Depois do ataque de pistoleiros que alvejou quatro indígenas Ava Guarani no Oeste do Paraná na noite da última sexta (3), a comunidade Yvy Okaju soltou uma carta em que cobra "respostas concretas e definitivas" do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e do governo Lula (PT). A repercussão deste que foi o quarto ataque em sete dias fez com que a Justiça Federal determinasse o aumento do efetivo da Força Nacional em Guaíra (PR).
Ao Brasil de Fato, lideranças de Yvy Okaju (antes chamada de Y’Hovy) confirmaram que o policiamento no entorno da comunidade aumentou, mas que a tensão segue. Afirmam não se sentir seguros para sair da aldeia e pedem apoio para garantir a alimentação da comunidade.
A aldeia sob ataque continuado é uma das que foram retomadas pelos Ava Guarani em 5 de julho de 2024, quando os indígenas fizeram sete ocupações dentro da Terra Indígena (TI) Guasu Guavirá. Em 27 de agosto, um acampamento de não indígenas também se instalou na área, com o objetivo de intimidar a permanência Ava Guarani. A onda mais recente de ataques armados começou em 29 de dezembro, seguiu na virada do ano e teve o episódio mais sangrento na última sexta (3).
Já identificada e delimitada pela Funai em 2018, a TI de 24 mil hectares está com o processo demarcatório parado por conta de uma ação impetrada pelas prefeituras de Guaíra (PR) e Terra Roxa (PR) e acatada pela Justiça Federal em primeira instância. A continuidade da regularização do território depende de uma decisão final da Justiça nas instâncias superiores. Esta, no entanto, está também suspensa até que o Supremo Tribunal Federal (STF) decida sobre a validade ou não da Lei do Marco Temporal. Enquanto isso, a violência escala no Oeste do Paraná.
Os feridos e a pressão nas autoridades
Dos quatro indígenas baleados por armas de calibre .22, a criança de sete anos atingida no pé e o adolescente de 14 anos alvejado na coxa esquerda receberam alta no sábado (4). Já os dois adultos passaram por cirurgia e seguem internados no Hospital Bom Jesus, em Toledo (PR).
Elízio, de 28 anos, tomou um tiro na mandíbula e está na UTI em estado grave. Dereteo, de 25 anos, está com três ferimentos de arma de fogo, uma delas na coluna torácica.
As imagens dos feridos e os áudios dos Ava Guarani pedindo socorro na noite de sexta-feira (3) circularam nas redes sociais e chegaram, diferentemente dos episódios dos dias anteriores, na imprensa hegemônica. O aumento do efetivo da Força Nacional foi requisitado pela Defensoria Pública da União (DPU), o Ministério Público Federal (MPF), o MPI e o mandato da deputada federal Célia Xakriabá (Psol).
A Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização autônoma dos povos Guarani do Sul e Sudeste brasileiro, oficiou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pedindo "medidas cautelares" devido aos "ataques armados reiterados" e a "omissão do Estado brasileiro". Entre as demandas, solicita que a CIDH defenda a instauração de um inquérito pela Polícia Federal para investigar os executores e os mandantes dos atentados.
Reivindicações de Yvy Okaju
Em uma carta escrita de próprio punho ao MPI, os moradores da aldeia Yvy Okaju afirmam que desde o final de 2023 são alvos de ataques com armas de fogo. "Já se passou um ano e o MPI pouco fez para garantir a segurança da nossa comunidade. Não é de agora que estamos gritando por socorro. Quantos documentos já foram enviados alertando sobre os riscos que a nossa comunidade está sofrendo? Agora no total já são 13 pessoas baleadas desde que iniciamos o movimento para a autodemarcação das áreas delimitadas pela Funai", diz a carta (leia abaixo na íntegra).
Os Ava Guarani reivindicam que os ataques cessem; que "as investigações sejam feitas verdadeiramente"; "que os atiradores sejam punidos e se chegue ao mandante" e que a aldeia Yvy Okaju seja regularizada "urgentemente": "não importa de que maneira, mas vocês órgãos competentes vão ter que dar seus pulos".
Nos anos 1970, parte das terras dos Ava Guarani foi submersa pela instalação da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Atualmente há uma negociação em curso para que a Itaipu adquira fazendas sobrepostas à TI como forma de reparação territorial.
