Não é exagero dizer que a regulação das redes sociais é, atualmente, um dos principais temas do debate público brasileiro. Embora a influência das grandes empresas de tecnologia no cotidiano político, econômico e social do país tenha crescido consideravelmente nos últimos anos, não há norma específica para as plataformas de comunicação troca de conteúdo das big techs.
Desde as eleições de 2018, o impacto do que é propagado nas redes ficou explícito e a preocupação com o volume de notícias mentirosas que circulam nos aplicativos aumentou. Hoje, o assunto é debatido pelos três Poderes, pela sociedade civil e pelos movimentos populares, mas o consenso parece não estar próximo.
Segundo o Data Reportal, iniciativa especializada em pesquisas e dados, 86,6% das pessoas estão conectadas no Brasil. Dessas, 66,3% têm perfis nas redes sociais, que são acessadas por 98,9% dos usuários e usuárias. O percentual de quem usa aplicativos de mensagens também é superior a 98%.
:: Congresso mantém veto de Bolsonaro que barrou criminalização de fake news ::
Como as plataformas mais utilizadas pela população estão nas mãos das big techs, essas empresas têm acesso a uma imensa quantidade de informações. Por meio deles, direcionam publicidade, limitam a diversidade de conteúdo e dominam o ecossistema de dados.
Uma solução para esse cenário pode estar nas redes federadas, iniciativas com dados abertos, em que o conteúdo não sofre influência de quem paga mais pela publicidade e as informações não estão em poder de nenhuma empresa privada.
O professor e pesquisador Rafael de Almeida Evangelista, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), conversou com o Brasil de Fato sobre as opções de redes sociais desatreladas das grandes empresas de tecnologia. Segundo Evangelista, as redes federadas atuam em uma lógica contrária à exploração comercial dos dados e estimulam a organização coletiva.
:: Omissão dos legisladores na regulação das redes sociais vai cobrar seu preço nas eleições municipais ::
"O legal é que esse tipo de rede social federada implica em você se organizar para ter esse manejo dos seus dados e administrar seus dados. Sei que é uma coisa que parece complicada e trabalhosa, mas acho que é um dos pontos mais interessantes. As redes sociais (comerciais) nos atomizam, nos individualizam, tiram os nossos laços sociais e produzem laços sociais de ódio, de rivalidades, de agressões, porque essa é a economia das grandes plataformas."
Na entrevista, ele falou ainda sobre o potencial de uso dessas iniciativas para a comunicação da sociedade civil e de movimentos populares. Segundo o professor, o poder público deveria atuar para levar a comunicação pública também para essas redes.
"É uma ideia muito poderosa. A discussão de regulação de plataformas é difícil do ponto de vista legal, das regras que se vão estabelecer, do ponto de vista político. Temos que continuar brigando pela regulação das grandes plataformas, porque a maioria dos usuários está lá. Mas também podemos trabalhar politicamente construindo alternativas, outras relações e nos apropriando da tecnologia."
Leia a íntegra da conversa a seguir e ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.
Brasil de Fato: Como é possível usar redes sociais longe do poder das big techs?
Rafael de Almeida Evangelista: As redes sociais alternativas existem, mas são diferentes das redes das big techs, porque elas não trabalham com a mesma lógica de concentração. Elas trabalham com uma lógica federada, elas se juntam e são descentralizadas.
Elas também não têm tantos usuários como as redes das big techs, que estão aumentando essa massa de usuários há pelo menos 15 anos. As redes sociais federadas e fora das big techs têm uma história um pouco mais recente de desenvolvimento e um caminho ainda um pouco mais lento de agregação de novos usuários.
Mas elas existem e podem evitar vários problemas das big techs. Você pode ter uma rede social com uma linha do tempo não regulada pelo algoritmo, em que os seus dados não são explorados comercialmente. Elas não estão lá te vigiando para fazer perfil econômico, para tentar te vender.
Talvez uma dessas redes sociais federadas com mais sucesso seja o Mastodon. Ele é como se fosse o antigo Twitter, só que tem instalações federadas. Você entra no que chamamos de instância. A instância mais popular do Mastodon é a mastodon.social. As pessoas fazem um perfil e os dados são colocados na instalação do Mastodon social. Só que a partir de lá é possível falar com toda a rede Mastodon, embora os dados estejam ali naquele servidor.
Para dar um exemplo, eu tenho um perfil na instalação que fizemos do Mastodon na Unicamp. É uma instalação digamos que restrita para os pesquisadores do meu laboratório, mas a partir dela eu me conecto com a rede total. Na hora que eu quiser sair dessa instância – vamos supor que meu sindicato instalou uma instância do Mastodon no servidor do sindicato – eu transfiro os meus dados todos, todas as postagens que eu fiz, exporto para essa outra instância.
Quer dizer, eu sou dono desses dados. Eu digo a hora em que não estou mais contente com a instância, saio dela e vou para outra. Outra coisa interessante é que, ao administrar essa instância, é possível ter uma ação proativa de combate à desinformação.
Hoje, temos regras de moderação que quem estabelece são as grandes empresas. No Mastodon, a regra de moderação é estabelecida pela instância. Dessa forma, é possível controlar a exposição a conteúdos indesejados ou a exposição dos meus conteúdos a outras instâncias com as quais eu não quero me comunicar.
O legal é que esse tipo de rede social federada é que implica em você se organizar para ter esse manejo dos seus dados e administrar seus dados. Sei que é uma coisa que parece complicada e trabalhosa, mas acho que é um dos pontos mais interessantes. As redes sociais (comerciais) nos atomizam, nos individualizam, tiram os nossos laços sociais e produzem laços sociais de ódio, de rivalidades, de agressões, porque essa é a economia das grandes plataformas.
