ENTREVISTA

Livro resgata presença de negros e indígenas invisibilizada na história oficial de São Leopoldo (RS)

Os jornalistas e escritores Dominga Menezes e Gilson Camargo contam ao Brasil de Fato RS como foi realizar a pesquisa

Brasil de Fato | São Leopoldo |
Os jornalistas e escritores Dominga Menezes e Gilson Camargo lançaram o livro no dia 16 de abril, na Biblioteca Municipal de São Leopoldo - Foto: Giovani Paim/Urge Criativa

Lançado no ano do Bicentenário da Imigração Alemã, que será comemorado em 25 de julho de 2024, Invisíveis: O lugar de indígenas e negros na história de imigração alemã propõe um contraponto à narrativa oficial que exalta o protagonismo dos imigrantes europeus ao considerar o dia 25 de julho de 1824 como o início da história de São Leopoldo (RS).

O livro resgata registros históricos da presença milenar de indígenas que circulavam pelo território que um dia seria o Rio Grande do Sul e faziam do Vale do Sinos parte do seu território, bem como demonstra que São Leopoldo já era habitada por negros escravizados trazidos de diversas partes do continente africano, assim como os portugueses residentes.

Os jornalistas e escritores Dominga Menezes e Gilson Camargo lançaram o livro na Biblioteca Municipal de São Leopoldo, no dia 16 de abril, com a presença de algumas pessoas importantes dentro desta pauta, entre elas o professor e coordenador do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura e Relações Internacionais (Secult), Márcio Linck, o historiador Ricardo Charão, a secretária de Direitos Humanos, Adriângela Cabral Jacob, e o chefe do Departamento de Igualdade Racial, Anderson Bittencourt, conhecido como Mano Astral.


Lançamento contou a presença da professora da rede municipal e pesquisadora Andrea Rahmeier e o teólogo e historiador dedicado ao tema da escravidão em regiões de colonização alemã, Ricardo Charão / Foto: Giovani Paim/Urge Criativa

No próximo sábado, dia 27, haverá um encontro, a partir das 15h, no Pátio Livraria, Av. São Borja, 97 - Jardim América, São Leopoldo, para falar mais sobre o livro.

A publicação foi viabilizada com recursos do governo do Estado do Rio Grande do Sul por meio do Pró-Cultura RS, Fundo de Apoio à Cultura (FAC). 

Confira a entrevista com os autores

Brasil de Fato RS: Lançado no ano do Bicentenário da Imigração Alemã, que será comemorado em 25 de julho de 2024, Invisíveis propõe um contraponto à narrativa oficial. Qual o impacto que vocês esperam com a obra?

Dominga Menezes (DM): É importante lembrar que Invisíveis é um livro-reportagem e por isso seu objetivo é, nos princípios e nos limites da ética jornalística, provocar a reflexão, o debate, trazer a público aspectos obscurecidos pela história oficial. Desacomodar.

O impacto esperado e manifestado já na proposta contemplada com edital do Pró-cultura é mostrar as marcas das populações indígenas e negra no processo de imigração, na formação e no desenvolvimento de São Leopoldo. Fazer o contraponto ao discurso da germanidade que está nos primeiros livros de história, na literatura em geral sobre imigração, nos textos da oficialidade, no hino da cidade, nos monumentos, e na memória de uma elite que tem a imigração como marco zero da história de São Leopoldo.

Esses pesquisadores estão afirmando que aquela versão germanicista que credita tudo aos imigrantes e os mitos que se criaram em torno dessa hegemonia já não colam mais.

Gilson Camargo (GC): O livro traz farta documentação e referências históricas, entrevistas de pesquisadores que se debruçaram sobre o tema da invisibilização e do etnocentrismo e que estão dizendo: ‘Olha, a história não é bem essa, não foram só os imigrantes que desenvolveram São Leopoldo’.

Esse é o contraponto que está bem delineado com pesquisa e entrevistas, que evidenciam que aqui já estavam os indígenas de várias etnias, negros escravizados trazidos à força de diversas partes da África e que assim como os imigrantes criaram um mosaico de culturas e idiomas diferentes; os portugueses estabelecidos.

