipo de subsídio à agricultura. Nada. Não havia luz na aldeia. Nem água e nem esgoto na aldeia. E isto era a principal imagem desse Portugal até 1974, um Portugal atrasado, sem indústria, porque (o ditador António) Salazar achava que a indústria poderia ser a porta de abertura para o comunismo. Éramos um país fisiocrata. Ele achava que a agricultura era a base da nossa economia.

BdF RS - E era um país colonizador, não é?

Marilinda - Um país colonizador atrasado. Um país colonizador que era, o que sempre foi, o longa manus (executor de ordens) da Inglaterra. O acordo mais antigo da história do Ocidente é entre Portugal e Inglaterra desde 1314. É quando Dom João I, o pai do infante Dom Henrique, que vai ensejar as navegações, casa-se com Dona Filipa de Lencastro. Aí eles fazem um acordo que vigora até hoje. Quem dita a política externa portuguesa é a Inglaterra que se prevaleceu muito do vosso ouro de Minas Gerais, talvez o grande alavancador da globalização da economia, o que deu suporte a isso se chama-se Brasil, se chama Minas Gerais, com as toneladas e toneladas de ouro que os portugueses transportaram e repassaram para os ingleses.

O povo era dominado pela polícia política, pela religiosidade e pela ignorância

Então, nunca Portugal se aproveitou, quer dizer (se aproveitou) pelas beiradas do seu império, sempre foi o longa manus dos ingleses. Repassava tudo que ele pilhava pela África, pelo Brasil, para os ingleses. Alavancou então a globalização, o capitalismo que temos aí, muito em parte, e se dedicava a construir igrejas. Era um pequeno país, como é até hoje, completamente enfeudado pela igreja. O dinheiro que tinha ele construía igrejas. Tu sabes que ali no Chiado, em Lisboa, temos três igrejas juntas. Tem o Café A Brasileira com o Fernando Pessoa, e depois, em torno dele, tem três enormes igrejas com a arquitetura barroca e tudo mais.

Tínhamos esse país que chega a 1974, religiosíssimo, servindo-se inclusive da ignorância do povo, e também dessa religiosidade acentuada. Criando a aparição de Nossa Senhora para os pastorinhos em Fátima. Por quê? Porque, ao criar essas aparições, de certo modo, no universo lírico do Salazar e da igreja do cardeal Cerejeira (patriarca da Igreja Católica), aquilo era uma forma de se contrapor ao comunismo de 1917. Tanto mais que é pouco depois de 1917 que surgem os pastorinhos, coitadinhos, imagina, alguns ignorantes que não sabiam ler nem escrever, viram Nossa Senhora aparecer para eles. Aquilo  galvaniza a sociedade portuguesa. É o grande milagre de Fátima. Então, o povo era dominado pela polícia política, pela religiosidade e pela ignorância. 

Meus colegas do movimento estudantil eram presos e enviados para o front da África

BdF RS - E os que se revoltavam, se rebelavam, eram presos e torturados? 

Marilinda - Até 1974 tivemos uma repressão sem tamanho. Por exemplo: meus colegas, os rapazes que estavam no movimento estudantil, quando presos eram imediatamente enviados para a África, para a frente de guerra. Por isso, alguns deles, após poucos meses, passavam para o lado do “inimigo”, para o lado das lideranças e dos movimentos que levavam a cabo a luta de independência. E outros começaram a se organizar. São os tais de capitães que vão desembocar em 25 de Abril. Era muito bom articular em África porque, lá, a PIDE não estava tão presente. Eles estavam no meio da selva, se reuniam na selva e começaram a articular o movimento longe dos olhares e da vigilância da PIDE.

Portanto, tivemos esses jovens que eram castigados com ida para a África. Tivemos muitos jovens e muitas lideranças sindicais de trabalhadores e de camponeses que eram enviados para Tarrafal, no Cabo Verde. Lá era como um campo de morte. Tu ias e não sabias se voltava. Era fome, fome, fome. Muitos também iam para a prisão de Caxias ou a prisão de Peniche e lá ficavam.