O tipo de arranjo técnico das redes federadas pode levar a outros arranjos sociais em que a própria pessoa faz essa administração e se relacione com outras para combinar as estratégias de comunicação com as outras instâncias.
Seria muito interessante que sindicatos, movimentos sociais, grupos de organização de bairro, tivessem as suas instalações desses tipos de redes sociais federadas, porque assim eu poderia combinar com a minha comunidade as regras de interação.
Por exemplo, uma escola que quer dar rede social para as crianças é sempre complicado porque as grandes plataformas não protegem as crianças, ao contrário, elas exploram, abusam das crianças. Eu posso ter uma escola que tem uma instalação em que tudo seja filtrado. É possível administrar a interação coletivamente, refazendo os laços sociais.
Eu dei o exemplo do Mastodon, mas há outras que também trabalham com os diversos tipos de rede social. A Diaspora é uma rede que parece o Facebook. Você tem o Lemmy, que é uma versão, digamos assim, do Reddit para você instalar e administrar localmente e administrar.
Para usar essas redes é preciso, necessariamente, atrelar o perfil a uma organização ou instância?
Depende dessa instância. A instância mais popular do Mastodon, que é o mastodon.social, é muito parecida com o Twitter. Ela se relaciona com várias outras instâncias e também bloqueia algumas instâncias. É possível conversar com o usuário do próprio Mastodon Social, mas também com outras instâncias.
Por exemplo, tem uma rede que se chama Ursal, uma brincadeira com esse meme das repúblicas socialistas. São usuários predominantemente de esquerda. Esses usuários se relacionam com outras instâncias, mas é o pessoal que administra a instância da Ursal que estabelece essas regras.
Não quer dizer que não existam instâncias da extrema direita. Ela também está usando essas tecnologias, mas o grupo pode controlar melhor. A experiência também vai depender um pouco das opções da instância de entrada. A partir dessas das regras dela você vai interagir com as outras.
É um tipo de autonomia que as big techs não conseguem proporcionar?
Sim, e eu acho uma ideia muito poderosa. A discussão de regulação de plataformas é difícil do ponto de vista legal, das regras que se vão estabelecer, do ponto de vista político.
Temos que continuar brigando pela regulação das grandes plataformas, porque a maioria dos usuários está lá. Mas também podemos trabalhar politicamente construindo alternativas, outras relações e nos apropriando da tecnologia. Não só indivíduos, mas as organizações precisam se apropriar da tecnologia. Isso é possível porque você tem código livre, padrões abertos.
É uma alternativa para substituir a comunicação de organizações em plataformas como Whatsapp e Telegram, por exemplo?
Interessante você citar o WhatsApp, porque também existe uma versão, digamos livre, do WhatsApp. As redes de protocolo aberto são inclusive anteriores ao WhatsApp. Podemos citar a Matrix, um comunicador de mensagem em que é possível fazer grupos.
Há protocolos de padrões de comunicação entre as máquinas livres para troca de mensagens já há bastante tempo. Aliás, a questão do WhatsApp é até muito mais séria, porque você tem políticas públicas que estão sendo comunicadas pelo WhatsApp. Isso afeta a nossa soberania. Nós não podemos fazer isso.
Se tivéssemos políticas públicas de comunicação feitas com redes livres e federadas, seria algo que o governo estaria se apropriando e não estaria estimulando os usuários a entrarem em redes das big techs.
Cabe uma crítica ao poder público no sentido de que ele deveria usar e incentivar o uso dessas plataformas?
Deveria ser comunicação pública. Por exemplo, depois daquele problema com o Elon Musk, o presidente Lula abriu um perfil no Blue Sky, que é uma réplica e é do antigo dono do Twitter. Ele montou outro projeto que diz que vai ser descentralizado e federado, mas hoje não é.
O Lula foi um perfil oficial nessa rede, mas os dados dele não estão no Brasil, estão lá no Vale do Silício. Por que o governo Lula não tem uma instância do Mastodon com os dados do presidente, dos ministros? A partir dessa instância ele se comunica com as outras instâncias.
Eu não estou dizendo que o presidente Lula deve se comunicar só nas redes sociais federadas, não é isso. Ele pode e deve se comunicar nos outros meios, onde a maioria está. Mas eu acho que a missão de um governo popular progressista é estimular a apropriação tecnológica das pessoas.
Se dependermos do WhatsApp, por exemplo, para nos organizarmos, conseguir direitos, a Meta (empresa dona do APP) pode cortar essa conexão, porque nós não controlamos isso. Se usarmos um software livre, com os nossos servidores, com a nossa conexão, com as nossas instalações, eles não podem simplesmente ir lá e desligar.
Nós temos mais possibilidade de luta, mais possibilidade de controle. É extremamente importante para garantir que a comunicação possa ser soberana e independente.
Há organizações e movimentos no Brasil que podem ajudar no acesso a essas redes?
No próprio Mastodon é possível encontrar várias pessoas do Brasil que estão muito interessadas em ajudar as organizações a implementarem e a a prestar serviços nessa implementação. Recentemente tivemos o Fórum da Internet no Brasil (FIB), que é organizado pelo Comitê Gestor da Internet. Algumas sessões falaram sobre as federadas ou o Diverso.
São pessoas dispostas a e que estão querendo popularizar o tema. Muita gente vem do movimento software livre, que no Brasil foi fortíssimo. Essas pessoas estão aí com os mesmos valores e continuam querendo ajudar na apropriação tecnológica.
Para dar o caminho das pedras, entrem na página do Fórum da Internet, onde é possível encontrar pessoas que falaram do Fediverso aqui no Fórum. É bom que haja inclusive esse contato entre as organizações e as pessoas, porque uma coisa reforça a outra.
Edição: Thalita Pires