REGIÃO ALAGIPE

Às margens do São Francisco, encontro Econasa discute semiárido após 8 anos

Maior instância de articulação da Rede ASA, décima edição do encontro acontece entre Alagoas e Sergipe

Piranhas-AL |
Plenária de abertura na segunda (18) foi realizada em palco montado no centro histórico de Piranhas (AL) - Neto Santos / Comunicação-ASA Piauí

Após 8 anos, a maior instância política na defesa da Convivência com o Semiárido voltou a pulsar. Nesse intervalo, temas como superação ao negacionismo e impactos da pandemia de covid-19 atravessam as pautas tradicionais do Encontro Nacional da Articulação Semiárido Brasileiro (Enconasa). Cortadas pelo Rio São Francisco, as cidades de Piranhas (AL) e Canindé de São Francisco (SE) sediam a décima edição do Enconasa, desde o último dia 18 até 22 de novembro. Celebrando a união entre os estados, o território está sendo chamado de "Alagipe". 

A área do evento recebe cerca de 500 pessoas - com 70% das delegações com público da agricultura familiar - para afirmar a histórica pauta de viabilidade do semiárido brasileiro, desde que se garantam políticas públicas adequadas. O território corresponde a 12% da área do país e abriga 28 milhões de habitantes, de acordo com o Instituto Nacional do Semiárido (Insa). O X Enconasa deve funcionar como uma bomba propulsora das diversas bandeiras de lutas populares da região.

“A diversidade do Semiárido está presente [neste X Enconasa], participando desse grande debate, através de reflexões sobre o acesso à água, acesso à terra e ao território, comunicação popular, luta por direitos, fortalecimento das mulheres, comercialização, produção sustentável, mudanças climáticas, combate à desertificação, energias renováveis, juventude, saneamento rural, sementes crioulas, educação contextualizada. Enfim, todas as temáticas que dizem respeito à vida e ao cotidiano dessas populações estão presentes no Enconasa”, afirma Mardônio Alves, coordenador executivo da Articulação Semiárido Alagoas (ASA Alagoas).

A programação dois dois primeiros dias do encontro foram de plenárias autogestionadas, místicas, apresentação e visitas a vinte experiências de convivência com o semiárido na área do "Alagipe". Uma desses intercâmbios em campo foi na propriedade do agricultor Carlos Soares Menezes, de 76 anos, conhecido como Seu Carlinhos, no assentamento Lagoa das Areias, em Monte Alegre, no Alto Sertão Sergipano. Na visita, o agricultor lembrou sua primeira participação em um Enconasa, em 2010, em Juazeiro (BA). Ele diz que, á época, se via desconfiado de estar diante apenas de "conversas que ficam por lá mesmo".   

"A ASA transformou minha vida e hoje eu sei que sou rico sem precisar de dinheiro, e vivo em um paraíso nesse nosso Sertão", definiu Seu Carlinhos no espaço de cerca de 3 hectares, com tecnologias sociais para armazenar água e sementes, criação de animais agroecológicos, produção de alimentos sem veneno e até um clima agradável em meio as matas cinzas da caatinga. A experiência segue servindo de inspiração no Brasil e até no exterior. 


Seu Carlinhos recebeu uma delegação de cerca de 40 pessoas, para conhecer sua experiência de convivência com o território / Neto Santos / Comunicação-ASA Piauí

Seu Carlinhos está presente no X Enconasa, com todo o coletivo, em plenárias, oficinas, intercâmbios, feira de saberes e sabores, terreiro de inovações e ato público. As atividades representam as vozes e anseios pautadas por cerca de três mil organizações que atuam no território e compõem a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA Brasil). São sindicatos rurais, associações comunitárias, cooperativas, ONGs, entre outras organizações que têm distintas naturezas, que defendem também um imaginário de viabilidade da região, diferente das antigas imagem de “território-problema”.

“Eu não sabia nem falar. Eu era aquela pessoa tímida, muda, que não falava com ninguém. Vivia triste, com a cabeça baixa, mas foi na ASA que eu encontrei espaço. Então foi a ASA que disse ‘se souber falar, fale’. Então foi na ASA que eu encontrei esse espaço, capacitação, força, coragem e luz”, disse a agricultora quilombola Josefa de Jesus, na plenária de abertura, entre reflexões, reivindicações e cânticos para todo o público presente. 


