O K-pop (Korean pop) pode ter um papel importante na derrubada definitiva do presidente da Coreia do Sul- de extrema direita e provisoriamente afastado desde o dia 14 de dezembro -, Yoon Suk Yeol. O gênero musical que impulsiona a cultura sul-coreana mundialmente marca a presença massiva de jovens, principalmente mulheres, nos protestos que enchem as ruas da capital, Seul, pela derrubada de Yoon.
"Mulheres jovens não estão segurando velas [como nos protestos de 2016], mas estão segurando esse tipo de bastão de fã de K-pop. Eu diria que muitas dessas mulheres não são particularmente organizadas em algum tipo de movimento social. Os movimentos com os quais elas estão organizadas são fã-clubes de diferentes estrelas do K-pop. Mas muitas se manifestaram contra as políticas anti-mulheres", disse ao Brasil de Fato o militante sul-coreano Dae-Hang Song, da International Strategy Center (ISC).
Song explica que durante a campanha eleitoral, a direita prometeu "se livrar da igualdade de gênero e do Ministério da Família, o que não conseguiu fazer porque houve uma reação massiva de um movimento feminista na Coreia". Ele acredita que a forte presença feminina nos protestos é reação às políticas do governo destituído.
O K-Pop nasceu nos anos 1990, como uma resposta artística a uma crise econômica que a Coreia do Sul enfrentava na época. A ideia das gravadoras era mostrar para os outros países esse produto cultural, estratégia que deu certo: o governo da Coreia do Sul percebeu o quanto era importante investir na produção cultural e as bandas de K-pop explodiram – ou melhor, se tornaram uma "hallyu", que significa "onda" em coreano. "Todas essas músicas do K-pop estão sendo reaproveitadas. Uma delas diz que 'estamos chegando, estamos vindo para te pegar'. E, claro, você sabe que é uma música de festa, estamos vindo para pegá-lo para a festa, certo? Mas o duplo sentido aqui era como se estivéssemos vindo buscá-lo [o presidente Yoon Suk Yeol]", conta Dae-Hang Song.
"Foi divertido ver a mudança de cultura do movimento adaptar-se aos tempos e a novos atores. Eu diria que a cultura desempenha papel muito importante, especialmente quando essas mobilizações são massivas, tem muita participação popular, porque é assim que você consegue mobilizar as pessoas, mostrar que não é um protesto que necessariamente vai entrar em conflito com a polícia, é um protesto pacífico em que você pode mostrar sua posição."
Crise política e vício em YouTube
A crise política no país começou após o presidente Yoon Suk Yeol surpreendentemente decretar a lei marcial no início de dezembro, em meio a acusações de corrupção, disputa pelo orçamento e pedidos de investigação contra sua esposa, que foram sucessivamente vetados por ele. Com a medida, o exército foi enviado para fechar o Parlamento, mas deputados conseguiram se reunir em uma sessão na mesma noite, depois que superaram o cordão de isolamento militar, e derrubaram a lei marcial com uma votação.
No dia 14 de dezembro, eles aprovaram o impeachment do presidente afastado Yoon Suk Yeol. Agora, a decisão está nas mãos da Corte Constitucional, que deve validar ou invalidar o afastamento de Yoon em um prazo de seis meses. Mas o tribunal está sem três dos nove juízes e a oposição queria que o presidente provisório nomeasse os que faltam para a votação, coisa que ele se recusou a fazer.
Por isso, nesta sexta (27), o Parlamento sul-coreano destituiu o presidente interino, Han Duck-soo, unanimemente por todos os 192 deputados. Esta é a primeira vez na história da Coreia do Sul que um presidente interino é alvo de impeachment. O ministro das Finanças, Choi Sang-mok, assumiu a função de chefe de Estado interino do país.
Enquanto isso, Yoon se recusa a explicar na Justiça por que decretou a lei marcial. As acusações contra ele podem resultar em prisão perpétua ou até mesmo pena de morte.
O entendimento que circula no país, relata o militante Dae-Hang Soo, é de que Yoon Suk Yeol é viciado em poder, álcool e YouTube. "O que queremos dizer com viciado em YouTube? Que ele não está assistindo ao noticiário. Se estivesse, entenderia a realidade em que está, mas em vez disso ele está apenas assistindo canais de direita, preso nesse tipo de senso distorcido de realidade. Isso é basicamente a explicação que as pessoas estão encontrando para todos esses movimentos que politicamente não fazem sentido." Leia abaixo, a entrevista na íntegra (realizada antes da destituição do presidente interino Han Duck-soo).
Brasil de Fato: Quais são os principais movimentos na Coreia do Sul? Quem está ativamente nas ruas?
