Desigualdade

Na cidade mais rica do país, mais da metade da população vive com insegurança alimentar

Ao menos 1 em cada 10 habitantes da cidade de São Paulo se encontra em situação de insegurança alimentar 

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
No dia mundial da alimentação, manifestantes protestaram no centro da cidade de São Paulo - Elineudo Meira / @fotografia.75

A insegurança alimentar em São Paulo, tão evidente nos bairros periféricos, ressoa com a realidade retratada em “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus. Assim como nos anos 50, quando a autora narra sua luta diária para alimentar seus filhos em meio à pobreza e ao descaso, hoje muitos habitantes da cidade ainda enfrentam a escassez de alimentos e o aumento dos preços, refletindo uma desigualdade persistente. 

As descrições vívidas de Carolina sobre a necessidade de sobreviver em um ambiente hostil, no qual não tinha acesso à comida, continuam a ecoar nas vozes das famílias que, sem acesso a uma alimentação adequada, se veem aprisionadas em um ciclo de vulnerabilidade. A luta pela dignidade e pelo direito à alimentação é uma realidade que, apesar do tempo, não perdeu sua urgência.

Com o compromisso de denunciar os dados da fome em São Paulo, no último dia 20 de setembro foi divulgado o Inquérito sobre a situação alimentar no município de São Paulo, um estudo inédito articulado pelo Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo (Comusan-SP), o Observatório de Segurança Alimentar e Nutricional da Cidade de São Paulo (Obsan-PA) e pesquisadores das Unifesp e UFABC.

O levantamento divulgou dados que, apesar de não serem novidade, não deixam de ser chocantes: “Em 2024, pouco mais da metade da população do município de São Paulo (5,8 milhões de pessoas) residia em domicílios submetidos à insegurança alimentar, ou seja, preocupavam-se com a disponibilidade de alimentos no futuro próximo e que mudaram a qualidade da alimentação, reduziram a variedade dos alimentos, diminuíram o tamanho das porções, pularam refeições, sentiram fome ou ficaram um dia inteiro sem comer".

O questionário aplicado avaliava o nível de acesso dos domicílios entrevistados a alimentos através da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), composta por oito questões que podiam ser respondidas com “sim”, “não” ou “não sei responder”. São elas:

Nos últimos três meses:

1. Os moradores deste domicílio tiveram a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida?
2. Os alimentos acabaram antes que os moradores deste domicílio tivessem dinheiro para comprar mais comida?
3. Os moradores deste domicílio ficaram sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada?
4. Os moradores deste domicílio comeram apenas alguns poucos tipos de alimentos que ainda tinham, porque o dinheiro acabou?
5. Algum morador deixou de fazer alguma refeição, porque não havia dinheiro para comprar comida?
6. Algum morador, alguma vez, comeu menos do que achou que devia, porque não havia dinheiro para comprar comida?
7. Algum morador , alguma vez sentiu fome, mas não comeu, porque não havia dinheiro para comprar comida?8. Algum morador, alguma vez, fez apenas uma refeição ao dia ou ficou um dia inteiro sem comer porque não havia dinheiro para comprar comida?

O nível de acesso aos alimentos é medido com base na quantidade de respostas positivas do entrevistado. Caso este tenha respondido “sim” a nenhuma questão, a situação se caracteriza por “segurança alimentar”. 1 a 3 respostas positivas equivalem a “insegurança alimentar leve”; de 4 a 5, “insegurança alimentar moderada”; e de 6 a 8, “insegurança alimentar grave” (considerada estado de fome pelo IBGE). A medição do acesso aos alimentos nos domicílios brasileiros através do EBIA é uma ferramenta de humanização da experiência da fome, indo além da medição estatística abstrata, tentando compreender esse fenômeno de maneira mais complexa e sua maneira multifatorial de incidência nos sujeitos.

Com base nas definições também do IBGE que foram adotadas pela pesquisa, o estado de segurança alimentar se dá quando “a família tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais”. A insegurança alimentar leve se dá quando “há preocupação ou incerteza quanto ao acesso do alimento no futuro; qualidade inadequada dos alimentos resultante de estratégias que visam não comprometer a quantidade dos alimentos”. 

Na faixa da insegurança alimentar moderada: “há redução na quantidade de alimentos e/ou ruptura nos padrões alimentares de alimentação resultante da falta de alimentos”. Já a insegurança alimentar grave, caracteriza-se pela “redução quantitativa de alimentos, ruptura dos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre todos os moradores. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio”.