Essa dimensão da diversidade étnica que caracteriza a formação do município está registrada em documentos nos acervos públicos e só começaram a ser revelados de forma mais ampla a partir dos anos 2000 pela iniciativa de historiadores e professores dos programas de pós-graduação de universidades por todo o estado. Esses pesquisadores estão afirmando que aquela versão germanicista que credita tudo aos imigrantes e os mitos que se criaram em torno dessa hegemonia já não colam mais.


O livro traz farta documentação e referências históricas / Foto: Giovani Paim/Urge Criativa

Como se deu esse processo que tornou "invisíveis" os moradores não brancos do Vale do Rio do Sinos? Quais foram as forças determinantes para essa invisibilidade"?

GC: O que a gente percebe é uma construção histórica ampla demais para ser destrinchada por não historiadores, mas eu arrisco a associar isso às motivações da Coroa em relação ao processo de imigrações, como as ideias malucas de branqueamento da população após a “abolição”, a ocupação do território nos grotões, a formação de contingentes militares.

No caso específico de São Leopoldo, o que não estivesse relacionado à chegada dos imigrantes pouco importava porque era preciso fazer a coisa dar certo. Por isso afirmavam – e alguns sustentam até hoje – que a Feitoria do Linho Cânhamo, a primeira estatal do Império a ser sucateada com fins privados, não dava certo nas mãos de indígenas e negros e só teria ido pra frente quando “o louro imigrante” colocou a mão na massa. O leitor vai encontrar no livro várias dessas evidências sobre um processo às vezes nada sutil de invisibilização que é mais marcante na escrita dos primeiros cronistas e historiadores mais comprometidos com a germanidade. 

O livro coloca o dedo numa ferida que parece esquecida ao trazer histórias como do líder kaingang Faustino Ferreira Doble, o Iu-Tohaê também conhecido como Cacique Doble, que era um ‘caçador de bugres’ a serviço do Estado. Qual a importância desse resgate?

GC: Tem a ver com o que havia mencionado antes, sobre os mitos que se criaram sobre os imigrantes. Nesse caso, os do isolamento e da ocupação pacífica, que também não se sustentam. A chegada de europeus de fala alemã em uma terra estranha onde já viviam povos indígenas que disputavam entre si esse território, onde estavam estabelecidas famílias de imigrantes portugueses, além da população negra escravizada não se deu de forma pacífica e ordeira como andaram contando certos cronistas da imigração. Teve conflito, violência, sequestros, mortes e aculturação.

São histórias vetadas pela história oficial e pouco exploradas pela literatura. E olha que esse tipo de conflito entre o colonizador e os nativos não é prerrogativa dos alemães no Vale do Sinos, aconteceu no mundo todo. Na Argentina, as incursões de indígenas sobre aldeias de brancos aparecem na literatura do Martin Fierro e do Jorge Luís Borges e aparecem no trabalho de mestrado em literatura da Aline Venturini, na UFRGS, que teve como orientador o professor Luís Augusto Fischer. São histórias vetadas pela história oficial e pouco exploradas pela literatura

Cacique Doble era um caçador de indígenas, que eles denominavam “bugres”. Ele, um indígena mercenário a serviço de famílias de imigrantes era um matador de aluguel com a anuência e o pagamento em espécie por caçadas pelo governo da Província, ganhava por orelha. Histórias como esta e a do Luís Bugre, um indígena capturado por colonos que depois se vinga dos imigrantes, estão vetadas ou aparecem brevemente em boa parte da historiografia, um assunto que incomoda, uma ferida aberta como você disse.

No final, Cacique Doble acabou sendo morto pelo Estado. Depois de dar a ele um aldeamento, o governo da Província deu de presente a ele e seu bando fardas de soldados que haviam morrido de varíola. Eles voltaram para a aldeia felizes com os presentes, contraíram varíola e morreram...

O que está documentado dessas aventuras só é conhecido pela pena de cronistas e aventureiros que escreveram relatos completos, mas do ponto de vista do colonizador, sobre os sequestros e “correrias”: Leopoldo Petry, que publicou o folhetim Maria Bugra e o cônego alemão Matias Gansweidt, que colheu e registrou em cartório o depoimento de um idoso, um imigrante sequestrado aos 6 anos e que viveu décadas como indígena.   