Há episódios interessantes como a fuga histórica do Álvaro Cunhal da prisão de Peniche que os soviéticos - muito alinhados com o Partido Comunista de Portugal (PCP), que até hoje é alinhado com a Rússia - resolveram tirá-lo da prisão. Abandonaram até um submarino que entrou nas águas da OTAN. Ele (Cunhal) saiu num barquinho. E guardas saíram com o Cunhal. O submarino estava ao largo à espera para levar o Cunhal para Moscou. Tinha essas ironias que expunham ao ridículo a nossa ditadura.

Antes, qualquer manifestação, qualquer resistência, já vinha o choque, já ficavam atirando escada abaixo, dando cacetada. Eram tempos muito difíceis. Era o fascismo, era o medo em cada esquina.


"Até 1974 tivemos uma repressão sem tamanho. Meus colegas, os rapazes que estavam no movimento estudantil, quando presos eram imediatamente enviados para a África, para a frente de guerra" / Foto: Alexandre Garcia

BdF RS - Onde estavas no 25 de Abril de 1974? 

Marilinda - Estava em Coimbra. Foi uma noite estranha. A partir da meia-noite começaram a tocar umas músicas que são dos militares, essas marchas. Passadas umas horas, começaram a dizer que a população deveria ficar em casa. Como éramos militantes, a minha célula estava aterrorizada. A gente não sabia se era para piorar ou se era para melhorar a nossa vida porque eles não fizeram nenhuma articulação com a sociedade civil.

Os militares fizeram o movimento sós, dentro deles. (O capitão do exército) Otelo Saraiva de Carvalho (um dos líderes da Revolução dos Cravos) e o (também capitão Fernando José) Salgueiro Maia. É muito engraçado que eu estava vendo um depoimento do chofer do Salgueiro Maia, Francisco, que dirigia um jipe... Ele chega ali na Avenida da Liberdade e a sinaleira está vermelha. E eles estão a passos para tomar o poder. E aí ele, o motorista Francisco, pára o carro. Salgueiro Maia que vinha entretido com as comunicações, diz ´Homem, o que é que você está fazendo?` E o motorista: 'Meu capitão, eu estou parando, pois a sinaleira aqui está vermelha`... Não é anedota, é mesmo real. Foi tudo muito hermético, muito da cúpula dos Capitães. 

Aí ela pôs o cravo na espingarda do soldado. E começou a distribuir os cravos

BdF RS - E porque o cravo vermelho? 

Marilinda - Um restaurante chamado Franjinhas estava completando um ano e seu dono pedira um monte de cravos para comemorar e distribuir aos clientes naquele dia. Então, ele viu aquele desatino que estava acontecendo em Lisboa. Disse para uma mulher (Celeste Caiero, empregada do restaurante) ir embora e levar consigo as flores. Ela ia com as flores quando veio um rapaz, um soldado, e perguntou se ela tinha um cigarro. Ela respondeu que não tinha cigarro, mas tinha um cravo. Aí ela pôs o cravo na espingarda do soldado. E começou a distribuir os cravos e a pôr nas espingardas. Essa é a história dos cravos.
 

BdF RS - A Revolução de Abril, como ficou conhecida, ela foi, digamos assim, a última revolução e trouxe todo um arcabouço novo para a democracia liberal, para a social democracia na Europa. Como é que tu avalias hoje? 

Marilinda - Do 25 de abril de 1974 até o 25 de novembro de 1975 vivemos verdadeiramente uma revolução: promovemos a reforma agrária, nacionalizamos os bancos – e, ao nacionalizar o banco, nacionalizamos a mídia porque os jornais estão na mão dos bancos – implementamos muitos projetos de autogestão operária, ensaiamos fazer uma reforma urbana. Fizemos um levantamento dos imóveis que estavam sem ocupação, garantimos os capitães, garantimos o exército. Tinha o movimento dos soldados unidos. Eles davam proteção às pessoas e as pessoas ocupavam aquelas casas. Houve um movimento de ocupação de casas vazias muito grande.

Era uma democracia pujante, era o povo na rua, era o povo que mais mandava. Claro que isso logo foi sinalizado pelo envio de um porta-aviões dos EUA colocado no nosso rio Tejo, com os canhões virados para nós. Logo, começa o movimento de contra-revolução.


