Nova Carta Magna

Maduro quer viabilizar reforma da Constituição na Venezuela e busca discussão ampla para aprovação

Votação da proposta em 2025 já é tratada como certa pelo governo; objetivo será reformar o Estado de forma geral

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Maduro fez discurso à Nação e deu alguns detalhes de como será a estrutura da constituinte - Federico PARRA / AFP

O presidente da Venezuela Nicolás Maduro tomou posse na última sexta-feira mirando o futuro. Além de falar em um terceiro mandato guiado pela paz, o mandatário reforçou o seu projeto de governo e a sua principal proposta para 2025: fazer uma nova tentativa de reforma constitucional.

O processo ainda está sendo desenhado, mas a meta do governo é terminar a discussão ainda em 2025 e colocar para referendo popular antes mesmo das eleições legislativas, que serão realizadas este ano. Maduro reforçou a importância de “todos os setores” participarem dessa discussão para garantir não só uma maior inclusão na Carta Magna, como também a aprovação quando o projeto for a votação popular. 

“Como homem da classe trabalhadora, como presidente da classe trabalhadora, convoco todos os setores econômicos, políticos, ideológicos, sociais e culturais do país para um grande diálogo unitário e inclusivo. Para que possamos avançar juntos em direção a uma grande reforma constitucional que democratize ainda mais a Venezuela”, afirmou durante a posse para o terceiro mandato.

A proposta já havia sido levantada pelo mandatário no final de 2024 e não é nova na Venezuela. O ex-presidente Hugo Chávez promoveu uma reforma constitucional em 1999 e tentou uma nova reforma em 2007, que foi derrotada em referendo popular. A ideia, agora, é iniciar um debate na Assembleia Nacional em conjunto com a população para, só depois, levar para a aprovação dos venezuelanos.

Os detalhes das mudanças planejadas pelo governo não foram divulgadas, mas parte dos pilares já foi apresentado no plano de governo de Maduro para o próximo mandato, chamado de 7 Transformações. O documento propõe o desenvolvimento em sete áreas. Os eixos estão divididos em economia, social, política, meio ambiente e relações internacionais, além de dois tópicos mais conceituais: expandir a doutrina bolivariana e aperfeiçoar a convivência cidadã. 

Para o sociólogo e professor da Universidade Central da Venezuela (UCV) Atílio Romero, o plano de governo deixa o caminho pavimentado para a reforma constitucional que tenha como orientação o aprofundamento do projeto bolivariano.

“Nesse projeto de novo mandato, Maduro sinalizou claramente suas propostas. Definiu seu sistema de alianças interno chamado de Bloco Histórico e formulou o seu plano de governo. Essas 7 Transformações são medidas concretas por áreas e estão orientadas pela reforma constitucional. O projeto deve avançar para a reforma do Estado: constitucional, estrutural e política específica para cada setor, econômica, ecológica. O que se presume é que há um projeto de aprofundamento e sistematização do projeto bolivariano”, disse ao Brasil de Fato.

A estrutura das discussões começou a ser desenhada no Discurso à Nação realizado por Maduro na última quarta-feira (15). O presidente deu mais detalhes sobre como será feito esse processo e assinou um decreto para criar uma secretaria-executiva que vai discutir a reforma.

De acordo com o chefe do Executivo, a comissão será formada pela vice-presidente, Delcy Rodríguez, a primeira-dama, Cilia Flores, e o deputado Hermann Escarrá. Ele pediu ainda que o presidente da Assembleia Constituinte seja o procurador-geral, Tarek William Saab. Maduro elogiou a atuação do chefe do Ministério Público, que chamou de "grande defensor dos direitos humanos".

Segundo o chavista, o objetivo da reforma é "ampliar e reforçar a democracia", além de estabelecer "bases mais claras" para definir um "perfil da sociedade venezuelana".

O governo, no entanto, já tem alguns pontos claros do que precisa ser modificado em relação à atual Constituição. Um deles é a definição dos serviços públicos enquanto responsabilidade do Estado venezuelano. Apesar de a atual Constituição definir alguns bens como de responsabilidade do Estado, a Carta Magna não determina uma exclusividade sobre a prestação desses serviços e a determinação da importância dos bens públicos enquanto um direito da população. 

De acordo com a ex-embaixadora e deputada do Pátria Para Todos, Ilenia Medina, essas discussões não eram uma prioridade na última reforma constitucional, já que “não havia uma consciência” de que os serviços públicos precisam ter esse caráter constitucional. 

“Os serviços públicos são fundamentais para os direitos humanos. Uma comunidade sem acesso à água viola os direitos humanos, mas também afeta a atividade econômica e a segurança da nação. Aproveitamos, mas não víamos o significado que os serviços públicos podiam ter na perspectiva de defesa do país", disse ao Brasil de Fato

"Imagina um país sem eletricidade. Como você faz para proteger o espaço aéreo? [Em 2019] os hospitais ficaram sem energia elétrica. Os trabalhadores da PDVSA tiveram que ir para levar gasolina como podiam para ligar as plantas elétricas."

