Pátria ou morte, venceremos. O letreiro imponente está cravado na Praça da Pátria, ou Place de La Patrie, um dos berços da luta popular travada contra a França em Niamei, capital do Niger. O local, hoje, é um ponto de encontro. Há arquibancadas e cadeiras onde o povo se reúne, conversa, e observa o movimento no Boulevard Zarmaganda, onde está a sede do primeiro comité popular de apoio ao exército nigerino.
“Antes era a Place de la Francophonie, hoje é Place de la Patrie, porque este é o local de nascimento da luta patriótica, a luta pela soberania nacional, pela soberania plena. Uma semana após o golpe de Estado, nos mudamos para cá. É um lugar simbólico onde construímos muitas coisas”, explica Boubacar Kimba Kollo, coordenador da Convergência para a Soberania dos Estados do Sahel (Cosnas).
Desde 26 de julho de 2023, a Place de la Francophonie não foi a única a deixar de existir. Vários locais históricos da capital que anteriormente tinham o nome da França ou de figuras do país europeu foram rebatizados com nomes de personalidades nigerinas ou pan-africanas.
Nesse dia, uma junta militar depôs o presidente em exercício, Mohamed Bazoum, e conduziu um golpe de Estado. A tomada de poder não foi um golpe comum no continente africano. Liderado pelo general Abdourahamane Tchiani, o exército acompanhou um pedido das ruas pelo fim da subserviência do governo do Níger à França, seu antigo colonizador. O povo pedia a expulsão dos 1500 militares franceses do país, um dos símbolos do domínio colonial exercido ainda hoje na África do Oeste.
Anos antes, os países vizinhos do Niger, Burkina Faso e Mali, também haviam colocado fim na cooperação militar com a França a partir de golpes militares semelhantes, apoiados pela população. O levante nos três países do Sahel, faixa semiárida que fica logo abaixo do deserto do Saara, no norte da África, é conhecido nas ruas como a “Segunda Independência” do continente africano, ou até mesmo a primeira delas, como muitos nigerinos descrevem hoje.
“Na memória viva dos homens, nunca houve um golpe de Estado que tenha sido apoiado por toda a população. Nós vimos, as imagens estão aí. O povo todo saiu, não só em Niamei, mas em todo o Níger para dizer sim aos militares. Todo mundo concordou. O Níger vibrou e é esta energia que continua até hoje”, coloca o coordenador da Cosnas.
Um ano após a expulsão do último soldado francês do Níger, em dezembro de 2023, o Brasil de Fato visitou o país africano para entender o que está por trás de um golpe militar com ideais soberanos e anti-imperialistas e como os movimentos populares e a população nigerina vem lutando para romper com a estrutura colonial que ainda permanece.
“Não temos nada contra a população francesa, somos todos iguais, mas somos contra a política deles, somos contra o que o governo deles está fazendo, contra o que o seu governo nos está impondo. E graças a Deus, hoje, acho que cumprimos todos os acordos que assinamos com a França. Realmente, graças a Deus, e acho que eles vão meter-se na vida deles, nos seus próprios assuntos. Nós também vamos nos meter na nossa vida”, coloca a nigerina Amina Hamani, integrante da Organização dos Povos da África do Oeste (OPAO).
Sanções e enfrentamento
Aisha Yahya Maiga, de 60 anos, ganhou o nome de “Mama Resistance” por diariamente percorrer Niamei alimentando os jovens que dormiam nas avenidas até que a França concordasse em se retirar do país.
A matriarca da família Maiga já vê frutos no caminho tomado no país após o 26 de julho de 2023, a partir da formação de um governo militar por Tchiani, o Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria (CNSP). Ela destaca a redução do preço do cimento, uma carência grave da população nigerina.
“É o imperialismo que está nos impedindo de progredir, então o que resta agora é nos unir. É um tempo de trabalho. Devemos trabalhar e devemos estar unidos”, explica Maiga.
A diminuição do preço de alguns produtos da cesta básica e a entrada gratuita a crianças de 0 a cinco anos e mulheres idosas nas unidades de saúde foram outras das medidas criadas pelo governo junto aos partidos políticos após a mudança de poder.
É um início de respiro após meses de sufocamento com as sanções impostas pelos estados da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), alinhados à França, que entraram em vigor sem aviso prévio, dias após o afastamento de Bazoum - considerado internamente como um fantoche da França.
As sanções incluíram o congelamento dos ativos do Banco Central do Níger mantidos em bancos regionais e a interrupção da assistência externa, que representava cerca de 40% do orçamento do Níger. Foi imposto também o fechamento de fronteiras com países como a Nigéria e o Benin. Sem litoral, com pouca irrigação e com pouca industrialização, o país, fortemente dependente das importações, ficou sem abastecimento de produtos básicos, como alimentos, vestuário e medicamentos.