Dae-Hang Song: Na história coreana, há um período de colonização japonesa. O Japão nunca assumiu pelos estupros, exploração e mortes do povo coreano. Isso ocorre em grande parte porque os Estados Unidos bancaram que um criminoso de guerra voltasse ao poder só para ter um governo anticomunista, após a 2ª Guerra Mundial. Foram ignorados apelos para responsabilizar o Japão, para assim criar uma aliança trilateral entre os Estados Unidos, a Coreia do Sul e o Japão, como parte de sua política de contenção da China.
A não responsabilização do Japão foi muito impopular desde o início. Em momentos diferentes, o Partido Democrático, o principal partido da oposição, começou a organizar protestos, que se tornaram muito maiores quando a Confederação Coreana de Sindicatos, a KCTU, se envolveu. E isso tem a ver com a repressão aos sindicatos, como o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil. Então eu diria que o KCTU está solidamente no centro dos protestos. Mas uma novidade é ver a participação das mulheres jovens. Um dos dados demográficos mais visíveis nesses protestos no sábado são as mulheres jovens.
Mulheres jovens não estão segurando velas [como nos protestos de 2016], mas segurando esse tipo de bastão de fã de K pop. Eu diria que muitas dessas mulheres não são particularmente organizadas em algum tipo de movimento social. Os movimentos com os quais elas estão organizadas são fã-clubes de diferentes estrelas do K-pop. Mas muitas dessas mulheres se manifestaram contra as políticas anti-mulheres.
Existe uma nova extrema direita e na Coreia ela é uma reação antifeminista entre os homens jovens. E, claro, isso também tem a ver com a economia ser terrível, o bolo não está crescendo e você luta por cada migalha.
Há esse tipo de reação anti-feminista de homens na faixa dos 20,30 anos que estão apenas começando suas carreiras e acreditam que muitas das diferentes políticas de igualdade de gênero são contra eles. Isso faz parte de como você forma a base de apoio entre os jovens, a direita explora essa base tentando empurrar políticas anti-mulheres. Uma de suas promessas de campanha era se livrar da igualdade de gênero e Ministério da Família, o que ele não conseguiu fazer porque houve uma reação massiva de um movimento feminista muito forte na Coreia. Então, eu diria que o outro tipo de movimento social são mulheres jovens, que estão apenas aparecendo por conta própria e também o movimento feminista.
Interessante você trazer essa relação com o K-pop. Que outros setores culturais da Coreia do Sul estão engajados nesse processo de impeachment?
É muito interessante. A música e o cinema refletiram muito do que aconteceu em 2016, e imagino que isso vai acontecer a partir de agora. Leva tempo para fazer os filmes, fazer os shows e tudo o que reflete essa realidade. Se você notar uma coisa sobre a Coreia, muitos de seus programas de TV são filmes novos que refletem o que está acontecendo nas ruas. Então, sim, imagino que isso vai acontecer.
Uma coisa interessante foi ver a cultura do movimento mudar. Nas manifestações recentes, as pessoas estavam cantando March of the Beloved, que é uma música que saiu na década de 1980, do movimento de democratização. Como milhares de pessoas foram mortas, March of the beloved surgiu no ano seguinte em memória desses mártires que sacrificaram suas vidas pela democratização, sabendo que iriam morrer.
Nos últimos protestos as pessoas estavam cantando essa música e deram a ela um tom mais otimista, meio pop, um remix dela. E eu vi esse senhor de idade, sentado atrás de mim, estava cantando. Um homem mais velho que passou pela ditadura. Eu o vi cantando e, claro, muitos dos jovens não conheciam essa música. E mais tarde houve músicas K-pop que deram certo, você via as pessoas cantando.
Todas essas músicas do K-pop estão sendo reaproveitadas. Uma delas diz em uma parte que "estamos chegando, estamos vindo para te pegar". E, claro, você sabe que é uma música de festa, estamos vindo para pegá-lo para a festa, certo? Mas é claro que o duplo sentido aqui era como se estivéssemos vindo buscá-lo [o presidente].
Então foi divertido ver a mudança de cultura do movimento adaptar-se aos tempos e adaptar-se a novos atores. Eu diria que a cultura desempenha um papel muito importante, especialmente quando essas mobilizações são massivas, tem muita participação popular, porque é assim que você consegue mobilizar as pessoas, mostrar que não é um protesto que necessariamente vai entrar em conflito com a polícia, é um protesto pacífico em que você pode mostrar sua posição.