Em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos, movimento liderado por militares e apoiado pela maioria da população civil, pôs fim ao Estado Novo em Portugal / Fonte: Estudo Prático

A partir do 25 de novembro de 1975, houve um retrocesso nessas conquistas, houve uma negociação. Qual é a negociação? As seis ex-colônias de Portugal estavam sobretudo sob a influência da União Soviética, porque quem financiava os movimentos de independência era a China, a União Soviética, o Vietnã, então havia o perigo do comunismo. Geopoliticamente, as seis colônias ficaram para o Bloco Socialista e Portugal, há uma grande negociação das cúpulas, inclusive das cúpulas militares e tudo mais, fica na OTAN da qual já fazia parte. E aí começa todo um processo de legitimação de uma social-democracia. Mas em 1975, antes do 25 de novembro, já tínhamos feito a nossa Constituição, que é socialista e revolucionária. Essa ainda é a nossa Constituição e não tem o que se lhe diga de social-democrata. É radical a nossa Constituição.

A Igreja Católica sempre esteve muito alinhada com o fascismo

BdF RS - E após o 25 de novembro? 

Marilinda - O 25 de Novembro é um movimento comandado também pelos militares, por Ramalho Eanes – que virá a ser depois presidente da República – no sentido de frear os ímpetos do Otelo Saraiva de Carvalho. Dentro das Forças Armadas havia, como sempre, uma força muito forte dialética entre a direita e a esquerda. Essa social-democracia começa mesmo antes do 25 de Novembro. Logo a seguir ao 25 de Abril, em setembro, houve a tentativa de um contragolpe pela parte do (marechal António de) Spínola. Ele tinha lançado um livro um pouco antes, Portugal e o Futuro, baseado na Guiné-Bissau, onde ele tinha estado. Aquele livro foi um frisson, lançado ainda no tempo do fascismo. Tinha uma imagem de um indivíduo mais progressista.

Quando se necessitou de um general teve que se ter com ele para ver se aceitava ir lá negociar com Marcelo Caetano. Aceitou e ficou presidindo o conselho das Forças Armadas, mas em setembro já tentou um contragolpe para frear a revolução. Afastado, é substituído pelo (general Francisco da) Costa Gomes, um homem mais progressista do que ele, mas mesmo assim um general. Portanto, há esse freio na revolução que vai desembocar naquilo que, mais tarde, vai enquadrar Portugal dentro da sua adesão à União Europeia e já também dentro de um contexto de alinhamento social-democrata.


A Revolução dos Cravos em Portugal, se iniciou com Salgueiro Maia convocando seus militares: “Ora, vamos acabar com o estado a que chegamos” / Reprodução

BdF RS - Como a Igreja Católica atuou durante esse período da revolução? 

Marilinda - Bem, anteriormente não tínhamos liberdade religiosa. Havia alguns judeus que não tinham liberdade de culto. Só tínhamos a Igreja Católica como a única religião possível. A Igreja Católica sempre esteve muito alinhada com o fascismo: Cardeal Cerejeira, António de Oliveira Salazar e Américo Tomás, que era o presidente. 

BdF RS - E como que a revolução reverberou no Brasil? Em 1974, no Brasil, ainda estávamos também em uma ditadura. Tem até aquela famosa música Tanto Mar, do Chico Buarque, citando a revolução em Portugal...

Marilinda - Antes do 25 de Abril teve o Chile. Estávamos todos chorando a queda do Allende e vem esse sopro maravilhoso de grito de liberdade, de igualdade e democracia em Portugal. Vossos exilados, que já não tinham um paradeiro, porque já eram apátridas, não tinham passaporte nem nada, foram se incorporar ao nosso movimento. Então, a participação do Brasil foi através dos seus exilados que se juntaram a nós.

Na vossa sociedade aqui, brasileira, daquela ditadura terrível que vocês viveram, os fascistas vieram para cá: (o empresário António) Champalimaud, (o grupo empresarial) Espírito Santo, os grandes capitais vieram para aqui, o próprio Marcelo Caetano, muito bem tratados. Então, tivemos o Chico com o seu canto, que foi um grito de ´Olha, mandem o cheirinho de alecrim para nós que aqui nós estamos morrendo, estamos acabando, finando`. Foi um ímpeto de esperança para vocês, mas ainda demorou para chegar.