Dona Josefa levantou o público presente com suas reflexões e cânticos / Tarsila Guimarães - ASACom

Além da proposta de garantir o protagonismo da agricultura familiar, a organização do Enconasa se debruça na representatividade de bandeiras de lutas de movimentos populares e outras redes. Um destaque são as ASAs estaduais, com nove estados nordestinos, além de Minas Gerais. 

“O Enconasa representa uma articulação que começou antes de 1999, com a fundação da ASA, vem de uma ideia que cresceu ao longo do tempo com o protagonismo das famílias agricultoras e realizou uma transformação social no semiárido, na vida das mulheres e homens dentro do semiárido, isso não é pouca coisa. Então é muita responsabilidade para realizar esse evento, essa luta que hoje já não está mais só na gente”, ressalta a agricultora Maria José, coordenadora executiva da ASA Sergipe.  

Uma das pautas presentes neste X Enconasa é o intercâmbio do território brasileiro com outras regiões do planeta com o mesmo clima. Representantes de semiáridos de outros países marcam presença no encontro, representando as realidades na Bolívia, Argentina, Guatemala, El Salvador, Honduras, México e Burkina Faso. Nesta quarta-feira (20), será realizada a plenária “Semiáridos da Terra: construção de uma aliança global em defesa dos territórios”.

Outro momento aguardado desta quarta é a apresentação de novos projetos para a convivência com a região. Entre eles, uma proposta de saneamento rural específico para o semiárido e um projeto descentralizado de energia solar para as famílias do campo. 

Saneamento

Ao longo de seus 25 anos, a ASA liderou iniciativas pioneiras que garantem o acesso à chamada “primeira água” (destinada ao consumo humano) e à “segunda água” (utilizada na produção de alimentos e criação de animais). O saneamento seria uma “terceira água”, como uma proposta desenvolvida nos últimos dois anos por meio de debates, oficinas e visitas de campo. Também chamada de "água do cuidado", a “terceira água” deve ser integrada ao "Programa de Saneamento Rural da Rede ASA".

Na prática, proposta avança na promoção do reúso de água tratada para a produção de alimentos e geração de renda. O programa se inspira em experiências individuais e comunitárias de tratamento de “águas cinzas” (oriundas de pias e ralos) e de águas fecais, associando essas práticas a sistemas agroflorestais, tanto no Brasil quanto em outras partes do mundo.

Energia solar

A ASA se contrapõe ao modelo centralizador e predatório de geração de energias renováveis. Dessa forma, apresenta à sociedade o Programa Um Milhão de Tetos Solares (P1MTS). O projeto inédito de produção descentralizada de energia fotovoltaica para o Semiárido deve beneficiar 4 mil famílias rurais em 60 municípios do Nordeste e de Minas Gerais na fase-piloto.

No período de 18 meses, a iniciativa prevê também a criação de dez fábricas-escolas para a produção dos paineis solares e outros componentes, e a capacitação de 200 jovens eletricistas. Para tirar o P1MTS do papel, a ASA estima um investimento de R$ 78,9 milhões. 

O orçamento previsto inclui o custeio com seleção e cadastramento das famílias, capacitação dos beneficiários e técnicos, recursos humanos, visitas de intercâmbios, produção agroecológica, ações de controle social, gestão e acompanhamento.

Assim como o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), que se tornou uma referência mundial na democratização do acesso à água, a ASA espera que o estado brasileiro possa aproveitar o maior potencial de irradiação global horizontal (5,49 kWh/m²) do país, e formular uma política pública verdadeiramente inclusiva.


Placas solares partem de uma proposta de acesso à energia de forma democrática / Divulgação / ASA

Programação

Nesta quinta (21), o X Enconasa prevê uma plenária de análise de contexto, além da realização da Feira de Saberes e Sabores e Terreiro de Inovação Camponesa. À noite, está prevista uma plenária de encerramento. Na sexta-feira (22), será realizado um ato público nas cidades de Piranhas e Canindé de São Francisco.

O Brasil de Fato acompanha o EnconASA a convite da ASA. O evento tem o o apoio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), da Prefeitura Municipal de Piranhas, da Cáritas Francesa, e patrocínio da Fundação Banco do Brasil.

Edição: Nathallia Fonseca