Se a última proposta de reforma constitucional foi rejeitada, o objetivo agora é incorporar a população no debate para evitar um esforço desnecessário de pensar uma nova Carta Magna. O governo, no entanto, terá que buscar uma série de amarrações políticas para tentar convencer a população da importância da participação e, principalmente, costurar uma Constituição que seja aprovada pela sociedade.

As últimas eleições presidenciais geraram um desgaste para a gestão de Nicolás Maduro, que enfrentou uma contestação dos resultados pela extrema direita e uma nova onda de ataques de países governados pela direita. O próprio Conselho Nacional Eleitoral (CNE) ainda não divulgou os resultados detalhados por mesa de votação, o que é um argumento usado pelo grupo liderado pela ultraliberal María Corina Machado. 

Ilena Medina afirma que a experiência da constituinte de 2007 já colocou um aprendizado para a elaboração de um novo texto: é preciso ampliar o debate popular em torno da reforma. 

“Uma coisa é ter debate e depois o que surge daí, porque tudo deve ir a um referendo. Se o debate e as conclusões dessa reforma acolhem as aspirações das pessoas, não temos dúvida que vai ter uma participação altíssima e que vai ser aprovada. Se ela não atende e nós não formos capazes de defender essas ideias, respeitamos. Em 2007 não houve reforma, não foi aprovada pela população”, afirmou. 

Reformar o Estado

Mais do que buscar uma nova normativa social, a ideia do governo é redigir uma nova Constituição que aprofunde a discussão de um novo Estado. Dentro disso, a primeira avaliação é a de que é necessário revisar o método de gestão pública. Ou seja, a definição de metas e etapas que o Estado deve passar para atingir objetivos. 

Para Ilenia Medina, isso deve estar claro para os trabalhadores venezuelanos, afim de garantir um “alto grau de soberania, segurança e produtividade”. Ela destaca também que é preciso dar protagonismo aos Conselhos Locais de Planejamento Público, órgãos responsáveis por formular os planos municipais de desenvolvimento.

“Esse é um mecanismo que já existe e que ativa o poder constituído e o poder constituinte. O poder constituído são os prefeitos e os vereadores e o poder constituinte são as comunas e os movimentos populares. E são eles que têm que definir o desenvolvimento e o orçamento, que são as prioridades. Isso existe, mas ainda não foi dada a preponderância que eles devem ter. É aí onde vai surgir a nova sociedade e o novo Estado, para um coletivo, não para um”, afirmou ao Brasil de Fato

Nos últimos anos, o governo de Maduro instalou uma série de projetos para auxiliar as políticas públicas. Chamadas de Grandes Missões, esses programas passaram a ser coordenados por deputados e lideranças populares para dar suporte ao Estado. 

A incorporação desses projetos na estrutura estatal deve estar dentro do pilar de fortalecimento do próprio Estado em uma reforma constitucional. Para Atílio Romero, essa deve ser uma das prioridades da reforma constitucional. 

Ele afirma também que uma das prioridades deve ser a incorporação das comunas na Constituição. O movimento foi idealizado e regulamentado pelo ex-presidente Hugo Chávez, que, em 2010, promulgou a chamada Lei Orgânica de Comunas. Essas experiências são uma nova forma de organização social baseada na autogestão e com diálogo permanente com o Estado. Elas, inclusive, têm prioridade na transferência de recursos e não precisam ficar restritas a um Estado ou município, ou seja: uma mesma comuna pode abranger mais de uma cidade. 

“Eu imagino que um dos projetos é gerar um aprofundamento da estrutura do Estado e do governo. Com planejamento. E integrar todas as missões e as comunas dentro do aparato do Estado. O Estado tem um paralelismo em si mesmo. Então eu imagino que, aqueles que estão projetando essa reforma, estão desenhando um Estado forte. Não um Estado fraco, nem mínimo. Mas forte, estruturado, com um modelo de integração onde todas essas missões se articulem e cheguem na base no sistema comunal, comunitário”, afirmou Romero. 

Outro ponto levantado pelos congressistas é a necessidade de conformar os deveres dos venezuelanos. A coalizão chavista entende que, em 1999, o governo de Chávez tinha o objetivo de pagar “uma dívida histórica” com a sociedade, que teve os direitos secundarizados. No entanto, o texto acabou deixando de lado as obrigações dos cidadãos. Ao todo, 38 artigos da Carta Magna falam nos direitos e apenas 6 nos deveres. Os deputados entendem que, depois de uma série de disputas com a oposição de extrema direita, a meta agora é equilibrar isso. 

Medina é líder do partido Patria Para Todos, que compõe a base do governo. Ela concorda com essa avaliação feita pelo Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV) e afirma que, depois de uma série de ataques da própria oposição, é preciso definir quais são os deveres dos venezuelanos, principalmente na defesa dos interesses nacionais. 

“Nós consideramos que é preciso desenvolver e aprofundar a significação e o aprendizado do dever de cuidar da Venezuela. Não pode um deputado pedir mais sanções contra o país, como já aconteceu. Os cidadãos têm de ter os direitos garantidos, mas é preciso também que os deveres sejam cumpridos, e defender a Venezuela deverá ser um dever dos venezuelanos”, disse. 

Edição: Leandro Melito