Uma juventude alienada vira viveiro para esses populismos que estão grassando no mundo

BdF RS - Cinquenta anos não é tanto tempo se a gente for pensar no tempo da humanidade. Hoje, olhando o mundo e essa ameaça do fascismo novamente, o neo-nazismo, a extrema direita chegando em Portugal, o partido Chega, como avaliar a situação depois dessa história tão rica? 

Marilinda - É uma avaliação muito pessoal. Tínhamos um movimento de resistência ao fascismo interno. Não era um movimento de grandes massas. Era circunscrito às fábricas, aos operários, ao meio estudantil e pouco mais, e na reforma agrária no Alentejo. E tínhamos 37% de analfabetos. Havia o medo, o medo, o medo, o medo, mas não havia acúmulo de luta expressivo. Eram as lideranças e as vanguardas que levavam a luta para a frente. O que quer dizer que, quando os valores de Abril vêm, os valores da liberdade, da democracia, da igualdade, eles são vivenciados mais na pele do que propriamente dentro da superestrutura do pensar a sociedade. Trabalhou-se bastante para incorporar esses valores à nossa cultura. Mas ficou sempre aquela coisa do português que cresceu com o medo, que a política é uma coisa perigosa.

À medida que a gente foi se incorporando à União Europeia, vivenciando de uma forma mais tranquila, não foi valorizando tanto as conquistas de Abril. Porque nestes 50 anos nasceu muita gente que não soube o que era o medo, a fome, a ignorância, a falta de luz. Essa gente começa a crescer sem valorizar o 25 de Abril como a minha geração e a dos anteriores valorizamos.

De tal modo que recentemente foi feita uma enquete e perguntavam aos jovens o que foi o 25 de Abril e eles não sabiam. Perguntavam quem era Otelo Saraiva de Carvalho e eles não faziam ideia. Quem era Salgueiro Maia e não faziam ideia. Quem era Salazar e não faziam ideia. Uma juventude alienada desse jeito só pode ser um viveiro para esses populismos que estão grassando no mundo. Não é só Portugal. Acabam por ser um campo fértil, porque é sexy ser da extrema direita. É despojado dizer bobagens sem implicação. A pessoa não sabe o que é não ter liberdade. A maneira como a mídia trata de forma normalizada os discursos desses populistas é um desserviço à democracia. E as sociais-democracias e o capitalismo não resolveram um problema muito grande que foi a crise de 2008.

É a crise do capitalismo que nos arrasta e não temos a capacidade de dizer que o rei está nu. E não é o nosso rei, é o rei deles

A partir de 2008, Portugal e todos os outros países começamos a perder esses referenciais e a importância da democracia, da igualdade. Porque as pessoas se habituaram até 2008 a ter um perfil de consumo, de viagem, disto e daquilo que, depois, o próprio capitalismo não vai conseguir assegurar. E são esses revoltados, esses órfãos desse modelo, que vão ter o seu abalo em 2008.

O capitalismo não quer assumir e trata isso de forma superficial com esses slogans como Milei, como Bolsonaro, como Ventura. E essa juventude que teve já outro perfil de vida, essa classe média, que teve um outro padrão de vida, debita à democracia, à igualdade, à esquerda, a falência do seu próprio projeto. E a esquerda, quer seja em Portugal, quer seja aqui, não tem a capacidade de apontar onde está a ferida. Tenta gerenciar a crise do capital com mecanismos que não tem poder para gerenciar porque são globais. A crise é a crise do capitalismo que acaba por nos arrastar e não temos a capacidade de dizer que o rei está nu. E não é o nosso rei, é o rei deles. 


"O que estamos pensando para o 25 de Abril em Portugal? Fazer um grande ato, colocar muita gente na rua, gritar muito pela democracia, pela igualdade, pela liberdade" / Foto: Alexandre Garcia

BdF RS - Como serão as comemorações dos 50 anos em Portugal? 

Marilinda - Olha, a gente está muito impactada com a derrota das eleições de 10 de março. Nos impactou porque não tínhamos a percepção que a nossa derrota ia ser tão grande. Nós fomos vítimas como vocês aqui no Brasil quando se afastou um governo da maioria, um governo do Partido Socialista, com um case jurídico insinuando que o primeiro-ministro era corrupto. António Costa pede a sua exoneração. O presidente atual é um social-democrata. Achávamos que o Nuno Santos, do PS, ganharia. O que estamos pensando para o 25 de Abril? Fazer um grande ato, colocar muita gente na rua, gritar muito pela democracia, pela igualdade, pela liberdade. Queremos fazer uma manifestação de força. 