Claro, existem outros protestos que o fazem confronto com a polícia, mas este não é um deles. Você pode se sentir livre para, de fato, se manifestar. Saia e mostre como você se sente, como o povo coreano se sente, para outras pessoas na Coreia e para o mundo. Recebemos diferentes mensagens solidárias de todo o mundo e uma delas era do João Pedro Stédile, do Movimento dos Trabalhadores Rurais (MST) do Brasil. E você sabe que é bom ter o mundo assistindo e interessado, porque isso coloca pressão.
Brasil de Fato: O que fazer caso o presidente interino Han Duck-soo seja destituído?
Dae-Hang Soo: Em 2016, a Coreia passou por algo semelhante: o presidente Parkenheimer sofreu impeachment. O presidente que assumiu o poder foi Moon Jae do Partido Democrata, que recebeu um mandato dos "protestos à luz de velas", como dizem, ou da "revolta à luz de velas". Esses protestos ressaltavam a necessidade de reformas democráticas para que algo assim não acontecesse novamente. Além disso, havia uma série de outras demandas sociais, por reformas sociais para melhorar a vida das pessoas, sua subsistência.. E o presidente Moon não conseguiu realizá-los, apesar do fato de que, na metade de seu mandato, ele até fez com que seu partido tivesse o controle da Assembleia Nacional.
Saber o que vai acontecer após o impeachment, quando basicamente um novo presidente assume o poder, talvez seja a pergunta mais difícil. O impeachment de certa forma pode ser considerado o mais fácil.
É claro que é uma luta que pode ser vencida, mas é uma luta que tem de ser lutada. As pessoas têm que continuar saindo às ruas. Alguns dias atrás, havia fazendeiros que vinham dirigindo tratores do sul para Seul e no passado eles tinham feito isso e não conseguiam passar, muitas vezes eles simplesmente voltavam. Mas, neste caso, eles conseguiram passar pela linha policial e dirigir seus tratores até a residência do presidente atual. A questão é que, em muitos aspectos, essas coisas têm que escalar. Por exemplo, o presidente está se recusando a receber qualquer um dos documentos judiciais, as intimações.
Há um grupo de ativistas que está se organizando como um ônibus de prisão. Na Coreia, quando você é preso, você é colocado em um ônibus. Eles estão basicamente teatralizando, tentando escalar isso. Estão tentando romper esse tipo de impasse e acho que há energia para isso. O protesto do último sábado teve uma presença massiva da população e, o mais importante, havia muitos jovens, não eram as mesmas pessoas de sempre. Assim como o Brasil tem um movimento social muito forte, a Coreia também, e consegue reuniur em uma manifestação 100 mil pessoas apenas pelo movimento social, isso não é muito difícil.
Mas esse protesto reuniu cerca de dois milhões de pessoas pessoas, muitas delas jovens que não fazem parte dessa geração de democratização que costuma frequentar esses protestos. Havia muitas mulheres na casa dos 20, 30 anos. Eu acho que é muito esperançoso, muito vibrante. Continua a fornecer o impulso para uma luta que tem que ser travada, como os fazendeiros lutaram.
É uma luta que pode ser vencida. Acho que uma questão importante também será o que acontecerá depois, essa é a parte difícil. Tomar o poder talvez seja mais fácil do que realmente realizar todas as mudanças estruturais que precisam acontecer. No momento, ainda estamos na luta, que tem que continuar sendo travada se o governo não fizer o que precisa. Há apelos por democracia direta e democracia direta significa que faremos o que o governo não pode fazer.
O Partido Democrata aprovou um projeto de lei este mês para um grupo de conselheiros especiais para processar acusações de corrupção contra a esposa do ex-presidente, por escândalo envolvendo um luxo e bolsa e outras alegações. Qual é a importância dessa investigação do conselho especial? Como é formado esse conselho, quem são seus integrantes?
Uma das controvérsias que levaram a essa situação, está relacionado com sua esposa: várias acusações de corrupção, de manipulação de ações, uma série de acusações semelhantes. Tentaram uma acusação especial contra ela, mas o presidente vetou-a repetidamente, realizou o maior número de vetos de todos os presidentes, um grande número de vetos.
Não sei como é no Brasil, mas na Coreia do Sul, o Ministério Público tem uma arma, a promotoria tem o poder de investigar, de iniciar uma investigação, de encerrar uma investigação e de processar. Na Coreia do Sul, a promotoria é muito poderosa. Yoon veio da promotoria. E como veio da promotoria, ele tem laços e relacionamentos, e já vimos isso várias vezes.
Não é a incompetência que os impede de processar ou investigar adequadamente a primeira-dama. É algo deliberado e já vimos isso várias vezes. A acusação é ineficaz, investigação e acusação são deliberadamente incompetentes quando se trata de funcionários de alto escalão, e esse é o objetivo de uma acusação especial, seria ter alguém externo a tudo isso.