As medidas fizeram duplicar o preço dos alimentos e triplicar o custo de sementes e insumos agrícolas, em um país onde a agricultura é o principal meio de subsistência de mais de 75% da população. Hoje, para contornar o estrago, sementes e fertilizantes estão sendo ofertados pelo Ministério da Agricultura do Níger a preços subsidiados.
Mamane Sani Adamou é secretário geral da Organização Revolucionária pela Nova Democracia (ORDN), um partido fundado em 1992, após a abertura do multipartidarismo, e conhecido por sua participação ativa na luta sindical do país, principalmente na organização dos professores, liderando greves e manifestações. A liderança histórica do partido explica como as sanções impactaram a população nigerina.
‘O Níger nem sequer podia acessar os seus próprios ativos para fazer compras. Até os medicamentos não estavam acessíveis. Obviamente, podem imaginar quantas crianças morreram porque não as podíamos tratar, porque não conseguimos encontrar o dinheiro para pagar seus tratamentos. Houve resiliência, é verdade, mas as pessoas sofreram muito. Mas como são pessoas que já estavam em uma situação de dificuldade, as medidas da Cedeao já encontraram um povo que não tinha acesso aos direitos sociais. E portanto, a situação foi acentuada, mas não foi um fenómeno novo”, coloca Adamou.
Além das sanções, suspensas em fevereiro, a França também tentou mobilizar os Estados da CEDEAO para invadir o Níger e restaurar o governo anterior, mas sem sucesso. Quando foi aventado uma possibilidade de intervenção no Níger, os governos militares de Burquina Faso e Mali disseram que isso seria uma "declaração de guerra" não apenas contra o Níger, mas também contra seus países.
“Na própria Nígeria, de Tinubu, que era o atual presidente da Cedeao, todas as populações do Norte recusaram o princípio da intervenção, porque é a mesma população que existe no norte da Nigéria e no Níger, é o mesmo grupo étnico, por isso não funcionou. Os próprios senadores, que são maioria do Norte, ameaçaram demitir o Presidente”, relembra Adamou.
Ameaça terrorista
O crescente sentimento anti-França observado atualmente na população dos países do Sahel, que culminou na derrubada dos governos em Mali, Burkina Faso e no Níger nos últimos anos, aumentou depois que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) invadiu a Líbia em 2011 e derrubou o líder líbio Muamar Gaddafi, que estava há 42 anos no poder.
Na guerra que derrubou Gaddafi, a OTAN trouxe combatentes jihadistas, como veteranos do Grupo de Combate Islâmico da Líbia, da fronteira Síria-Turquia, e encorajou outras forças jihadistas que já haviam sido derrotadas na Guerra Civil Argelina (1991-2002).
"O povo não tem só uma indignação contra a França, mas também contra os Estados Unidos. Entendem o papel que os EUA tiveram nessa desestabilização pós Gaddafi. Porque para vários desses países africanos, o Gaddafi é visto como um grande herói. Teve muito apoio do governo para projetos de desenvolvimento nesses países. E ele se reivindicava africano, tinha essa posição paternalista. Então sua deposiçao foi popularmente reprovada por vários países africanos", explica Stephanie Brito, analista política e liderança da Assembleia Internacional dos Povos.
Foi a partir do fim do conflito que o conjunto de grupos secessionistas, contrabandistas trans-saarianos e ramificações da Al-Qaeda marcharam ao sul do Saara e passaram a ocupar grandes partes do Sahel. Essa nova ameaça terrorista na tríplice fronteira entre Níger, Burkina Faso e Mali foi o que justificou a intervenção militar francesa e americana no Sahel, a partir de 2013, com a instauração da Operação Barkhane e do projeto G-5 Sahel.
A presença militar estrangeira, no entanto, não resultou em um combate efetivo dos terroristas. Pelo contrário, passou a ser vista pela população nigerina como mais um instrumento de controle francês na região.
Hoje, após os golpes, dos cinco países do Sahel apenas a Mauritânia mantém relações militares com a França.
“Estes imperialistas montam e criam guerras só para nos roubarem, para ficarem com toda a nossa riqueza. Foi por isso que criaram o terrorismo. Nós,os povos do Sahel, não conhecíamos o terrorismo, não somos terroristas. No Sahel, antes da chegada dos imperialistas franceses e americanos,vivíamos a mistura de culturas. Víviamos em simbiose”, lamenta a jovem mãe saheliana Amina Hamani.