Dados que chamam atenção na pesquisa:

Pouco menos da metade da população (49,5%) do município de São Paulo residia em domicílios em segurança alimentar;
50,5% (5,8 milhões de pessoas) estavam em algum grau de IA (24,5% leve; 13,5% moderada; 12,5% grave);
Os 12,5% de domicílios em estado de insegurança alimentar grave (1,4 milhões de pessoas) correspondem à população total da cidade de Goiânia e é 3 vezes maior que a média nacional;
Apesar dos dados gritantes, a metodologia da pesquisa se deu em uma amostragem por domicílios, ou seja, isso não contabiliza a população em situação de rua da cidade, estimada em mais de 80 mil pessoas;
Apesar de a insegurança alimentar se distribuir de maneira desigual pelos bairros ricos e pobres da cidade, foi detectada a ocorrência de insegurança alimentar grave (fome) em todas as zonas e subzonas da cidade delimitadas pelo estudo, o que evidencia desigualdades internas nas diferentes áreas do município. Ainda assim, as áreas periféricas, juntamente com o “Centro”, apresentam maiores proporções de domicílios em insegurança alimentar grave;
Em uma sociedade atravessada pelas questões raciais e de gênero, as situações alimentares dos domicílios são determinadas pelo sexo (gênero) e pela cor (raça) da pessoa de referência do domicílio. Nos domicílios chefiados por mulheres pretas, apenas 33,6% estavam em segurança alimentar, enquanto 17,5% estavam submetidos à insegurança alimentar grave (fome). Nos domicílios chefiados por homens brancos, a proporção de domicílios em insegurança alimentar (41,1%) era 1,6 vezes menor e em insegurança alimentar grave (fome) era 2,1 vezes menor (8,1%) do que nos domicílios que tinham uma mulher preta como referência;
No município de São Paulo, mesmo uma renda domiciliar per capita superior a 2 salários mínimos não significa garantia de segurança alimentar;
Apesar da informalidade e instabilidade no trabalho estarem associadas a índices maiores de insegurança alimentar grave, mesmo na faixa de assalariados registrado, apenas 57,8% dos entrevistados estavam em situação de segurança alimentar;
A escolaridade também não constitui garantia de segurança alimentar, sendo que 48,5% dos domicílios em insegurança alimentar eram chefiados por alguém que havia cursado o ensino médio;
Ao todo, 21,1% dos domicílios recorreram a empréstimos para comprar alimentos; 18,9% deixaram de comprar alimentos para pagar contas; 7,8% deixaram de comprar alimentos para pagar a passagem de trem, ônibus ou metrô.
O inquérito reforça o que já nos alertava Josué de Castro, que entendeu a fome não enquanto um fenômeno pontual, regional ou atípico. Na cidade mais rica do país, vemos que a fome é produzida não pela escassez de alimentos, mas pela sua privação. Não é um fenômeno natural e insuperável, é um fenômeno social, econômico e político, um fenômeno multifatorial; e ao contrário do que podemos crer, não se concentra exclusivamente nos estados mais pobres do Nordeste, nem nas regiões rurais, não é culpa da seca ou de intempéries, mas se relaciona ao modelo de emprego e renda das nossas cidades e ao sistema e à maneira como ele funciona. 

O que o estudo nos mostra é que na cidade de São Paulo a fome não é exceção, é regra, considerando que ao menos 1 em cada 10 habitantes do município se encontra em situação de insegurança alimentar. 

Os resultados nos revelam, portanto, a urgência de pautarmos um Projeto Popular para o Brasil, no qual a soberania alimentar seja um dos pilares principais para a garantia de políticas públicas estruturantes em relação ao combate à fome. É crucial que sejam implementadas iniciativas que assegurem o acesso à distribuição de alimentos de forma justa e soberana, além de garantia de direitos essenciais para a população. 

Isso inclui o fortalecimento da agricultura familiar, o fomento às cozinhas populares e a produção local, geração e distribuição de renda, consolidando assim um projeto cujo objetivo central é a superação da fome através da organização do povo.

*Luiza Troccoli e Raquel Almeida são militantes do Movimento Brasil Popular

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Em nota, a Prefeitura de São Paulo afirmou que "o levantamento mencionado pela reportagem contraria dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que, em 2023, apontou 1,37 milhão de pessoas no estado de São Paulo em situação de insegurança alimentar grave. É descabida, portanto, a indicação de que na cidade de São Paulo haveria mais pessoas nessa condição". O posicionamento completo está neste link.
 

Edição: Nathallia Fonseca