A importância de um promotor especial é isso, ele exigirá total transparência. Todos os dias eles teriam que informar o que está acontecendo com o caso. É diferente da acusação que é completamente opaca, completamente à portas fechadas, em dívida com relacionamentos pessoais, todos esses tipos de coisas. Portanto, nesse aspecto, essa seria a importância de uma promotoria especial.
Você espera mais imobilizações de esquerda nas ruas nos próximos dias? No próximo fim de semana. O que espera para o início de 2025 na Coreia do Sul?
Espero que as mobilizações não diminuam. Havia várias possibilidades de saída para Yoon. Houve momentos em que ele poderia ter resolvido a crise. Houve sugestões de que talvez sua esposa pudesse simplesmente reduzir suas aparições públicas, e isso seria uma maneira de aplacar a raiva das pessoas e as acusações de corrupção. Mas ele não quis fazer isso. O momento seguinte foi quando as pessoas estavam falando sobre uma renúncia ordenada, e isso vinha de seu próprio partido.
Seu partido se recusou a aprovar a moção de impeachment pela primeira vez, em parte porque eles pensaram que a solução seria uma renúncia ordenada. Ele também não quis fazer isso. Então, de muitas maneiras, ele está cavando sua própria sepultura constantemente. O entendimento que corre do palácio, é de que Yoon é viciado em álcool, poder e em YouTube. O que queremos dizer com viciado em YouTube? Isso significa que ele não está assistindo ao noticiário. Se ele estivesse, entenderia a realidade em que está, mas em vez disso ele está apenas assistindo ao YouTube de direita, está apenas ficando preso nesse tipo de senso distorcido de realidade. Isso é basicamente a explicação que as pessoas estão encontrando para todos esses movimentos que politicamente não fazem sentido.
Em vários sentidos existem semelhanças com o processo que vivemos no Brasil de ascensão da extrema direita com Jair Bolsonaro e em outras partes do mundo. Como você analisa esse crescimento da extrema direita na Coreia do Sul?
Eu acho que a extrema direita chegou ao poder devido ao fracasso do governo anterior. Se o Partido Democrata tivesse cumprido corretamente o mandato que lhes foi dado pelas pessoas após os processos que aconteceram em 2016 não estaríamos onde estamos agora, estaríamos em um lugar muito diferente.
Por que estou dizendo isso? Em muitos aspectos, isso se conecta à crise da democracia liberal que está acontecendo em todo o mundo. Até este momento, acho que muitas pessoas pensaram que não há muita diferença entre o partido da União Conservadora e o Partido Democrata. Esse foi o tipo de entendimento e acho que isso é parte da razão pela qual a União conseguiu chegar ao poder. E basicamente Yoon era visto como esse tipo de Trump em muitos aspectos, como personagem não político.
Ele venceu por uma pequena margem, apesar do fato anterior, de um presidente desse partido sofrer impeachment. Foi possível porque o Partido Democrata não realizou as reformas que deveria fazer, que as pessoas desejavam que ele fizesse. Então, existe uma nova direita na Coreia do Sul? Eu diria que há a mesma crise que está acontecendo em todo o mundo. Os diferentes partidos no poder não são capazes de oferecer alternativas, nenhuma esperança, nada. Não são capazes de oferecer um caminho a seguir.
Você vê na cobertura da mídia do que está acontecendo na Coreia do Sul como uma disfunção da democracia coreana, e acho que é verdade. É uma democracia disfuncional, mas, em muitos aspectos, acho que a disfunção está em toda parte, em todos os lugares na maioria dos países liberais democratas, a chamada democracia representativa, onde não há democracia direta, onde as pessoas votam apenas uma vez e depois os políticos assumem.
Eu sinto que isso existe literalmente em todos os lugares onde existe esse tipo de democracia representativa. Em última análise, a luta tem que acontecer em torno de como conseguir mais democracia popular, mais democracia direta no processo, essa é a tarefa que vai sobrar para os movimentos populares aqui na Coreia, assim como para os estudantes universitários.
Como um panfleto virtual que viralizou em coreano e dizia algo nesse sentido: 'Papai Noel, eu quero mais do que apenas usar o impeachment. Eu quero uma sociedade coreana diferente.' Então os movimentos querem impeachment, e eles vão lutar por isso, estão na luta, mas, é como se isso não fosse suficiente. Não basta apenas impeachment se, em seguida, entrar outra pessoa que basicamente não cumpre quaisquer promessas, o que nos leva de volta ao momento em que estamos.
Edição: Rodrigo Durão Coelho