Após mais de trinta anos, o Estado Brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pelo desaparecimento forçado de 11 jovens moradores da favela de Acari, na Zona Norte do Rio de Janeiro, em 1990. A decisão representa um marco na luta contra a violência e a impunidade e já gerou repercussões.
Na terça-feira (10), Dia Internacional dos Direitos Humanos, o vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson Fachin, destacou que a decisão evidencia falhas graves na proteção aos direitos humanos no Brasil.
O ministro defendeu a responsabilização dos agentes do Estado envolvidos em crimes de desaparecimento forçado e cobrou a tipificação adequada desse tipo de crime nas leis brasileiras. "A condenação [da CIDH] não é um episódio isolado, mas um alerta para que os déficits estruturais de nosso sistema de justiça em matéria de direito penal e no combate aos abusos de poder sejam enfrentados", disse Fachin.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a fundadora da ONG Criola, Lúcia Xavier, que acompanha o caso desde o início, afirmou que a sentença é um marco. “É um reconhecimento da dor e do sofrimento das famílias das vítimas e um passo importante para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.”
A CDIH também fez recomendações ao Estado brasileiro para prevenir a repetição de casos como o de Acari. Na lista estão a investigação completa e rigorosa dos desaparecimentos, a punição dos responsáveis, a criação de um memorial em Acari e a implementação de políticas públicas para combater a violência policial e o racismo institucional.
Além disso, a Corte Interamericana determinou que o Brasil pague indenizações às famílias das vítimas e emita as certidões de óbito dos jovens, reconhecendo oficialmente a responsabilidade do Estado pelo crime.
“O ganho que essa sentença traz para o Brasil e para o mundo, especialmente para a nossa região latino-americana e caribenha, é importantíssimo. Porque as dinâmicas de desaparecimento forçado estão presentes em diferentes formas de atuação política, governamental e inclusive em sociedades mais violentas”, destacou Lucia Xavier.
Segundo ela, a chacina representa as dimensões políticas da atuação do Estado contra a própria população. A condenação da CIDH precisa levar o Brasil a reavaliar as respostas que o país dá à violência institucional.
“Nos dói saber que levou tantos anos para que as famílias pudessem ter ao menos uma notícia de reparação. Porque a reparação não é somente pecuniária. É ter direito a um atestado de óbito, à atenção à saúde mental, ao reconhecimento dos danos causados pelo Estado e, mais do que isso, ter de volta a dignidade.”
Relembre o caso
Em 26 de julho de 1990, onze jovens moradores da Favela de Acari estavam em um sítio em Magé, quando o local foi invadido por um grupo de cerca de seis homens que se identificaram como policiais. As vítimas, com idades entre 13 e 32 anos, foram retiradas do imóvel e nunca mais foram vistas.
Testemunhas que conseguiram fugir da casa disseram que os criminosos procuravam joias e dinheiro. Três dias depois, o carro utilizado no sequestro foi encontrado queimado e com vestígios de sangue. As vítimas estão desaparecidas até hoje.
A principal suspeita é de que os homens faziam parte de um grupo de extermínio, composto por policiais do 9º Batalhão da Polícia Militar de Rocha Miranda, bairro da região. No entanto, o inquérito foi arquivado em 2010 e ninguém foi condenado.
Na entrevista ao Brasil de Fato, Lucia Xavier pontuou a urgência de superação do racismo, inclusive no judiciário. “O perfilamento racial tem por base uma atuação do agente público em incriminar e formar provas sobre uma pessoa com base na cor da pele. Essa é uma dinâmica que não consegue ter a sensibilidade do judiciário em rever as normas e regras desse processo.”
Após o crime, familiares das vítimas formaram o movimento Mães de Acari, que denunciou o caso em diversos fóruns no Brasil e no exterior. Uma das líderes do grupo, Edmeia da Silva Euzébio, foi assassinada com sua sobrinha, Sheila da Conceição.
As investigações dos dois casos foram marcadas por omissões e falhas, cenário que ainda se repete no Brasil em situações semelhantes. “Estamos falando de casos que envolvem agentes do Estado, grupos armados e o crime organizado, em comunidades periféricas e que, ainda assim, custam muito a vir à tona, tanto do ponto de vista da denúncia como da investigação.”
Ouça a íntegra da entrevista no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.
Edição: Martina Medina