Curitiba sediou a 21ª Jornada de Agroecologia na última semana. O evento, já tradicional do calendário do "Lado B" da cidade, reúne uma pluralidade grande de elementos. Temos comes e bebes maravilhosos, orgânicos, frescos, e também artesanatos. Estão presentes eventos culturais, que incluem apresentações de artistas locais e grandes nomes nacionais. E temos, principalmente, um espaço fundamental para se debater o meio ambiente em nossa cidade.
Não é à toa que Curitiba sedie esse evento. Aqui, a ecologia é urgente não somente pela necessidade de preservarmos a continuidade da vida humana e de nossa biodiversidade, que seria urgente em todo e qualquer lugar do planeta. Tem algo a mais. Curitiba é, possivelmente, uma das capitais mundiais do ecofascismo. Em nossa cidade, candidatos infames como Fernando Francischini, em 2020, e Cristina Graeml, neste ano, gastam parte de seu tempo em debates defendendo certa perspectiva ambiental. Meio ambiente está no programa de todos esses.
Uns poderiam ver esse “Consenso Verde” como algo benéfico. Afinal, é graças a ele que, minimamente, os espaços verdes são preservados na cidade, como uma política de marketing, concentrada, principalmente, nas regiões de melhor poder aquisitivo. Esse discurso vai sendo, claro, constantemente tensionado, como é possível ver no recente caso do projeto de corte das árvores da Arthur Bernardes, encampado pela prefeitura.
Mas o fundo dos malefícios do pretenso Consenso Verde está na sua perversidade congênita, uma lógica da ecologia da exclusão, de um urbanismo predatório que lima os pobres das áreas de circulação, de uma política ambiental construída nos laboratórios das entidades empresariais, da construção monumental de uma pantomina que protege, isenta, empresas capitalistas da sua responsabilidade ao venderem a lorota do “substitucionismo”, de que é possível superar o atual estado das coisas apenas trocando as matrizes “sujas” por “limpas”.
Curitiba é, e se orgulha disso, a capital do ESG (Environmental, Social and Governance, que em português significa Governança Ambiental, Social e Corporativa. É um conjunto de padrões e boas práticas que indicam se uma empresa é sustentável, socialmente consciente e bem gerenciada). E isso fica ainda mais latente quando vemos os grupos políticos que construíram essa narrativa encampando o projeto de Ratinho Jr. de flexibilizar o licenciamento ambiental. Ratinho mira em Eduardo Leite e pode colher os frutos que os gaúchos colheram: a morte, o desalojamento, a perda de esperança. Cortar árvores é cortar vidas humanas.
Portanto, é central que a jornada aconteça e aconteça aqui. Ela é um locus central para se discutir a construção de uma “ecologia dos debaixo”, articulada com os povos originários, os quilombolas, os ribeirinhos, os trabalhadores e trabalhadoras, o movimento fundiário e os setores ecossocialistas. Ecossocialismo, aliás, é uma palavra que a República do ESG ainda não conseguiu macular, já que a segunda metade dela, “socialismo”, toda no que não querem tratar: a indissociabilidade entre a crise ambiental e a crise de reprodução do capital.
Com mais de duas décadas, a jornada já passou por vários tipos de enfrentamento conjuntural. Em sua criação, refletia o discurso altermundista do Fórum Mundial Social e das lutas em Seattle, da unidade dos debaixo contra o neoliberalismo, aqui representado pelo governo FHC. Nos anos Lula e Dilma, ecoou tanto avanços importantes daqueles governos, quanto importantes críticas à sua clara insuficiência na pauta ambiental. Nos anos Temer e Bolsonaro, foi um espaço importante de resistência contra o avanço da aliança Bíblia-Bala-Boi, construída para destruir os explorados e os oprimidos e, que em sua “boiada”, também sintetizava o quanto esses setores são despreocupados com o colapso climático.
Agora, Lula retorna ao poder em meio a uma vitória histórica da classe trabalhadora contra o fascismo. Isso não torna, porém, seu governo incriticável no que tange ao meio ambiente, muito pelo contrário. O lulismo ecoa muito do ideário desenvolvimentista que é inerentemente negacionista ao secundarizar a pauta ambiental. O governo está movendo vários esforços para garantir a construção da Rodovia da Morte, que ligará Porto Velho e Manaus e é uma afronta aos direitos dos povos originários. Mantém no Ministério das Minas e Energia o negacionista Alexandre Silveira que tenta, diuturnamente, aprovar o apocalíptico projeto de extração de petróleo na foz do Amazonas. A Ferrogrão, outro megaprojeto encampado pelo governo, é bastante similar à Ferroeste de Ratinho.
Esse é um debate central: os limites da conciliação com o capitalismo para aqueles que entendem a urgência da crise. O espaço da jornada, que reúne lutadores e lutadoras sociais de diferentes setores, é privilegiado para que se faça a crítica, à esquerda, dos latentes limites do governo Lula na pauta ambiental. Também é essencial que se paute a relevante luta contra as narrativas do “capitalismo verde”, cuja solução apresentada para a emissão de gases, por exemplo, é uma frota de carros elétricos de baterias movidas à morte e destruição do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Apenas um espaço construído pelos debaixo pode superar o “ESGismo Cultural” e o “Consenso Verde” curitibano. Que bom que temos a jornada. Que bom que ela é aqui.
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
**Mateus de Albuquerque é doutor em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Representação e Legitimidade Democrática (INCT/ReDem)
Fonte: BdF Paraná
Edição: Lucas Botelho