Vocês destacam no livro que a entrada de imigrantes de fala alemã em uma região onde já estavam estabelecidos imigrantes portugueses, para onde foram trazidos africanos escravizados e que era território de itinerância de povos indígenas, não ocorreu de forma pacífica e ordeira. Essa história não contada pode ajudar a entender melhor as atuais disputas ideológicas na região?

GC: O Brasil ainda é, nas cabeças de pessoas que se julgam elite, o país do capitão do mato, do trabalhador que oprime e discrimina outros trabalhadores em nome do patrão, do cara que usa farda ou anda armado e se coloca como autoridade, uma variante da figura do capataz. O guarda da esquina, o porteiro, o vendedor de loja que fica alerta quando vê um pobre e, se pobre e negro, chamam a polícia. A polícia militar no eixo-rio São Paulo, mas no Brasil inteiro também, é a que mais mata no mundo. Mata por engano quando dá de cara com um trabalhador carregando um guarda-chuva, um macaco hidráulico. É uma polícia que erra. Mas nunca erra a cor da pele.

Eles matam a população negra da periferia. Isso é invariável. E é invariável também que o PM que mata é uma pessoa negra. Está no noticiário todos os dias. As outras polícias que não a militar, também. A PRF [Polícia Rodoviária Federal] do governo Bolsonaro torturou e matou um trabalhador na frente de dezenas de pessoas, numa cena que foi gravada, a morte ao vivo. Foi no dia 25 de maio em Sergipe. Genivaldo Santos foi imobilizado e mantido da cintura para cima trancado dentro do porta-malas da viatura pelos agentes William de Barros Noia, Kleber Nascimento Freitas e Paulo Rodolpho Lima Nascimento. Ficou mais de 11 minutos inalando gás lacrimogênio.

Nessas horas a imprensa diz que a pessoa entrou em confronto com a polícia e morreu. Não, ela foi morta. E qual foi o crime do Genivaldo? O passado escravocrata do Brasil está vivo e permeia as disputas ideológicas e faz com que grupos se sintam autorizados a discriminar, agredir e matar. A gente ouviu poucas e boas da boca de descendentes de imigrantes que acreditam em inferioridades raciais. Obviamente foram descartados como fontes né?    


Salete de Paula, liderança das mulheres indígenas da reserva Por Fi Ga, em São Leopoldo, participou do lançamento / Foto: Bruna Caldieraro/Urge Criativa

A obra também analisa a influência que a tradição germânica exerceu sobre o município e a sua população. Como foi essa pesquisa?

DM: Foi uma parte muito interessante da pesquisa, pois ela apresenta um mapeamento dos governos das últimas décadas e mostra de que forma os governos municipais atuaram para a manutenção dessa narrativa germânica que tem desdobramentos sobre a invisibilização dos outros. Havia muitos interesses em jogo e o cenário de cada época favorecia a decisão de poucos sobre a maioria. O município despontava para o crescimento econômico com a inauguração de obras e benfeitorias para a cidade.

A abertura de empresas e o setor calçadista no seu melhor momento sinalizavam para um crescimento da força de trabalho nunca antes vista, atribuída à chegada dos imigrantes e negligenciando a história multiétnica de São Leopoldo. Por intermédio do mapeamento dessas administrações foi possível, elencar ações de cada administração em relação a essa hegemonia germânica e avaliar o impacto provocado por políticas públicas inclusivas a partir da criação da Secretaria de Cultura, em 2005. São mais de 200 anos de histórias que precisam ser resgatadas

De que modo vocês esperam que o livro seja recebido na região, uma vez que existe essa convicção de que se trata de um lugar "branco e europeu"?

DM: Durante a pesquisa já percebíamos que a proposta de um livro nessa linha era muito aguardada ou, no mínimo, gerava uma grande expectativa e interesse. Apenas não tínhamos a dimensão do impacto que causaria, principalmente na comunidade escolar. Muitos estudantes e professores da rede pública demonstraram esse interesse e estavam no lançamento.

Essa releitura da história está na agenda de muita gente e tem um apelo forte por ser o ano do Bicentenário da Imigração. O livro já virou fonte para consultas. São mais de 200 anos de histórias que precisam ser resgatadas.