A memória tem que trazer para hoje as lembranças de um passado terrível

BdF RS - Continuas organizada com os grupos em Portugal?

Marilinda - Sou vinculada e simpatizante do Bloco de Esquerda e discuto com eles a conjuntura política portuguesa. 

BdF RS - Por fim, qual a importância dessa memória dos 50 anos da Revolução dos Cravos? 

Marilinda - Tem que trazer para hoje as lembranças de um passado terrível, que roubou a nossa juventude e que matou 8,8 mil jovens nossos numa guerra que não tinha sentido. Que matou milhares de africanos que lutavam pela liberdade. Não podemos deixar que o rio de 25 de Abril se perca do seu leito e não chegue ao mar. Ele ainda não chegou, mas a gente aposta que ele chegará. E quando chegar, nós teremos um mar imenso azul, pleno de liberdade, de igualdade e, enfim, de justiça. É o que nós apostamos, mas sobretudo nessa memória e nessa resistência. A gente da esquerda tem essa capacidade de nunca entregar os pontos. Nós não entregamos os pontos. E a liberdade plena e a democracia plena continua sendo a nossa luta do hoje e do amanhã. 

BdF RS - Temos muitos portugueses vivendo fora de Portugal, inclusive aqui. Qual a importância deles também trazerem essa memória do 25 de Abril?

Marilinda - Temos 35% dos jovens entre os 25 e os 35 anos que estão fora de Portugal porque não têm emprego nem futuro em Portugal. Então, esses 35% talvez não tenham tanto afeto pelo 25 de Abril. Isto é, se sentem escorraçados do seu país. Não têm a consciência crítica em relação aos caminhos e aos projetos.

Temos outra parte de portugueses que eram aqueles que vieram depois da Primeira e da Segunda Guerra para o Brasil e tudo o mais que têm uma memória ainda de saudosismo até do fascismo. E temos portugueses como eu, que estamos espalhados assim, internacionalistas, farão o que puderem para que o espírito do 25 de Abril se espraie pelo mundo. Mas não somos muitos.

A comunidade portuguesa aqui sempre foi muito reacionária, na França também. Os imigrantes, como esses jovens, são expelidos do seu país. Há um descrédito da política e há um arranhão muito grande à maneira de se fazer política.

BdF RS - Vamos ter algumas agendas aqui em Porto Alegre no 25 de Abril?

Marilinda - Estou muito orgulhosa de estar aqui no Rio Grande do Sul porque vão abrir a Assembleia Legislativa e vão fazer uma sessão solene em comemoração aos 50 anos do 25 de Abril. Isso é uma coisa fantástica. Os gabinetes da Luciana Genro, do Matheus Gomes e do Miguel Rossetto se juntaram e estão promovendo essa sessão no salão Júlio de Castilhos, às18h30, com fado e algumas falas. Vai ter a participação desde Lisboa, do Francisco Louçã, líder do Bloco de Esquerda, também.

No domingo vamos fazer uma roda de conversa no Guernica, na Cidade Baixa, na Travessa Venezianos, também com a participação do Ciro Ferreira, que é um músico que toca as canções do Zeca Afonso, a Grândola Vila Morena e tudo o mais. Além disso, tem outros movimentos: exposições no IAB, debate nas livrarias como a Baleia. Não vai passar em brancas nuvens. Porto Alegre é uma cidade que, quando se desperta e se veste com as cores mais bonitas da democracia, é uma cidade onde o povo mais ordena. Quando se veste com as cores da democracia e quando se apaixona pela luta. 

BdF RS - E será que a gente vai se vestir com essas cores novamente?

Marilinda - Olha, minha amiga, nunca deixaremos a semente morrer e nunca deixaremos que o rio se desvie do seu leito para o mar. Rio Grande é um pouquinho longe, mas Rio Grande está logo ali. Não esqueçamos que o nosso rio é persistente.

Porto Alegre é uma cidade muito particular. Pode ser que às vezes recue, pode ser que as vezes avance, mas a verdade é que Porto Alegre nunca perde esperança. Como diz a canção Porto Alegre é demais.

Confira a entrevista na íntegra

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Ayrton Centeno