Na carta, os indígenas repudiam a morosidade deste processo e "a falta de ações mais firmes do presidente Lula e do MPI em pressionar a Itaipu para que compre e que reconheça a dívida para com o nosso povo".
"Pedimos também que nos ajudem a denunciar principalmente a gestão municipal de Guaíra, pois ela é a maior responsável por este derramamento de sangue desde quando paralisou o processo demarcatório do território e por fomentar ódio contra a nossa comunidade", afirmam os moradores de Yvy Okaju. Até o fim de 2024, o prefeito de Guaíra era Heraldo Trento (DEM). Neste início de 2025, Gileade Osti (PSD) assumiu a prefeitura.
"Exigimos do MPI que encontre alguma maneira de conseguir indenização a estas pessoas que foram baleadas (13 pessoas no total)", escrevem os indígenas, pedindo "uma solução" porque a "a situação não pode mais esperar".
A resposta do Ministério dos Povos Indígenas
Em nota, a pasta chefiada pela ministra Sonia Guajajara (Psol) afirmou que "condena os atos de violência", que acompanha a situação por meio do seu Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas e que "está em diálogo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública para a investigação imediata dos grupos armados que atuam na região".
"A Polícia Federal conduz as investigações para identificar os autores dos disparos, com apoio da Polícia Militar do Paraná e da Força Nacional em ações de segurança. O monitoramento contínuo busca evitar novos incidentes. O território já conta com o aumento de 50% no efetivo da Força Nacional de Segurança Pública na área desde sábado (4), por determinação do MJSP", informa o Ministério dos Povos Indígenas.
"O MPI enfatiza que a instabilidade gerada pela lei do marco temporal (lei 14.701/23), além de outras tentativas de se avançar com a pauta, como a PEC 48, tem como consequência não só a incerteza jurídica sobre as definições territoriais que afetam os povos indígenas, mas abre ocasião para atos de violência que têm os indígenas como as principais vítimas", diz a nota.
"Por aqui na base", diz o documento dos moradores de Yvy Okaju, "continuaremos de pé até quando pudermos estar de pé. Mas a nossa pergunta é: até quando?".
"Resistiremos até o último Ava Guarani", termina a carta: "Se formos exterminados, falem de nós, contem nossas histórias. Mas para que isso não aconteça, vocês precisam agir".
Leia na íntegra a carta dos Ava Guarani:
Para a ministra Sônia Guajajara (MPI)
SOS Aldeia Yvy Okaju corre risco de extermínio na Vila Eletrosul, Guaíra, na região Oeste do Estado do Paraná.
Nós Guarani, moradores da Yvy Okaju (antiga Yvohy) viemos mais uma vez através deste documento cobrar do MPI respostas concretas e definitivas para a nossa aldeia, especificamente a Yvy Okaju. Deste vez não estamos falando da TI Tekoha Guasu Guavirá, porque as outras retomadas não estão sob pressão como a nossa, que desde o final do ano de 2023 vem sendo alvo de ataques violentos com armas de fogo, mas sempre eram distorcidos, pois os policiais da região consideram que é simplesmente um disparo de rojão, ou que éramos nós Guarani que atirávamos um no outro. Já se passou um ano e o MPI pouco fez para garantir a segurança da nossa comunidade. Não é de agora que estamos gritando por socorro. Quantos documentos já foram enviados alertando sobre os riscos que a nossa comunidade está sofrendo? Agora no total já são 13 pessoas baleadas desde que iniciamos o movimento para a autodemarcação das áreas delimitadas pela Funai.
No dia 31 de dezembro do ano passado a noite queimaram uma das nossas casas e balearam um parente de 22 anos de idade. Depois passou-se um dia e no dia seguinte, ontem à noite, aconteceu mais um ataque em duas residências ao mesmo tempo, onde 4 parentes foram baleados. Entre eles uma criança de 7 anos de idade baleada na perna. Tememos que esses tipos de ataques continuam acontecendo, por isso exigimos do MPI, Funai e outros ministérios e do presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, uma solução imediata de curto prazo para:
- Que esses ataques possam cessar urgentemente;
- As investigações sejam feitas verdadeiramente;
- Que os atiradores sejam punidos e se chegue ao mandante;
- A aldeia Yvy Okaju sema regularizada urgentemente, não importa de que maneira, mas vocês órgãos competentes vão ter que dar seus pulos.