Para enfrentar esses grupos, a principal força de enfrentamento ao terrorismo no Niger tem sido a Aliança dos Estados do Sahel (AES), um pacto militar, político e economico celebrado com os governos aliados de Mali e Burkina Faso.
“Sofremos mais com a insegurança do que com as medidas de sanções da Cedeao. Claro que as sanções foram desumanas, pioram a condição de existência das pessoas, mas as pessoas já não tinham acesso aos direitos sociais. Por outro lado, com a insegurança, têm sido observados movimentos populacionais significativos. Temos aldeias que partiram e estão a ameaçar a própria possibilidade de fazer trabalho no campo, de fazer agricultura. Isso forçou as autoridades do Níger a chegarem a um acordo com as do Mali e do Burkina para poderem levar a cabo juntos a luta contra os terroristas que estão nas três zonas fronteiriças”, analisa Adamou.
Hoje a região também é marcada pela presença da Província do Estado Islâmico do Sahel (EI Sahel), uma ramificação do Estado Islâmico na região. Desde o ano passado, a organização extremista violenta tem tentado obter apoio entre as populações locais, de acordo com um relatório da Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional (GITOC).
“A certa altura, estamos vendo um declínio do terrorismo. Agora o que está acontecendo é que mudou o formato. Encontramos ucranianos. Encontrámos antigos do Estado Islâmico. Encontrámos antigos do Afeganistão. Os terroristas já não são pessoas locais, mas vêm de fora. São mais formidáveis em termos da sua capacidade de causar danos, mas não têm base na população porque são estrangeiros”, complementa a liderança da Organização Revolucionária pela Nova Democracia (ORDN).
Acordos coloniais e o sequestro do Urânio pela França
Mas conter o avanço das milícias islâmicas é apenas um dos desafios para a reconstrução do Níger. As medidas do governo, auxiliadas pelos movimentos populares, incluem a derrubada da estrutura do FMI e do Banco Mundial e a constituição de uma moeda independente, substituindo o Franco CFA, moeda francesa criada em 1945.
Em 1960, a França controlava quase cinco milhões de quilômetros quadrados (oito vezes o tamanho da própria França) somente na África Ocidental. Embora os movimentos de libertação nacional do Senegal ao Chade tenham conquistado a independência da França naquele ano, a libertação não se refletiu na conquista de soberania para as antigas colônias francesas.
“Antes de dar independência aos nossos Estados, a França impôs uma condição. Você assina para ser independente, mas assina acordos de cooperação. Mas estes acordos de cooperação, se você os implementar, você não estará mais independente. O que há nesses acordos? Primeiro, você reconhece o bom que foi a colonização e é obrigado a reembolsar tudo o que a França investiu. Mesmo através de trabalho forçado. Todos os edifícios que em Niamei foram reembolsados. Em segundo lugar, compromete-se a favorecer as empresas francesas. Terceiro, você é obrigado a usar o francês como língua oficial. Quarto, você é obrigado a depositar todos os ativos, todas as moedas que temos, em uma conta do tesouro francês”, explica Adamou.
O caminho para a soberania política e econômica do Níger, segundo as lideranças políticas do país, passa pela constituição de uma moeda independente e a rescisão dos acordos neocoloniais com a França, como os que permitem a exploração do Urânio na região de Arlit, no norte do país. O Níger é o sétimo maior produtor mundial de urânio, mas está classificado em na posição 121 entre 127 no Índice Global da Fome de 2024.
“A França fixa os preços do Urânio de forma irrisória. Porque o que ela compra no Níger por US$ 0,80, ela compra no Canadá por US$ 200. Então você vê a lacuna, o mesmo Urânio. Isso significa que há algo extremamente absurdo”, contesta Adamou.
“Além do fato de não termos dinheiro significativo, temos danos ambientais. Em toda a cidade de Harlith, não há mais vegetação por causa da radiação. As toalhas de mesa estão todas contaminadas”, completa.
Boubacar Kima Kollo complementa. “Eu diria que o Níger nunca foi desenvolvido, e eu prefiro dizer diretamente por causa dos franceses. É por isso que desde a independência em 1960 até 26 de julho, o Níger foi sempre saqueado. Hoje, a França, que não tem reservas de ouro no mundo, é a terceira no mundo. E tudo isto por causa dos nossos países africanos. Hoje, 70% da eletricidade da França provém do urânio do Níger. E durante todos estes anos, os nossos recursos naturais foram enviados para a França e nós nunca nos beneficiamos de nada”.
