Menos de duas semanas após sofrer um ataque de pistoleiros que alvejou duas crianças e dois jovens no Oeste do Paraná, a comunidade Avá Guarani de Yvy Okaju é criminalizada em uma reportagem do programa Balanço Geral de Curitiba da RICtv, associada à Record.
Sem apresentar provas, a reportagem que foi ar na última quarta-feira (15) questionou a identidade indígena da comunidade. Além de expor duas lideranças, a matéria deu a entender se tratar de paraguaios e os associou ao Primeiro Comando da Capital (PCC).
Reivindicando a retirada da reportagem do ar e questionando a investigação do jornalista Ricardo Vilches, a comunidade de Yvy Okaju respondeu com uma transmissão ao vivo pelo canal de YouTube Abya Yala.
“Em vez de entenderem como está sendo a nossa vida, a nossa sobrevivência diante de toda essa violência, colocam no ar uma matéria mentirosa que está caluniando a nossa comunidade”, afirma Vilma Avá Guarani, uma das lideranças da comunidade. No vídeo, ela está acompanhada de outros 12 indígenas, incluindo uma criança.
“Desde que começamos a sofrer ataques a tiros, já são 12 pessoas que convivem com bala e chumbo no corpo. A gente vem pedindo investigação da Polícia Federal sobre esses ataques. E, a partir do momento que um jornalista associa nossa comunidade com uma organização criminosa, a investigação que a gente vem pedindo para achar os culpados e as pessoas que vêm atirando em nós pode pegar uma direção contrária”, ressalta Vilma.
A aldeia é uma das que foram retomadas pelos Avá Guarani em 5 de julho de 2024, quando os indígenas fizeram sete ocupações dentro da Terra Indígena (TI) Guasu Guavirá. Em 27 de agosto, um acampamento de não indígenas também se instalou na área, com o objetivo de intimidar a permanência Avá Guarani e o conflito se acirrou.
A onda mais recente de ataques armados contra Yvy Okaju começou em 29 de dezembro, seguiu na virada do ano e teve o episódio mais sangrento em 3 de janeiro.
Já identificada e delimitada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2018, a TI Guasu Guavirá tem 24 mil hectares e está sobreposta por 165 fazendas. O processo demarcatório está parado por conta de uma ação impetrada pelas prefeituras de Guaíra (PR) e Terra Roxa (PR) e acatada pela Justiça Federal em primeira instância.
A continuidade da regularização do território depende de uma decisão final da Justiça nas instâncias superiores. Esta, no entanto, está também suspensa até que o Supremo Tribunal Federal (STF) decida sobre a validade ou não da Lei do Marco Temporal. Enquanto isso, a violência escala no Oeste do Paraná.
“A qualquer momento podemos ser atacados de novo por causa deste tipo de matéria”, alerta Vilma. “A partir do momento que ele [jornalista] mostra o rosto das nossas lideranças, está expondo essas pessoas a mais risco do que já estamos sofrendo. Se chegar a acontecer alguma coisa com essas duas pessoas que foram expostas, a culpa também cairá em cima”, salienta, ao dizer que a reportagem da Record elevou a tensão e a preocupação dos indígenas. “Sabemos que isso vai trazer consequência”, pontua: “Está incentivando mais violência contra a nossa comunidade”.
“A gente pede muito que a sociedade busque a verdade. Busque nos conhecer como somos. Se entrar e ficar pelo menos um dia convivendo com a gente, as pessoas vão ver que nós não temos armas, não temos um meio de nos defender. Se realmente tivéssemos a participação desses grupos criminosos, será que a gente ia deixar nossos parentes ser baleados?”, questiona a jovem liderança.
“Paraguaios”
Depois de desafiar que a emissora prove que a comunidade seria paraguaia, os indígenas relembram terem sido expulsos de suas terras na década de 1980, com a instalação da hidrelétrica da Itaipu Binacional. “Alguns foram para o Paraguai, Mato Grosso do Sul, Argentina. Só que, a partir do momento que a gente conhece a nossa história, nossa ancestralidade, a gente vem retomar”, explica Vilma: “Essa terra sempre foi do povo Avá Guarani”.
“Não importa onde estamos, em que país a gente vai, em todos os lugares em que a gente se encontra, nós continuamos sendo Guarani. A gente continua sendo indígena”, enfatiza Vilma.
Lembrando que as fronteiras e os documentos foram imposições dos brancos, a moradora de Yvy Okaju sublinha não ser isso que os define. “Temos a nossa identidade. E nossa identidade a gente sabe. O nosso altar, a nossa reza, o nosso modo de viver. Isso é a nossa identidade”, diz.
“Não estamos lutando apenas por um pedaço de terra. Porque somos daqui. E vamos resistir. Não importa quantos ataques de mídia venham em cima de nós”, explica.
“Enquanto falam que tem uma única pessoa por trás daquilo que eles chamam de 'invasão de propriedade', nós somos organizados enquanto indígenas, enquanto uma comunidade”, rebate Vilma Avá Guarani: “Então, não adianta: eles tentarem derrubar o que chamam de 'cabeça de invasores'. Porque todos nós temos cabeça e consciência. Todos nós sabemos o espaço que pertence a nós”.
Edição: Martina Medina