Porque estamos sendo cercados principalmente de noite, os pistoleiros estão nos monitorando 24 horas por dia e estão monitorando também o momento e os trabalhos do efetivo da Força Nacional. Os mesmos também são ameaçados pelos moradores da Vila Eletrosul de onde vem a maior parte do perigo.
Gostaríamos muito que a nossa ministra viesse à nossa aldeia para ver com os próprios olhos o que está acontecendo com a gente.
E repudiamos mais uma vez a morosidade da Itaipu que não está nem aí para o derramamento de sangue dos Ava Guarani e também repudiamos a falta de ações mais firmes do presidente Lula e do MPI em pressionar a Itaipu para que compre e que reconheça a dívida para com o nosso povo.
Pois enquanto para muitos políticos só importa a politicagem e nesse jogo o nosso povo é excluído, é como se não possuísse nenhuma serventia. Deixando o nosso povo nessa situação de total vulnerabilidade, pois nós não temos arma nenhuma para defender a comunidade.
Agora é necessário uma viatura da FN para cada família da aldeia Yvy Okaju. De outro jeito não estaremos seguros dentro da nossa própria aldeia. Porque não sabemos de qual direção nem qual casa será alvo do próximo ataque.
E exigimos uma reunião com todas as autoridades porque a nossa aldeia precisa urgentemente de se pensar num plano de segurança antes, durante e após a regularização da aldeia Yvy Okaju, pois está muito exposta para qualquer tipo de ameaça.
Pedimos aqui também que nos ajudem a denunciar principalmente a gestão municipal de Guaíra, pois ela é a maior responsável por este derramamento de sangue desde quando paralisou o processo demarcatório do território e por fomentar ódio contra a nossa comunidade, por sempre fazer discurso racista nas reuniões de audiências de conciliação. Só porque tem interesses maiores por trás de tudo. Por pressionar alguns proprietários para não vender terras se for para se tornar aldeias e por não reconhecer a presença e a existência do nosso povo.
Toda vez que um de nós é ferido por eles é comemorado.
Queremos que a senhora enquanto nossa ministra faça caso e considere o nosso pedido de socorro. Porque para nós, a nossa comunidade está considerando tudo isso uma calamidade pública. Porque corremos perigo 24 horas por dia. Estamos acuados. A comunidade decidiu não trabalhar fora da aldeia para tentar proteger uns aos outros de dia e de noite, e isso está gerando outra emergência em questão de alimentação e nesse mesmo sentido exigimos da Funai-Brasília, senhora Joênia Wapichana, que urgentemente forneça 30 kits de moradias para que essas famílias que tiveram suas casas queimadas possam recomeçar e para outras tantos de pessoas vítimas de ataques.
Exigimos do MPI que encontre alguma maneira de conseguir indenização a estas pessoas que foram baleadas (13 pessoas no total).
Urgentemente exigimos uma solução porque a nossa situação não pode mais esperar. Caso contrário muita gente sairá machucada e talvez haja até vítimas fatais nessa luta que é um direito, mas que aqui em Guaíra estão tentando negar esse direito com balas de armas de fogo.
Por aqui na base continuaremos de pé até quando pudermos estar de pé. Mas a nossa pergunta é: até quando?
Até quando esses ataques vão continuar?
Quando que as autoridades vão acreditar em nós e fazer alguma coisa por nós?
Quantos de nós ainda vão ter que levar tiros para que tenhamos o direito de viver?
Porque isso aqui não é vida. Pois não temos mais segurança nem mesmo para sentar nas nossas casas e fazer nossas refeições.
Podem até queimar nós junto com a casa enquanto dormimos. E nada será feito?
Cadê as leis? Cadê os nossos direitos?
* Já basta de tiros!
* Já basta de derramamento de sangue
* Yvy Okaju corre risco de extermínio de sua população.
Resistiremos até o último Ava Guarani. Se formos exterminados, falem de nós, contem nossas histórias.
Mas para que isso não aconteça, vocês precisam agir.
Aguyjevete pra quem luta!
Edição: Nicolau Soares