No lançamento oficial, ocorrido no dia 16 de abril, foi possível observar que a ideia de São Leopoldo enquanto lugar da germanidade não faz sentido, há muitos equívocos deixados pelo caminho, evidências de uma diversidade que foi ignorada, mas que está presente nos movimentos sociais, nas manifestações diversas, no dia a dia, no Carnaval.

Chama a atenção que, ao contrário dos demais rios da região e arredores – Caí, Gravataí, Guaíba, Jacuí, todos topônimos indígenas –, no Vale o rio tem nome europeu, Sinos. Qual a influência da colonização alemã para essa mudança?

GC: Em um mapa de 1646, possivelmente o primeiro registro cartográfico em que aparece o Sinos, feito pelo padre jesuíta Vicente Carrafa, o rio é identificado como Cururuyarei. Outras cartografias mencionam o rio Itapui (em Tupi, termo que expressa o ruído que a água faz em contato com as pedras). Em 1748, portanto, 76 anos antes da chegada dos primeiros imigrantes, batizaram o curso dágua com o nome Rio D’Sinos, numa alusão à sua sinuosidade na qual enxergaram desenhos de sinos, e no ano seguinte, o padre jesuíta e cartógrafo José Quiroga adota “Rio dos Cinos”.

O nome Rio do Sinos seria oficializado a partir de 1964. Para justificar a mudança, o político, escritor e dono de jornal (o 5 de Abril) Leopoldo Petry, que junto com Jacob Kroeff e Pedro Adams Filho liderou o movimento que emancipou Novo Hamburgo de São Leopoldo, inventou que o nome indígena Cururuyarei, teria o significado de “rio dos ratões do banhado”.

Convencida de que o nome indígena seria repulsivo para identificar o rio que banhava o “berço da imigração” germânica, a intelectualidade da época nem se deu ao trabalho de checar a informação. Se tivessem ido perguntar a algum dos tantos pacíficos indígenas Guarani que viviam na região, teriam descoberto com facilidade que “cururu” não é rato, mas sapo em Tupi.

Como pretendem divulgar mais amplamente a obra? Ela será encaminhada às escolas do RS?

DM: Os espaços da Educação no RS são prioridade, por isso fizemos questão que a Biblioteca Pública Vianna Moog fosse o cenário para o lançamento da obra, um local perfeito para a reflexão, cercado de livros, com uma diversidade de opiniões e apropriada para o debate. Oportunizaremos outros lançamentos em municípios da região e estado, com públicos diversificados. Mas, claro quanto mais pessoas tiverem acesso ao Invisíveis, melhor, concordando ou não com a abordagem. O próximo lançamento será em Porto Alegre, no dia 7 de maio, às 19h, na Livraria Clareira – Henrique Dias, 111, no Bom Fim.


Professoras e estudantes da rede pública que estão trabalhando o livro em sala de aula estavam no lançamento / Foto: Giovani Paim/Urge Criativa

Como surgiu a ideia do livro e quanto tempo levou o processo de pesquisa?

DM: O tema da invisibilização de indígenas e negros sempre que se fala de imigração e da história de São Leopoldo, seja nos livros, seja nos discursos, esteve na nossa pauta jornalística. Com a revista Carta Capilé (publicação que circulou de 2003 a 2009 no município e região) desenvolvemos diversas matérias e entrevistas com historiadores e outras fontes sobre esse assunto que não encontra correspondência nos arquivos.

Os registros da presença negra estão por toda a parte, apenas não são levados em conta na hora de contar a história de São Leopoldo. A partir dos anos 2000, diversos historiadores e pesquisadores vêm desenvolvendo trabalhos que demonstram isso, inclusive livros como A presença negra no RS, editado por um grupo de pesquisadores com base em documentos do Arquivo Histórico do RS.

Quando fomos contemplados com o Edital da Sedac, em outubro de 2022, já tínhamos o projeto delineado. Com a orientação de uma consultoria desde 2022, pesquisas, entrevistas, depoimentos e leitura das primeiras publicações de autores sobre o assunto, fomos a campo. Durante um ano e meio o projeto tomou forma. Porém, as entrevistas se concentraram no último ano, pois havia a preocupação de trazer um material quente e atualizado para os leitores.


Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Ayrton Centeno