Em junho, o Níger retirou da gigante francesa Orano a licença de exploração de um dos maiores depósitos de urânio do mundo, Imouraren, com reservas estimadas em 200 mil toneladas e um valor de mercado de 200 milhões de euros, segundo a empresa. Quase metade da produção média anual no local está atualmente bloqueada. Ainda assim, o faturamento projetado pela empresa em 2024 é de 30,5 bilhões de reais.
A Orano, cujo capital é detido em 90% pelo Estado francês, anunciou recentemente que iria "suspender" também, após 40 anos de exploração, sua produção na mina de urânio de Somair, onde possui 63% das participações - o Níger detém a restante participação
Agora, o Níger busca tecnologia para transformar sua principal riqueza natural em energia. Isso pode incluir o apoio de outros países, como a Rússia.
“Toda a transformação até a produção do yellowcake, o concentrado de urânio, são os nigerinos que fazem. Não há nenhum estrangeiro que faça isso. Todo o processo é feito por nigerianos. Mas nós não temos usinas nucleares ou centrífugas para fazer a transformação, para enriquecer o urânio. Nós não temos isso. E em qualquer caso, a França não aceitaria isso. Agora que estamos em ruptura com a França, esta é uma questão que está atualmente sendo analisada. Isto é, com outros países, para podermos criar uma central elétrica que pode fornecer energia aos países da África Ocidental” avalia Adamou.
O futuro da relação entre militares e o povo
Integrante da Organização dos Povos da África Ocidental (OPAO), que reúne partidos políticos, organizações e associações sindicais progressistas da África Ocidental, o partido Organização Revolucionária pela Nova Democracia (ORDN) nasce dos movimentos sindicais e estudantis dos anos 70 e 80 no Níger, dos quais Mamane Sani Adamou participou ativamente desde o ensino médio.
A liderança histórica da sigla acredita que o momento atual é importante para formalizar a existência de sua organização, após anos de repressão às forças progressistas que lutam pela unificação da África e a libertação do país das forças imperialistas.
Segundo Adamou, o golpe de Estado voltou como a única saída para a fragilidade dos movimentos populares.
“É preciso dizer que antes do golpe de Estado, houve uma situação tensa porque o regime proibiu manifestações da sociedade civil, mas especialmente dos partidos políticos de oposição. E por quê? Porque ele se sentia muito pressionado, ele não tinha meios para responder às demandas das organizações. Desde a greve geral de 2005, quando paramos o país, diferentes regimes políticos que se sucederam têm desejado enfraquecer os movimentos sociais. Mas a disputa é permanente. É por isso que, assim que houve o golpe de Estado, a população rapidamente apoiou”, analisa.
“Os nossos políticos eram corruptos, infelizmente os nossos presidentes eram comprados. É a consciência que a França compra. Mas não vamos desistir mais. Somos inflexíveis e estamos determinados a pôr as nossas vidas em risco até recuperarmos a nossa soberania total. Os nossos recursos naturais nos pertence. O Níger nos pertence”, complementa Boubacar Kimba Kollo, coordenador da Convergência para a Soberania dos Estados do Sahel (Cosnas).
Durante o mês de novembro, a visita de lideranças políticas de mais de 30 países a Niamei, para a Conferência Internacional de Solidariedade com os Povos do Sahel, foi vista pelos organizadores como um estímulo à continuidade do processo patriotico no Niger.
Ao redigir a Declaração de Niamei, que marcou o final do evento, as forças progressistas que assinaram o documento se mostram otimistas com as transformações lideradas pelo governo de Thiani e a “simbiose” com as forças populares, mas deixam um recado importante: que os governos militares do Sahel continuem “a ouvir seu povo”.
“Os nigerinos devem ter acesso à educação, todos. Todas estas pessoas, que se mobilizaram, para expulsar os franceses, a maioria estava desempregada. Temos que treiná-los, temos que dar-lhes um trabalho. Portanto, muitas coisas precisam ser feitas para que a soberania tenha significado. Devemos criar nossa própria moeda. No entanto todas essas questões requerem uma organização da sociedade, precisamos de uma frente política com os militares para fazer avançar essas questões”, analisa. Mamane Sani Adamou
“A nossa libertação nacional anda de mãos dadas com a questão social. Se as classes populares não puxarem o processo, ele está fadado ao fracasso. E para que isso aconteça, deve haver medidas dirigidas às classes trabalhadoras. Se as classes populares forem fortalecidas, o processo deverá continuar. Se as classes trabalhadoras forem esquecidas, as classes altas, a burguesia nigerina, não liderará um processo de independência”, finaliza a liderança histórica.
Edição: Nathallia Fonseca